29 Janeiro 2013
Não é fácil interpretar qualquer grande evento, por isso não é de se admirar que hoje haja discordância sobre como interpretar o Concílio Vaticano II. Aqui, eu quero inverter a questão para indicar como "não" interpretá-lo.
A opinião é do jesuíta norte-americano John W. O'Malley, professor do departamento de teologia da Georgetown University e autor de What Happened at Vatican II [O que aconteceu no Vaticano II] (Harvard University Press).
O artigo foi publicado na revista America, dos jesuítas dos EUA, de fevereiro de 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não é fácil interpretar qualquer grande evento, por isso não é de se admirar que hoje haja discordância sobre como interpretar o Concílio Vaticano II. Aqui, eu quero inverter a questão para indicar como "não" interpretá-lo. (É claro, os leitores astutos verão que essa é apenas uma forma sorrateira de apresentar pontos positivos.) Alguns desses princípios são, de fato, uma preocupação direta apenas para historiadores ou teólogos. As questões que subjazem a eles, no entanto, deveria ser motivo de preocupação para todos os católicos que prezam pela herança do concílio. Estes 10 princípios negativos são simplesmente uma forma duvidosa de nos lembrar do que está em jogo nas controvérsias sobre a interpretação do concílio.
1. Insistir que o Vaticano II foi apenas um concílio pastoral
Esse princípio está errado por dois motivos. Primeiro, ele ignora o fato de que o concílio ensinou muitas coisas – a doutrina da colegialidade episcopal, por exemplo, que não é pouca coisa. Foi, portanto, um concílio doutrinal, assim como pastoral, mesmo que tenha ensinado em um estilo diferente dos concílio anteriores. Em segundo lugar, o termo pode ser usado para sugerir uma qualidade efêmera, porque os métodos pastorais mudam de acordo com as circunstâncias. Intencionalmente ou não, portanto, o termo "pastoral" consigna o concílio a um status secundário.
2. Insistir que foi um acontecimento na vida da Igreja, e não um evento
Essa distinção tem seu valor em certos círculos. A sua importância é mais bem ilustrada por um exemplo: um professor tira um ano sabático, que passa na França. A experiência amplia a sua perspectiva. Ele volta para casa enriquecido, mas de novo retoma as suas rotinas anteriores. Seu ano sabático foi um acontecimento. Mas suponhamos que ele, ao invés, recebe a oferta de um posto como diretor de uma instituição que não seja a sua própria. Ele levanta acampamento, se muda, abre mão do ensino e, em seu novo trabalho, aprende novas habilidades e faz novos amigos. Isso é um evento, uma significativa curva na estrada.
3. Banir a expressão "espírito do concílio"
Certamente, a expressão é facilmente manipulada, mas precisamos lembrar que a distinção entre espírito e letra é venerável na tradição cristã. Devemos, portanto, ser avessos a jogá-la no lixo. Mais importante, o termo "espírito", bem compreendido, indica temas e orientações que impregnam o concílio com a sua identidade, porque eles são encontrados não em um documento, mas sim em todos ou em quase todos eles. Assim, o "espírito do concílio", enquanto baseado solidamente na "letra" dos documentos do concílio, transcende qualquer um deles especificamente. Eles nos permite ver a mensagem maior do concílio e a direção à qual ele apontava a Igreja, que foi, em muitos aspectos, diferente da direção antes do concílio.
4. Estudar os documentos individualmente, sem considerá-los como parte de um corpus integral
Eu não posso nomear alguém que insista nesse princípio, mas essa foi a abordagem padrão para os documentos desde que o concílio terminou. É claro que, para compreender o corpus, é preciso primeiro entender as partes componentes. Assim, o estudo dos documentos individuais é indispensável e o primeiro passo para a compreensão do corpus. Muitas vezes, no entanto, até mesmo comentaristas pararam nesse ponto e não continuaram investigando como um texto específico contribuiu para a dinâmica do concílio como um todo, isto é, para o seu "espírito". Sem muito esforço, é fácil (e imperativo) ver a relação nos temas e na mentalidade, por exemplo, entre o documento sobre a liberdade religiosa e o documento sobre a Igreja no mundo moderno.
5. Estudar os 16 documentos finais na ordem da autoridade hierárquica, e não na ordem cronológica em que eles foram aprovadas no concílio
Os documentos, é claro, têm diferentes graus de autoridade (constituições antes dos decretos, decretos antes das declarações). Mas esse princípio, quando tratado como exclusivo, ignora a natureza intertextual dos documentos do concílio, isto é, a sua interdependência – um texto que se constrói sobre o outro na ordem em que fizeram a sua viagem ao longo do concílio. O documento sobre os bispos, por exemplo, não poderia ser introduzido no concílio enquanto o documento sobre a Igreja não estivesse fundamentalmente pronto, especialmente por causa da importância crucial da doutrina da colegialidade que estava em debate na "Constituição dogmática sobre a Igreja". Os documentos, portanto, parafraseavam, tomavam emprestado e adaptavam-se uns aos outros enquanto o concílio seguia em frente. Assim, eles formam um todo coerente e integral, e precisam ser estudados dessa forma. Eles não são um punhado de unidades separadas. Brincar com um dos documentos, portanto, é brincar com todos eles. (Infelizmente, a última edição da tradução amplamente utilizada dos documentos do concílio, editada por Austin Flannery, OP, imprime-os na ordem hierárquica, e não na ordem cronológica.)
6. Não prestar nenhuma atenção à forma literária dos documentos
A característica que mais obviamente distingue o Vaticano II de todos os concílios anteriores é o novo estilo em que ele formula os seus decretos. Ao contrário dos concílios anteriores, o Vaticano II não operou como um corpo legislativo e judiciário, no sentido tradicional desses termos. Ele estabeleceu certos princípios, mas não produziu, como os concílios anteriores, um corpo de regulamentos que prescreviam ou proscreviam modos de comportamento, com sanções anexas para a sua não observância. Ele não julgou nenhum criminoso eclesiástico nem emitiu nenhum veredicto de culpa ou de não culpa. Ele empregou mais caracteristicamente um vocabulário novo para os concílio, um vocabulário repleto de palavras que implicavam a colegialidade, a reciprocidade, a tolerância, a amizade e a busca de um campo comum. Em vez de ignorar essa característica distintiva, a explicação e a análise da forma literária dos documentos parece ser indispensável para o entendimento do concílio.
7. Ater-se aos 16 documentos finais e não prestar nenhuma atenção ao contexto histórico, à história dos textos ou às polêmicas referentes a eles durante o concílio
Esse princípio permite que os documentos sejam tratados como se eles flutuassem em algum lugar fora do tempo e do espaço, e possam ser interpretados em conformidade. Só examinando o árduo trabalho que o decreto sobre a liberdade religiosa, por exemplo, experimentou durante o concílio, ao ponto de parecer que não podia ser aprovado, é que podemos compreender o seu carácter pioneiro e o seu significado para o papel da Igreja no mundo hoje. Além disso, há documentos oficiais além dos 16 que são cruciais para a compreensão da direção que o concílio tomou – tais como o discurso de abertura do concílio do Papa João XXIII, "Alegra-se a Mãe Igreja", e a "Mensagem para o Mundo" – que o próprio concílio publicou assim que começou. Esses dois documentos abriram o concílio, por exemplo, para a possibilidade de produzir "A Igreja no Mundo Atual" [Gaudium et Spes].
8. Proibir o uso de quaisquer fontes "não oficiais", como os diários ou a correspondência dos participantes
Sem dúvida, as fontes oficiais – os textos finais e o multivolume Acta Synodalia, publicado pela Livraria Editora Vaticana – são e devem continuar sendo o ponto de referência primeiro e de maior autoridade para a interpretação do concílio. Mas os diários e as cartas dos participantes fornecem informações ausentes nas fontes oficiais e às vezes explicam melhor as muitas vezes súbitas reviravoltas que o concílio teve. Fazer uso de tais documentos não é uma inovação na academia. Os editores da magnífica coleção de 13 volumes de documentos relativos ao Concílio de Trento, o Concilium Tridentinum, não hesitaram em incluir os diários e as correspondências, que se revelaram indispensáveis para a compreensão desse concílio e são usados por todos os seus intérpretes.
9. Interpretar os documentos como expressões da continuidade com a tradição católica
Como uma ênfase na interpretação dos documentos do concílio, isso é correto e precisa ser reiterado. O problema surge quando esse princípio é aplicado de uma forma que exclui toda descontinuidade, isto é, toda mudança. É um absurdo acreditar que nada mudou, que nada aconteceu. No dia 22 de dezembro de 2005, o Papa Bento XVI ofereceu uma correção para tal exclusividade, quando disse em seu discurso à Cúria Romana que o que era necessário para o Vaticano II era uma "hermenêutica da reforma", que ele definiu como uma "combinação da continuidade e da descontinuidade em níveis diferentes...".
10. Fazer a sua avaliação do concílio em uma profecia autorrealizável
Esse princípio não trata tanto da má interpretação do concílio, como sim do emprego de avaliações para determinar a forma como o concílio será agora implementado e recebido. O princípio é perigoso nas mãos de qualquer um, mas especialmente perigoso nas mãos daqueles que têm a autoridade para tornar a sua avaliação operacional. Nesse sentido, "o slogan do partido", do romance Nineteen Eighty-Four, de George Orwell, acerta em cheio: "Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado".
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Dez formas para confundir os ensinamentos do Vaticano II. Artigo de John O'Malley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU