29 Abril 2013
Dois filmes recentes retomam questões-chave para a teologia negra, que, hoje, está comprometida, culturalmente, com o estudo das slave narratives, os relatos do tempo da escravidão. Neles, encontra-se uma teologia na qual a fé em Deus e em Cristo é expressada com a linguagem ancestral da cosmovisão africana.
A análise é do teólogo italiano Rosino Gibellini, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em filosofia pela Universidade Católica de Milão. O artigo foi publicado no blog da Editora Queriniana, 22-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O cinema está propondo nestas semanas – com dimensão internacional – o tema da escravidão praticada em particular nos Estados do sul dos Estados Unidos antes da Guerra Civil (1860-1865) com dois filmes.
O duro filme de Tarantino, Django Livre, que, através da ficção de um célebre escravo, ao qual são removidas as correntes, permite uma revisitação dos campos de trabalho de algodão e tabaco, e das fazendas, onde os escravos trabalhavam, submetidos também a práticas de extrema e perversa desumanidade, reconstruídas no filme com realismo.
Continua sendo um documento contra o racismo cruel da América branca. Um historiador escreveu: "Um reino de terror prevalecia em muitas partes do Sul" (cf. alguns livros que retornaram à atualidade historiográfica, do dossiê sobre a Teologia Negra, Giornale de Teologia, 109, 1978).
O douto filme de Spielberg – quase um contraponto ao filme de Tarantino –, de seco título Lincoln, reconstrói todo o processo, até mesmo tortuoso, para chegar, no fim da Guerra Civil, à aprovação da famosa 13ª Emenda à Constituição norte-americana, que abole a escravidão (1865) em todos os Estados Unidos, incluindo os 13 Estados norte-americanos secessionistas do Sul (Alabama, Arkansas, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Louisiana, Mississippi, Tennessee, Texas, Virgínia).
O filme termina com o som dos sinos, pela dupla vitória anunciada – fim da guerra (600 mil mortos) e abolição da escravidão –, mas também com a morte do presidente Lincoln, três dias depois da vitória.
Certamente, outros cadáveres seguirão no tempo – em conexão com a causa dos negros –, Martin Luther King, Malcolm X, o presidente Kennedy.
A luta pela dignidade dos negros nos EUA da arrogante supremacia dos brancos também é um capítulo da teologia do século XX – a Black Theology – que eu ilustrei em um capítulo escrito na biblioteca especializada em Black Studies, do International Theological Center, de Atlanta (Geórgia), para a Teologia do Século XX (1992, 2007, 6, 411-445).
A teologia negra está agora comprometida, culturalmente, com o estudo das slave narratives, os relatos do tempo da escravidão, que contêm uma teologia, em que a fé em Deus e em Cristo é expressada pela comunidade negra com a linguagem ancestral da cosmovisão africana.
Entre os textos recentes da black theology deve-se incluir o livro de James Cone, dedicado a uma sofrida comparação, A Cruz e a Árvore do Linchamento (New York, 2011).
O linchamento era uma forma de bárbaro suplício para os escravos, que, por punição (fora de qualquer regulamentação de lei), eram mortos enforcados em uma árvore, para o escárnio dos brancos. Os historiadores da escravidão enumeram em alguns milhares os casos de prática do linchamento de negros.
Agora, James Cone, o principal representante da teologia negra, autor de Uma Teologia Negra da Libertação (1970) e de O Deus dos Oprimidos (Queriniana, 1978), desenvolve no seu novo livro a história do linchamento, com ampla documentação histórica, acompanhada de uma intensa reflexão teológica.
Foi definido como "um livro devastador e redentor".
Citamos a página final do livro do teólogo metodista, natural do Arkansas, professor do Union Theological Seminary, de Nova York:
"A cruz de Jesus e a árvore do linchamento das vítimas negras não são literalmente a mesma coisa – histórica e teologicamente. No entanto, esses dois símbolos ou imagens estão intimamente conectados ao significado espiritual de Jesus para a vida negra e para a vida branca vivida juntas naquela que o historiador Robert Handy chamou de 'a América cristã'.
Negros e brancos estão unidos em Cristo no seu encontro brutal e belo nesta terra. Nem os brancos nem os negros podem ser plenamente compreendidos sem referência ao outro por causa da sua herança religiosa comum, assim como da sua relação conjunta com a experiência do linchamento. O que aconteceu com os negros aconteceu com os brancos.
Quando os brancos linchavam os negros, eles estavam linchando literal e simbolicamente a si mesmos – seus filhos, filhas, primos, mães e pais, e a fileira dos seus parentes. Os brancos podiam ser irmãos e irmãs maus, assassinos da sua pele negra, mas eram, no entanto, as nossas irmãs e os nossos irmãos. Estamos unidos na América pela fé e pela tragédia. Todo o ódio que expressamos uns aos outros não pode destruir o profundo amor mútuo que flui profundamente entre nós – um amor que dá o poder aos negros de abrir os seus braços para receber os muitos brancos que tiveram o poder do mesmo amor para arriscar as suas vidas na luta negra pela liberdade. Nenhum dos dois povos da América teve reuniões tão violentos e apaixonados pelas pessoas negras e brancas. Tornamo-nos irmãos e irmãs pelo sangue da árvore do linchamento, pelo sangue da união sexual, e pelo sangue da cruz de Jesus [...]
A árvore do linchamento é uma metáfora da crucificação feita pela América branca ao povo negro. Ela é o ponto de observação que melhor revela o significado religioso da cruz no nosso país. Neste sentido, os negros são figuras de Cristo, não porque quiseram sofrer, mas porque não tinham outra escolha. Assim como Jesus não teve outra escolha no seu caminho rumo ao Calvário, assim também as pessoas negras não tinham outra escolha para fugir do linchamento. As forças do mal do Estado romano e da supremacia branca quiseram isso.
No entanto, Deus tomou o mal da cruz e da árvore linchamento para transformá-los em uma beleza triunfante do divino. Se a América tiver a coragem de enfrentar o grande pecado e a perene herança da supremacia branca com arrependimento e a reparação, há esperança 'além da tragédia'" (pp. 165-166).
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A cruz e a árvore do linchamento. Artigo de Rosino Gibellini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU