09 Dezembro 2014
"É inútil sublinhar que a intervenção daquele personagem nos transtornou em massa. Tudo aquilo que desde garotinho havia aprendido sobre o santo de Milão era, num instante, literalmente jogado na lata dos dejetos e em seu lugar eis-me diante de um homem repleto de contradições imprevisíveis e de uma coragem que beirava, dizendo pouco, a loucura", escreve Dario Fo, prêmio Nobel de Literatura, em artigo publicado por il Fatto Quotidiano, 04-12-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Recém terminada a última grande guerra, nasceram em Milão muitíssimos grupos culturais que ofereciam aos jovens das várias escolas, universidades e academias a possibilidade de enriquecer os conhecimentos e pensamentos.
Naturalmente os mais freqüentados eram em grande número de matriz comunista, anárquica ou religiosa. Entre estes sobressaía a ordem dos Jesuítas do Centro San Fedele, fundada pelo Padre Arcângelo Favaro, que publicava uma revista com argumentos e pesquisas realmente insólitas sobre questões da cultura, das lutas sociais e da justiça.
Eu tinha então dezoito anos e com os meus colegas de curso frequentei aquele grupo de pesquisa que, além disso, oferecia a nós rapazes um amplo espaço onde assistir a projeções cinematográficas de vanguarda e documentários sobre espetáculos, mostras internacionais de pintura e concertos de autores do passado e contemporâneos.
No final destas lições de arte e de história, que há anos o fascismo havia cancelado quase totalmente dos programas escolásticos, nos encontrávamos a participar dos debates. E foi precisamente num destes encontros que me encontrei assistindo a uma lição sobre Santo Ambrósio.
O relator – um jesuíta que, pelo aplauso com que fora acolhido, devia possuir uma credibilidade notável junto a todos os presentes– começou a desorientar o público desde as primeiras colocações: “Estou aqui para falar-vos de Aurelius Ambrosius, autêntico fundador da igreja cristã desta cidade que inventou a música sacra servindo-se dos cantos populares famosos nas tabernas e nas danças populares”.
Depois prosseguiu colocando a todos nós uma pergunta antes provocadora: “Ambrósio, que viveu e atuou aqui em Milão no IV Século depois de Cristo como conselheiro maior do imperador e depois constrangido a vestir pelo furor do povo a túnica de Bispo da cidade, deve ser considerado realmente um Santo Homem digno da fama e da santidade que lhe é prodigalizada? E ainda: tinha ele subido aos níveis máximos do poder por méritos indiscutíveis ou graças também ao apoio de homens da casta dos negócios políticos e financeiros, como ainda está em uso hoje? E, para terminar, era um homem justo e leal, humilde e tolerante como nos contam alguns historiadores da época ou um déspota arrogante e implacável? E, sobretudo, que relações tinha ele com a classe dos possuidores em relação à exploração das classes dos deserdados?”
“Deus... mas estamos seguros – perguntei aos meus companheiros de academia – que este sábio fabulador ainda faça parte dos jesuítas?”
É inútil sublinhar que a intervenção daquele personagem nos transtornou em massa. Tudo aquilo que desde garotinho havia aprendido sobre o santo de Milão era, num instante, literalmente jogado na lata dos dejetos e em seu lugar eis-me diante de um homem repleto de contradições imprevisíveis e de uma coragem que beirava, dizendo pouco, a loucura. Sobretudo as homilias de Ambrósio nos surpreenderam quase como se a gente estivesse participando de um jogo do massacre e da profanação.
Na mesma tarde fui à biblioteca de Brera, onde me tornara amigo de um dos responsáveis dos empréstimos e lhe perguntei se era possível ler algo de insólito sobre Santo Ambrósio. Ele exclamou: “Mas o que sucedeu a todos vocês rapazes, és o quinto que em meia hora chega aqui a perguntar-me sobre Santo Ambrósio!” E eu respondi: “Não podes entender, é uma história que tem a ver com os jesuítas!” A partir daquele dia recolhi documentações em grande número, todas extraordinariamente desconhecidas. Devo dizer a verdade: junto a Santo Ambrósio precisei estudar o inteiro período histórico do final da hegemonia romana sobre o mundo. Depois de quase trinta anos, na época na qual com Franca decidíamos abandonar o teatro tradicional e começar uma tournée que duraria dez anos num circuito completamente inventado de ginásios de esporte, igrejas desconsagradas, cinemas desativados, Casas do Povo, eis que retomo o projeto de escrever e colocar em cena uma história sobre Santo Ambrósio.
A maior parte dos meus companheiros de aventura me olha como se eu tivesse enlouquecido: “Em que coisa entramos, estamos aqui para falar dos problemas dos trabalhadores e dos estudantes em luta por uma nova cultura! O que fazemos? O que andamos organizando, um movimento para a revisão histórica dos santos da igreja?”
E assim tivestes que esperar ainda mais de vinte anos para chegar finalmente a poder armar uma história sobre Ambrósio a apresentar em teatro. Não num lugar qualquer, mas precisamente no Pequeno Teatro de Milão – o Strehler – com Franca nas vestes da mãe de Ambrósio e de Justina, a imperadora do reino de Roma. Não só, mas com a direção de Felice Cappa, organizamos uma retomada televisiva a oferecer à RAI, a fim de que a pusesse em tela.
Hoje, após cinco anos, estamos finalmente em condições de mostrar-vos este nosso trabalho mandado em onda da RAI 5, precisamente no dia dedicado a Santo Ambrósio, o Santo de Milão, (07 de dezembro) logo após abertura do concerto de abertura da temporada do Scala de Milão, aproximadamente no horário das 21h15min, horário local.
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Eu vos conto Ambrósio, a verdadeira história do Santo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU