17 Julho 2013
Encontra-se animado ante a “nova etapa” na Igreja com a nomeação de Francisco. “Os que vivenciamos a explosão conciliar, com seu luminoso sentido de libertação e esperança, sentimos de novo aquele ar no rosto”, explica Andrés Torres Queiruga. O prestigioso teólogo galego acaba de publicar “La teologia después del Vaticano II”. E, no entanto, crê que a grande revolução de Francisco acabará de “realizar dentro da Igreja, num círculo sagrado, a renovação do poder a partir do poder”.
A entrevista é de José Manuel Vidal e publicada por Religión Digital, 13-07-2013. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
Pode-se dizer que o pós-concílio foi a época áurea da teologia?
Não época áurea, senão época de esperança e renovação. Para compreendê-lo, convém lançar um olhar à história da teologia, sobretudo a partir do Renascimento. O humanismo cristão (Erasmo, Vives, Moro...) foi uma oportunidade magnífica para a igreja: a possibilidade de continuar mantendo o passo da sociedade e da cultura. O fermento evangélico nunca se tornou insubstancial, perdendo toda a sua força. Mas, a deriva que se impôs foi a de resistência ao novo. Como disse já faz muito tempo Congar, impuseram-se as restaurações. A última oportunidade em grande escala aconteceu com a crise modernista: algumas soluções não eram acertadas, mas as perguntas e os problemas continuam em grande parte sendo os nossos. Depois foi a pugna entre renovação – patrística, exegese, liturgia, pastoral – e a proibição e repressão oficial. O episódio mais recente foi a desqualificação da Nouvelle Théologie, em 1950. Nada indica melhor o que supôs o Vaticano II do que recordar que os então condenados foram depois seus grandes protagonistas.
Concílio carregado de promessas e exposto a decepções, diz você. Por que o Concílio e sua aplicação separou tanto em vez de unir?
Promessas acima de tudo, e muito reais. Porque, por fim, se abriam as comportas de inquietudes longamente represadas. A teologia e com ela a Igreja pôde respirar ares de esperança e de abertura ao futuro. Muito do que não tinha outra oportunidade que ser dito em voz muito baixa ou inclusive sob pseudônimo, foi acolhido, proclamado e recomendado pelo Concílio. Foi uma explosão de espírito, do Espírito. Mas, como sucede sempre em todas as renovações, a mudança produz resistências e conflitos; talvez mais, - como já dissera Newman e recordou Ratzinger – nas renovações conciliares, porque estas tocam o mais profundo, o sagrado.
Os que não compreendem, ou porque não podem ou porque não querem, resistem; e, quando têm poder, o impõem. Resistências as houve, e muito fortes, durante o Concílio. Depois foram se afirmando cada vez mais, mediante o controle e a proibição, esquivando obstinadamente o diálogo: um estilo que já parecia esquecido, que tem sido a rêmora, - me atreveria a dizer o câncer – da vida eclesial e do pensamento teológico. Porque isso paralisa a vida da palavra – que, testemunhou Isaías, não quer voltar ao céu sem fecundar cada época e cada cultura – e faz com que a Igreja apareça como alheia ao mundo, como portadora de uma notícia má em lugar de um “eu-angellion”, de uma boa nova.
Desde a chegada ao sólio pontifício de João Paulo II começou a desativação do Concílio?
Na realidade, os germes já estavam em certas atitudes do próprio Paulo VI (ademais, um papa de conscientes, autênticas e profundas convicções democráticas). Mas, cabe afirmar que a partir de João Paulo II a desativação se converteu em programa. Não duvido de que em sua intenção estava “salvar o concílio”, mas, objetivamente sua atitude foi uma paralisação da qual custará muitos anos poder sair. Sobretudo porque durou muito, até o gesto inesperado de Bento XVI: uma renúncia que ao mesmo tempo o honra e demonstra o equivoco desse diagnóstico.
Descongelar o Concílio pode ser a base ou o programa das reformas esperadas do Papa Francisco?
Passaram 50 anos. O descongelamento é certamente imprescindível. Mas, como um primeiro passo, porque, graças a Deus, apesar de tudo nem a teologia nem a vida eclesial estiveram paralisadas e, contra ventos e marés, se avançou em muitos aspectos. O que faz falta é confirmar os avanços e continuá-los. Creio que a perspectiva adquirida nos põe em condições de fazê-lo com mais serenidade, mais equilíbrio e mais espírito de diálogo. Neste sentido, nunca agradeceremos bastante ao Papa Francisco o fato “simples e elementar” de ter acabado, quase de golpe, com todo um estilo de governo a partir do isolamento solene e do poder inquestionável.
Como sair da “grave desafeição interna” quanto à moral? Ou, como passar da moral religiosa à vivência religiosa da moral?
Este é um capítulo fundamental que, em meu parecer, por não se ter renovado devidamente, está custando toneladas de prestígio eclesial e milhões de abandonos. Com a moral está pendente a revolução que – afora restos nostálgicos – já se tem feito com a ciência: reconhecer sua autonomia nos conteúdos e assim liberar a Igreja para exercer sua verdadeira missão na moral: a de fundamentação e animação a partir da confiança em um Deus que, criando-nos por amor, nos apóia na dura, porém gloriosa tarefa de realizar-nos humanamente, em autenticidade pessoal e convivência fraterna.
O que pretendo dizer se entende com um exemplo: o papel de um pai não é ditar a um filho adulto o que ele deve fazer, mas está em seu autêntico papel quando o anima e apóia para que seja autêntico, que cumpra com aquilo que reconhece como dever, embora possa custar-lhe muito.
Aqui radica o verdadeiro – e fecundo – valor do papel da Igreja na moral: de modo direto para seus fiéis, e como oferta em diálogo para os que não o são. Por aí vai também a dupla afirmação de Habermas: que a Igreja tem direito de intervir no diálogo público acerca das questões éticas, mas que deve intervir com argumentos éticos, não diretamente religiosos.
É possível aprovar a “assinatura pendente” da democratização eclesial?
Possível é. E necessário também. Porém difícil, embora eu tenha esperança de que se fará, pela força da verdade evangélica – quem manda sirva, o primeiro seja o último – e pela pressão cultural: uma igreja atualizada não pode viver com esquemas autoritários numa cultura que, pese aos abusos, adotou convicções democráticas. Está pendente a assinatura definitiva: compreender que a “origem divina do poder” vem de Deus certamente; mas, vem através da comunidade.
Embora São Paulo falasse do imperador – “toda autoridade vem de Deus” (Ro 13,1) -, a teologia, sobretudo com Suárez e Bellarmino, o aclarou a respeito do poder político contra os privilégios e abusos do “direito divino dos reis”. Porém não se fez – ainda – assim com respeito à Igreja, onde a aplicação resulta mais óbvia e evidente, pois a partir da fé sabemos que toda ela está habitada e vivificada pelo Espírito.
O “omnímodo poder papal” é evidente, uma vez mais, com Francisco, que com seus gestos está imprimindo uma nova dinâmica a toda a Igreja?
Sua atitude está supondo uma autêntica revolução, um vendaval de espírito – de Espírito renovador. Está criando as condições para as renovações concretas que estão pendentes. A culminação seria que já em sua vida fosse possível levar a cabo o paradoxo de realizar dentro da igreja, num círculo sagrado, a renovação do poder a partir do poder: que o “omnímodo poder papal” – “a sede suprema não pode ser julgada por ninguém” – se transforme a si mesmo, decretando juridicamente que também ele está dentro da igreja, através da qual se recebe e dentro da qual deve realizar-se em comunhão universal e diálogo fraterno. A Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium) o proclamou como princípio fundante em seu capítulo segundo, ao definir todo ofício como serviço dentro da comunidade.
Você propõe o modelo da vida religiosa para os cargos na Igreja.
Este é um capítulo não devidamente valorado. Antes inclusive, séculos antes que na sociedade civil, as ordens religiosas compreenderam que o modo mais evangélico e realista de governo era mediante a eleição e a duração temporal dos cargos de governo. Creio que isto urge para os cargos hierárquicos na igreja, sim, fiel ao evangelho, que manter o passo de uma história em ritmo acelerado. De fato, a norma da aposentadoria aos 75 anos é já um claro começo. Tímida, sem dúvida, porém e sobretudo, um reconhecimento da legitimidade do princípio, como a seu modo acaba de sê-lo a renúncia de Bento XVI.
Voltam os pobres e a Teologia da Libertação. O que faz alguns meses diziam alguns teólogos como você e eram declarados quase hereges, agora o diz o próprio Papa?
É a mudança de clima. A renovação a partir das bases. O florescer dos frutos que já estavam aí, em germinação fecunda e fermentação evangélica. Evidente para a teologia da libertação. Creio que também, em geral, para a teologia e as iniciativas eclesiais.
Por que cai por seu peso o argumento contra a ordenação sacerdotal feminina de que “Jesus só acolheu apóstolos varões”?
Pois, justamente por seu peso. Os exegetas levam tempo dizendo que não há motivos bíblicos para essa negativa. E eu insistiria num que não se costuma citar, ao menos com a devida ênfase. Se houvesse algum argumento que pudesse merecer uns segundos de consideração, não seria que no círculo dos apóstolos não havia nenhuma mulher, pois isso tem uma evidente explicação na sociologia da época. Seria antes o fato de que não havia nenhum estrangeiro, porque isto, sim, que – numa interpretação fundamentalista – poderia enlaçar com a clara decisão de Jesus de limitar a Israel seu apostolado e o dos discípulos. Tomado ao pé da letra, não seriam possíveis precisamente nem um papa polaco, nem um alemão. Por sorte a primeira igreja compreendeu bem o alcance biográfico dessa limitação e abriu o apostolado aos estrangeiros... e às mulheres.
Anima-o esta nova etapa eclesial?
Muito. Nós que temos vivido a explosão conciliar, com seu luminoso sentido de liberação e esperança, sentimos de novo aquele ar no rosto. À sensação de paralisia segue um ferver de sangue novo e inquietude vital, após o tempo de inverno há o germinar de primavera.
Deixarão Francisco plasmar sua revolução tranquila?
Tranquila, tranquila não poderá ser. Mas este Papa é um pastor e tem experiência de governo. Vai à vida, à animação da comunidade, à união das igrejas, à chamada ao mundo para lutar contra a fome e a pobreza. Não tem, nem as necessita, presunções de teólogo e por isso respeitará a autonomia das diversas funções e carismas na Igreja.
Como ajudar o Papa nessa tarefa?
Incluindo-se, cada um e cada uma a partir de seu lugar e de suas capacidades, no movimento iniciado por ele. Fazer da Igreja um povo vivo, fraternalmente inserido num mundo em mudança, a cujo futuro possa contribuir com a mensagem evangélica. Uma mensagem carregada de sentido e esperança, que, se sabemos vivê-lo em autenticidade e liberdade para dentro, pode resultar contagioso como oferta a um mundo que dele necessita como o pão de cada dia.
O que opina sobre a encíclica “Lumen fidei”?
Trata-se de um fenômeno “raro”. Não sei se desejável, pois um retiro é um retiro e ponto final, como diria Fraga. Em todo o caso, honra ao Papa Francisco, que mostra humildade e desejo de evitar qualquer aparência de protagonismo personalista e, menos ainda, de ruptura institucional. Quanto ao conteúdo, fora os pequenos acréscimos – que seria preciso conhecer com exatidão – é puro Ratzinger.
Possivelmente não do melhor teólogo Ratzinger: vejo a encíclica como demasiado extrinsecista nas relações fé-razão, continua com pouca abertura o diálogo entre as religiões, fica dolorosamente unilateral nas relações entre o Magistério e a teologia e continua com um modo pouco atualizado de ler a Bíblia. Não quisera, contudo, desconhecer sua busca de uma visão integral, circundando as duas encíclicas anteriores, às vezes com formulações verdadeiramente acertadas e certa abertura ao mundo do pensamento secular.
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“A atitude de Francisco é uma autêntica revolução, um vendaval de Espírito renovador”. Entrevista com Andrés T. Queiruga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU