05 Novembro 2014
Uma conferência recente explorou como a ideia de purgatório poderia funcionar na psicoterapia contemporânea. Muita coisa em comum foi encontrada, especialmente em relação ao orgulho, à esperança e ao amor.
A análise é de Mark Vernon, escritor e psicoterapeuta, autor de Love: all that matters (Hodder, 2013). O artigo foi publicado no sítio do jornal britânico The Tablet, 30-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o artigo.
Para muitos cristãos, a existência do purgatório é um artigo de fé. Mesmo para escritores protestantes, como C. S. Lewis, era compatível considerá-lo como o lugar onde os mortos continuam a sua jornada em direção a Deus: por que a nossa luta terminaria só porque morremos?, raciocinava ele. Mas será que o purgatório pode ter um significado secular também?
Sim, afirmou um grupo de psicoterapeutas, teólogos e historiadores em uma conferência recente. Eles se encontraram no Anna Freud Centre, em Londres, sob os auspícios do Museu Freud, sinalizando uma aproximação que agora está ocorrendo entre psicoterapia e religião.
O ceticismo de Sigmund Freud sobre a crença em Deus está diminuindo entre psicoterapeutas, e novas ligações estão sendo forjadas. O purgatório pode contribuir para isso porque a própria terapia pode ser interpretada como uma experiência profundamente purificadora. A chave é expandir a noção do purgatório como um lugar para onde vamos depois da morte a um estado de ser também, que pode ser vividamente conhecido na vida.
A representação muito influente do purgatório de Dante, na Divina Comédia, é particularmente instrutiva. Ele descreve o purgatório como uma montanha. À medida que os seus viajantes sobem, eles passam um tempo em seus vários terraços. As almas dos mortos são purgadas de vários pecados em cada fase, em que o primeiro é o mais profundamente enraizado e necessário de enfrentar, ou seja, o pecado do orgulho. Quando a alma está presa em um estado de orgulho, ela não pode nem mesmo se dar conta de sua necessidade de Deus. E, se isso acontecer, ela vai resistir à dependência implícita.
O exame das dinâmicas de tal pecado, que são gradualmente reveladas pelo tempo da alma no purgatório de Dante, pode ser comparado favoravelmente aos insights psicodinâmicos modernos. O orgulho, em particular, pode ser comparado ao que, muitas vezes, mostra-se como a questão fundamental na psicoterapia, o estado de espírito que os terapeutas chamam de narcisismo.
Estritamente falando, o narcisismo não é um amor de si mesmo, mas uma determinação de amar a si mesmo que falha constantemente. As defesas narcisistas contra o sentir-se indigno de ser amado, portanto, revertem-se à personalidade, e elas estão muitas vezes na forma de orgulho, porque uma das melhores defesas é a tentativa de tornar o mundo à sua própria imagem. É uma forma de onipotência fantasiosa. E assim como afastar-se de outras pessoas, porque é através de nossas vulnerabilidades que mais intimamente nos conectamos, o narcisismo afasta-nos do divino. Tanto o orgulho quanto o narcisismo confundem-se para Deus. De certa forma, a difícil tarefa na terapia é chegar a uma compreensão profunda de que a pessoa não é divina, mas um ser humano que depende do amor.
Essa percepção é profundamente preocupante se, para uma pessoa, uma das primeiras experiências de vulnerabilidade foi traumática, seja por uma razão ou outra. Por outro lado, sem essa confirmação, a vida fica parada.
Somente um indivíduo que consegue amar consegue crescer, percebeu Freud. Assim também, a alma deve permanecer na primeira elevação do purgatório de Dante até que ela possa reconhecer o seu orgulho e sua necessidade de abrir-se para o julgamento compassivo e misericordioso de Deus, mesmo que isso seja inicialmente experimentado como indesejável, doloroso e assustador.
O purgatório reflete aspectos da experiência terapêutica de outras formas também, continuou Kalu Singh, um dos participantes da conferência. Pode soar como uma observação banal, mas é fundamental que ambos levem tempo. Eles necessitam disso porque ambos devem levar ao mais profundo de nosso ser, de quem nos tornamos e poderemos nos tornar. O purgatório é um lugar de reconstrução, e, ainda, essa reconstrução é alcançada não por esquecer o passado, mas por não deixar o passado moldar inteiramente o futuro. A terapia pode ser experimentada dessa forma também.
É talvez por isso que os anjos bons de Dante parecem encarnar algumas das qualidades de um bom terapeuta. Eles acompanham os viajantes e dão espaço a eles. O que eles não fazem é atacá-los, tentá-los ou dificultar os processos mais profundos que podem se desdobrar. O psicoterapeuta, também, cuida da alma, como a palavra grega em si implica.
As formas em que o purgatório difere do inferno podem ajudar a desenvolver as comparações. Elas foram exploradas pelo psicanalista Richard Carvalho, que observou que, embora não haja esperança no inferno, como Dante colocou, há esperança no Purgatório. Na verdade, o purgatório é um lugar ou estado moldado pela esperança, apesar da dor: a dor é suportada não apenas como punição, como está previsto no inferno, mas como processo.
Pode-se colocar desta maneira: no inferno, um problema central é que a alma sente que é impossível deixar passar as más experiências. Assim, um "inferno de nossa própria fabricação" é a experiência de estar preso em estados perpétuos de inveja, raiva, vingança e ódio.
As explorações psicanalíticas dessas emoções, particularmente na obra de Melanie Klein, podem ser interpretadas notavelmente como a exploração dos sete pecados capitais por parte dos Padres da Igreja. Assim como Evágrio do Ponto advertiu seus irmãos de que o orgulho e assim por diante seria o que eles encontrariam ao se aventurarem na jornada interior a Deus, assim também o psicoterapeuta é treinado a tolerar os sentimentos negativos que emergem na relação que tem com seu cliente.
Mas, ao contrário do inferno, o purgatório permite que esses sentimentos sejam explorados e trabalhados. A tarefa da alma, assim como a da terapêutica, é encontrar uma maneira de sair do apego compulsivo, aquilo a que o cristianismo se refere como pecado, a trágica característica humana que, se deixada sem receber a devida atenção, vai repetir-se indefinidamente.
O reconhecimento do orgulho ajuda a identificar uma saída, porque é fundamental para a mudança e para a redenção, e isso não pode ser alcançado sozinho: se o inferno é solipsista, o purgatório é relacional. Em termos teológicos, a graça é operativa no purgatório, e, de forma similar, a psicologia moderna tem demonstrado que a criança precisa de pais que se doam para aprender como não ser pega e arruinada por seus sentimentos difíceis.
Como o terapeuta D. W. Winnicott costumava dizer, a criança precisa de um ambiente de carinho, a fim de ser capaz tanto de experimentar a gama completa de suas emoções quanto de sentir que pode sobreviver aos aspectos mais desagradáveis.
Uma leitura terapêutica do purgatório não é excessivamente anacrônica, sugeriu o historiador Miri Rubin. Quando as ideias sobre o purgatório desenvolveram-se em ritmo acelerado, na virada do primeiro milênio cristão, o purgatório foi concebido como um lugar onde você chega a um acordo consigo mesmo, porque você se vê claramente, talvez pela primeira vez. Isso quer dizer que, para a mente medieval, também, o purgatório não precisava ser um estado que você entra só depois de morrer. É um processo que é afetado pelo (e está) aqui e agora.
A disseminação de atividades culturais e sociais associadas ao purgatório, desde as "capelas de missas perpétuas" às indulgências, pode ser entendida dessa forma também. As ideias medievais sobre o purgatório contêm também a noção de que toda a história humana é uma espécie de purgatório, na medida em que a criação é resgatada e retorna a Deus.
A dinâmica crucial na Divina Comédia de Dante é, obviamente, o amor - a força que move o sol e as outras estrelas. Dante fala de cair em um arrebatamento ao provar o amor pela primeira vez, ao ver Beatrice. Mas esse amor romântico e cortês é gradualmente transformado no anseio não só pelo outro ser humano, mas pelo divino. É redirecionado por ser capaz de ser refletido, como poderiam dizer os psicoterapeutas.
E, de fato, o próprio Freud sentiu que o motor da psicanálise é o amor. É o desejo de esperar mais da vida que possibilita a capacidade de ir além das experiências avassaladoras de forma gradual, sendo capaz de obter uma compreensão delas e, a seguir, de incorporá-las. É a percepção de que elas podem impulsionar o indivíduo ao longo da vida, em vez de simplesmente deixá-lo preso a elas. Colocado de uma forma teológica, Dante percebe que ele ama a Deus através do amor que ele sente por Beatrice.
Carl Jung, antigo discípulo de Freud, notou que aqueles que buscavam sua ajuda na segunda metade de suas vidas enfrentavam problemas que eram, na base, invariavelmente religiosos. Ele argumentou que nós, homens modernos, tínhamos embarcado espontaneamente em novas formas de alimentar nossas almas.
Muitos de nós não conseguimos isso, e, dessa forma, o clero e os terapeutas precisam ser amigos, e não inimigos. À medida que a aproximação entre a psicoterapia e a religião continua, pensar sobre o purgatório pode vir a ser um lugar inesperado e, ao mesmo tempo, fecundo de encontro.
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Quando Freud encontrou-se com Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU