17 Março 2013
Professor de ética e filosofia na Unicamp e doutor em filosofia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, Roberto Romano considera que Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, tem credenciais de sobra para enfrentar os dilemas da igreja num mundo multicultural, globalizado, acossado pelos avanços da ciência, cada vez mais dessacralizado.
Segundo Romano, a Companhia de Jesus, ordem fundada por Inácio de Loyola no século XVI, de onde provém o atual papa, é a que mais dialoga com os desafios da modernidade. "Eles estudam, estudam, estudam, debatem com pesquisadores laicos do mundo todo para saber como reafirmar da melhor forma os princípios da igreja".
A reportagem e a entrevista é de Laura Capriglione e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo,18-03-2013.
O filósofo foi, durante 12 anos, frade dominicano. O Brasil vivia sob a ditadura militar, fase em que o Convento dos Dominicanos de São Paulo converteu-se em base de apoio da luta armada e de seu líder principal líder, Carlos Marighella (1911-69).
O jovem Romano (o nome homenageia a igreja de Roma) chegou a amargar um período atrás das grades, no famoso presídio Tiradentes. É com esse histórico que Romano avalia as denúncias de que Francisco teria delatado dois padres jesuítas para a ditadura argentina. Segundo Romano, o pontífice está pagando pelos erros de toda a igreja naquele país, que colaborou ativamente com a repressão.
Eis a entrevista.
Qual a importância de, pela primeira vez, o papa ser um jesuíta?
A Companhia de Jesus foi criada no século XVI como parte da Contrarreforma. As pessoas ligam a Contrarreforma apenas ao combate à Reforma Protestante. Mas, na verdade, tratou-se de uma estratégia definida em relação à Reforma e ao Renascimento.
Os desafios que eram apresentados à igreja na época vinham de um mundo que já era em boa parte laico e que estava produzindo uma série de saberes que ultrapassavam o quadro da metafísica tomista [de são Tomás de Aquino (1225-74)], adotado oficialmente pela igreja.
Os jesuítas foram produzidos como verdadeiros guerreiros em luta pela conquista da modernidade para a Igreja Católica e para combater o protestantismo. Eles prepararam-se com todas as armas da cultura que era sua adversária.
E como essa cultura jesuíta pode ajudar nos dias de hoje o governo da igreja?
Não se pode pertencer a essa ordem sem um trabalho intelectual. É uma ordem que cultiva a ciência e a técnica. O caso do papa Francisco ilustra bem esse fato: primeiro, ele se formou em química, então, sentindo essa adequação com a ordem jesuítica, foi ser um deles. Muitos são médicos, físicos, matemáticos, teólogos, filósofos. Dedicam-se a um diálogo com o mundo científico, tecnológico e político.
Você tem há séculos jesuítas nos Estados Unidos, na Alemanha, em Israel, no Brasil etc. Eles detêm um saber antropológico e científico muito aprofundado e ramificado internacionalmente. São uma ordem com capacidade intelectual e disciplina imensas. "Perinde ac cadaver" ou obedecer como um cadáver. Fazem tudo para a maior glória da igreja.
Quem é a "turma" do papa no Brasil?
Hoje, no Brasil, os jesuítas têm centros de excelência, como a Unisinos, no Rio Grande do Sul. Os temas mais relevantes do debate ético e religioso mundial aparecem lá: homossexualidade, aborto, vida, eutanásia.
Quem é a estrela jesuíta no Brasil?
É muito difícil encontrar um jesuíta estrela. Eles são avessos a esse brilhareco tão comum no meio acadêmico. De vez em quando, aparece um. Curiosamente, não pelo que ele fazia ou dizia, mas porque a igreja colocou-se contra o que ele fazia. Foi o caso de Teilhard de Chardin [1881-1995], jesuíta francês. A igreja proibiu-lhe que continuasse suas pesquisas sobre a evolução. Aí, contra a vontade dele, ele tornou-se famoso.
A escolha de um jesuíta pode significar um arejamento da igreja?
Vai depender da capacidade de resistência da Cúria Romana a esse tipo de posição. Houve um movimento de centralização terrível no período de Pio XII (1939-58), que reprimiu o quanto pôde as divergências internas e legou um poder imenso à Cúria quando morreu.
João XXIII foi um grande papa justamente por ter enfrentado a Cúria e convocado o Concílio Vaticano II. Isso permitiu que o papa Paulo VI governasse em colegialidade.
Com João Paulo II, a Cúria voltou ao centro, com repressão, perseguição etc. Foi um dos papados mais repressivos da história da igreja. Eleito Ratzinger, o papa Bento XVI, ele não conseguiu dominar a Cúria. Esse desafio o papa jesuíta terá de enfrentar.
Como?
A igreja tem movimentos de sístole e diástole. Há os conciliaristas, que defendem o Concílio e o colégio dos bispos como autônomos em relação ao papa, e há os que defendem o poder absolutista do papa. Conforme a crise, a igreja apela para a colegialidade ou para a hipercentralização do poder. O que Francisco pode fazer é, pouco a pouco, aumentar a colegialidade.
Há alguma chance de o novo papa flexibilizar a imposição do celibato?
Eu acho muito difícil, mas será uma das questões a ser debatida nessa possível colegialidade. O papa terá de estabelecer um diálogo com os bispos nacionais e colocar na pauta todos esses problemas, inclusive a questão do celibato. Mas não sei se Francisco, pela idade, terá forças suficientes para tanto.
Como o senhor avalia a denúncia sobre a suposta colaboração do novo papa com a ditadura argentina?
Se existe um problema gravíssimo é o fato de a igreja argentina ter colaborado ativamente com a repressão. Foi muito mais do que uma simples omissão. A Argentina presenciou uma unidade da igreja com o regime ditatorial que é espelho do que já havia acontecido na Europa - na Espanha franquista, na Itália fascista, na Alemanha nazista. Não é por acaso que, depois da ditadura, a igreja perdeu um número imenso de fiéis na Argentina. Aliás, quem mais colaborou com a repressão ditatorial na Argentina não foram os jesuítas. Foram os dominicanos, a mesma ordem que, no Brasil, abrigou Carlos Marighella, o inimigo número um do regime militar.
Como é possível?
Essas ordens têm várias tendências internas. No caso dos jesuítas, essas tendências são mais disciplinadas. No caso dos dominicanos, as tendências transbordam em público porque a ordem tem origens históricas e ideológicas muito diferentes. Quando os dominicanos quiseram trazer a ordem para o Brasil, dom Pedro II disse que jamais deixaria que inquisidores entrassem. Mas aí contaram-lhe que eram os dominicanos franceses, de tendência socialista, e ele permitiu. Eram dominicanos diferentes dos que foram para a Argentina, herdeiros do ramo espanhol, ligados à tradição inquisitorial e, mais tarde, ao franquismo.
Para mim, o papa Francisco pode estar pagando pelos pecados da igreja argentina como um todo. Até porque acho muito esquisito que um superior jesuíta colaborasse ou mesmo abandonasse à morte ou para a tortura dois "soldados" da sua própria ordem. Não se esqueça de que a Companhia tem a organização de um Exército. É preciso investigar melhor. É contra o espírito de disciplina da ordem.
Como o novo papa tende a se relacionar com a Renovação Carismática?
Ele pode aproveitar muito. Essa sabedoria antropológica que o jesuíta tem traduz-se justamente pela capacidade que eles têm de usar todos os movimentos que possam levar a uma expansão da fé. É evidente que parece um pouco esquisito pensar em um padre intelectualizadíssimo como o jesuíta em um movimento como a Renovação Carismática. Mas é assim que eles atuam. Na China do século XVII, eles adotaram a língua, os costumes, os paramentos chineses, o culto aos ancestrais e fizeram de Confúcio a filosofia de base. Contra os jesuítas, estavam os dominicanos que queriam impor o latim e que a filosofia de Confúcio fosse declarada demoníaca. Ganharam os dominicanos, e a igreja perdeu a China.
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Por ser jesuíta, papa Francisco pode dialogar com a ciência. Entrevista com Roberto Romano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU