29 Janeiro 2013
Em seu novo filme, Margarethe von Trotta apresenta a formidável obsessão filosófica que reina em Hannah Arendt, desde sua juventude até a maturidade.
A opinião é da filósofa italiana Francesca Rigotti, professora da Universidade de Lugano, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 27-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Margarethe von Trotta, a diretora de Anos de Chumbo (1981), dedicado à biografia da terrorista Gudrun Ensslin, de Rosa Luxemburgo (1986), sobre a luta da militante e teórica socialista contra a guerra, de Visões. Sobre a vida de Hildegard von Bingen (2009), em torno da homônima abadessa medieval, concentra o seu último filme, lançado nos cinemas alemães no dia 10 de janeiro, na filósofa e teórica da política Hannah Arendt, figura do mais alto nível entre os pensadores do século XX. Isto é, do século com o qual a Alemanha ainda não acabou de fazer as contas, e talvez nunca acabará, por causa daqueles 12 anos de história que pesam mais do que os mil (supostos) anos do Terceiro Reich.
Isso explica, talvez, as críticas que são dirigidas ao filme pela imprensa e pelo público em geral e que se referem, principalmente, ao aspecto político: como se Arendt tivesse sido unicamente a autora de Banalidade do mal e não a pensadora que revolucionou a filosofia, transformando-a, e não é pouco, de estar-por-morrer, como toda a tradição até Heidegger e além a havia lido, a estar-por-nascer, como bem evidenciou na Itália uma das suas intérpretes mais agudas, Adriana Cavarero.
Mas voltemos ao filme, que começa em 1960, com o sequestro, por parte do Mossad (o serviço secreto israelense), de Adolf Eichmann, que fugiu para a Argentina depois da guerra. Arendt foi a Jerusalém, enviada pela revista The New Yorker, para relatar o processo que lá se desdobrava contra um dos principais organizadores do aparato de extermínio. Ela o assistiria da sala de imprensa, e não no tribunal, onde poderia se sentar, mas não fumar, e de lá olharia para o acusado em uma tela de televisão em preto e branco, assim como o espectador o vê no filme.
Os artigos de Arendt na revista e no livro que se seguem (Eichmann em Jerusalém, de 1963, publicado depois na Itália com o título A banalidade do mal) desencadeiam reações acesas, e muitos dos seus colegas e amigos, o filósofo judeu Hans Jonas, também ele emigrado para os EUA, e o sionista Kurt Blumenfeld, que se mudou para o recém-nascido Estado de Israel, tomariam distância dela.
O agente do nacional-socialismo, de fato, não é visto por Arendt como uma besta ou como um psicopata, não é o monstro diante do qual ela imaginava que se encontraria, mas é um burocrata sem caráter, ou, melhor, quase ridículo na sua diligência e obediência. Além disso, o livro de Arendt destaca o trágico papel desempenhado pelos Conselhos dos Judeus (Judenräte), instituídos muitas vezes por força dos nazistas, nos quais as vítimas eram forçadas a realizar tarefas que levariam à sua autodestruição, dentro de um perverso sistema de descarregamento de culpas.
São essas difíceis perguntas sobre o Holocausto que atraem a atenção da crítica e do público, e que fazem com que quase todas as observações se concentrem em um ponto: Eichmann foi realmente um dócil empregado da morte ou o feroz e convicto antissemita, com um papel de primeiro plano na condução do extermínio, que as pesquisas históricas posteriores identificariam?
O filme também apresenta a jornada diária de Arendt, a sua vida de emigrada intelectual em Nova York, em meio aos livros, em meio aos pensamentos e em meio à fumaça dos onipresentes cigarros em tempos em que fumar era socialmente aceito, até mesmo promovido. Aqui também alguns críticos não aprovaram o fato de von Trotta mostrar um casal burguês que se ama, formada por Hannah Arendt e pelo segundo marido, Heinrich Blücher (após o fracasso de seu casamento com Günther Anders, que não é mencionado no filme).
Parece incomodar o fato de que os dois se chamem com apelidos afetuosos e se troquem efusões, em cenas da vida normal, inocentes e agradáveis, reconstruídas com cores muito outonais, que envolvem os dois sozinhos ou com amigos e conhecidos do seu círculo intelectual em situações até mesmo divertidas, quando, por exemplo, os emigrados alemães, imersos em apaixonadas discussões, escorregam do inglês ao alemão, enquanto os nativos os norte-americanos monolíngues – incluindo uma amiga íntima de Hannah Arendt, Mary McCarthy – os vê com uma ponta de incômodo (e de inveja).
Barbara Sukowa, a atriz que interpreta Arendt soberanamente, ao ponto de nem sequer precisar se assemelhar a ela fisicamente, faz com que ela fale inglês com um forte sotaque alemão, permitindo-nos refletir sobre a relação da filósofa com a terra de origem e com a que a havia acolhido e lhe dera uma cidadania depois de anos e anos em que Arendt havia sido apátrida.
Ela continuou sendo uma alemã na América? Sabemos o quanto era importante para Arendt a língua materna, o que lhe restara da Alemanha, senão nada. Além disso, ela havia crescido na cultura e na filosofia clássicas, conhecia magistralmente grego e latim, e uma formação assim não se perde nem mesmo vivendo nos Estados Unidos, ainda mais se estamos ligados, como Arendt estava, ao grupo, para ela importantíssimo, dos emigrados alemães.
Aquele era um pedaço de casa, era a possibilidade de expressar exatamente o que pensava, era uma fonte de alimento intelectual para ainda se alimentar e ao qual ela sempre recorreu, mesmo que tenha se envolvido na política norte-americana e escrito sobre as condições dos Estados Unidos.
Da vida na Alemanha antes da emigração, von Trotta inseriu no filme poucas referências: duas cenas breves, mas tocantes, dedicadas à paixão sentimental-filosófica de Hannah Arendt pelo seu mestre de Marburg, Martin Heidegger. Cenas de grande delicadeza, para fazer referência à paixão que envolveu o professor de filosofia de 35 anos, casado e com filhos, e a promissora aluna de 19 anos, que, posteriormente, afastou de si o pensamento por aquele homem e condenou os seus conluios com o nazismo, mas não conseguiu apagar a influência da sua filosofia, que surge poderosa no filme no discurso final por ela pronunciado e dirigido aos seus estudantes universitários.
Um discurso apaixonante e envolvente, que não trata apenas do mal e da sua banalidade – um aspecto do pensamento de Arendt, mas também não o único e nem mesmo o mais importante –, mas sim da filosofia, do conhecer e do pensar, e da superioridade do pensar sobre o saber. Pensar, compreender, entender, era essa a obsessão de Arendt, que impregnava o seu estudo e a sua pesquisa e o seu ensino, e que von Trotta entendeu tão bem e buscar nos fazer entender nesse magnífico filme.
Uma formidável obsessão que reina nos seus livros e nos seus livros, a partir do admirável trabalho juvenil – a tese de doutorado em Heidelberg, com Jaspers, sobre o conceito de amor em Agostinho – até os escritos políticos da maturidade.
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A provocação de Hannah e o novo filme de von Trotta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU