Por: Jonas | 24 Setembro 2014
“No mundo muçulmano, a quebra do nacionalismo liberal secular provocou um vazio espiritual, o colapso econômico e a humilhação nacional”, destaca o jornalista israelense Uri Avnery, em artigo publicado por Rebelión, 23-09-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Há seis décadas, meus amigos e eu temos advertido nossa gente: se não fizermos a paz com as forças árabes nacionalistas, nós teremos que nos ver com as foças árabes islamistas.
O conflito entre Israel e Palestina se transformará em um conflito judeu-muçulmano. A guerra nacional se transformará em guerra religiosa. Os conflitos nacionais são basicamente racionais. Tem a ver com o território. Em geral, podem ser resolvidos mediante um compromisso.
Os conflitos religiosos são irracionais. Cada grupo acredita em uma verdade absoluta e considera, de forma automática, todos os demais como infiéis inimigos do único Deus verdadeiro.
Não pode haver compromisso entre verdadeiros crentes convencidos que lutam por Deus e que recebem suas ordens diretamente do céu. Ao grito de: “É a vontade de Deus!”, as cruzadas massacravam muçulmanos e judeus. “Alá é o maior!”, proclamam os muçulmanos fanáticos e degolam seus inimigos. “Quem é como o Senhor entre os deuses?”, gritavam os macabeus, enquanto exterminavam todos os compatriotas judeus que haviam adotado os costumes gregos.
O movimento sionista foi criado pelos judeus secularizados, após a vitória da Ilustração europeia. Quase todos os seus fundadores eram ateus convencidos. Em sua maioria, estavam dispostos a utilizar os símbolos religiosos como elemento decorativo, mas foram fortemente criticados por todos os grandes sábios religiosos de seu tempo.
De fato, antes da criação do Estado de Israel, a iniciativa sionista era notavelmente isenta de dogmas religiosos. Inclusive, hoje em dia, os sionistas radicais falam do “Estado-nação do povo judeu”, não do “Estado religioso da fé judia”. Até mesmo para o campo “nacional-religioso” – os precursores dos colonos e semifascistas de hoje – a religião estava subordinada à meta nacional: a criação de um Estado nacional judeu em toda a terra situada entre o mar Mediterrâneo e o rio Jordão.
Esta arremetida nacional se encontrou, naturalmente, com a decidida resistência do movimento nacional árabe. Após algumas dúvidas iniciais, os líderes nacionais árabes se voltaram contra esse posicionamento. Esta resistência teve muito pouco a ver com a religião. É verdade, durante algum tempo a resistência palestina foi liderada pelo Grão-Mufti de Jerusalém, Haj Amin al-Husseini, mas não por causa de seu status religioso, mas, sim, porque era o líder do clã mais aristocrático de Jerusalém.
O movimento nacional árabe sempre foi decididamente secular. Alguns de seus líderes mais destacados eram cristãos. O partido pan-árabe Baath (“Ressurreição”), que chegou a dominar tanto a Síria como o Iraque, foi fundado por cristãos.
O grande herói das massas árabes da época, Gamal Abd-al-Nasser, ainda que formalmente muçulmano, era bem pouco religioso. Yasser Arafat, o líder da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), era em sua vida pessoal um muçulmano piedoso, mas sob sua liderança a OLP continuou sendo um corpo secular, com numerosos ingredientes cristãos. Arafat falou em liberar as “mesquitas e igrejas” de Jerusalém Oriental. Durante algum tempo, o objetivo oficial da OLP foi criar na Palestina um Estado “democrático e não confessional”.
Então, o que aconteceu? Como é que um movimento nacionalista se tornou um movimento religioso fanático e violento?
Karen Armstrong, a freira historiadora, destacou que o mesmo ocorreu simultaneamente nas três religiões monoteístas. Nos Estados Unidos, os cristãos evangélicos desempenham, hoje, um papel importante na política, em estreita colaboração com o establishment direitista judeu. Em todo o mundo muçulmano, os movimentos fundamentalistas estão ganhando força. E em Israel um fundamentalismo judeu messiânico está desempenhando um papel cada vez maior.
Quando acontece o mesmo em países e religiões tão diferentes, há de haver uma causa comum. Qual?
É fácil apelar para algo tão nebuloso como o que é expresso mediante a voz alemã Zeitgeist, o espírito dos tempos, mas isso realmente explica muito pouco.
No mundo muçulmano, a quebra do nacionalismo liberal secular provocou um vazio espiritual, o colapso econômico e a humilhação nacional. A resplandecente promessa do nasserismo terminou no abjeto engessamento de Hosni Mubarak. Os ditadores do Baath, em Bagdá e Damasco, fracassaram em sua tentativa de criar Estados modernos. Os militares na Argélia e Turquia não fizeram nada de muito melhor. Após a derrubada do democraticamente eleito líder iraniano Mohammed Mossadegh pelas potências ocidentais ávidas por petróleo, o infortunado Shah não pôde encher o vazio.
E durante todo esse tempo estava presente a visão humilhante de Israel, que passou a ser um minúsculo e desprezível implante estrangeiro a uma formidável potência militar e econômica que, uma vez e outra, prevalece sem dificuldade sobre os Estados árabes.
Após cada nova guerra, os muçulmanos se perguntam: O que acontece? Se o nacionalismo fracassou, tanto na paz como na guerra, se tanto o capitalismo como o socialismo não obtiveram êxito na criação de uma economia sólida, se nem o humanismo europeu e nem o comunismo soviético conseguiram encher o vazio espiritual, onde está a solução?
A resposta emerge, estrondosamente, das profundezas das massas: “A resposta é o Islã!”.
A lógica seria que a resposta israelense fosse contrária.
Israel é uma história de êxito. Não apenas possui uma poderosa maquinaria militar e uma capacidade nuclear credível, como também é uma potência tecnológica, com uma base econômica comparativamente sólida.
Porém, em momentos como agora, é o fundamentalismo messiânico, estreitamente aliado com um nacionalismo extremo, que está ditando nosso curso.
Nas vésperas da recente guerra, o comandante da brigada Giv’ati ditou uma ordem do dia para os seus oficiais. A nota surpreendeu a muitos.
A brigada Giv’ati foi uma excepcional força de combate na guerra de 1948 (eu fui um de seus primeiros combatentes e tenho dois livros sobre isso). Estávamos muito orgulhosos de sua composição. Seus combatentes eram uma combinação de filhos da elite metropolitana de Telavive e dos bairros mais pobres de seus arredores, uma combinação que resultou realmente exitosa e cuja eficácia se confiou no campo de batalha.
O comandante da brigada era um antigo lutador comunista clandestino, durante o regime nazista, que abraçou o sionismo e se tornou membro de um kibutz muito esquerdista. E a maioria dos oficiais de estado maior da brigada era como ele.
Não me lembro de um só soldado que usasse o quipá.
Imagine a nossa surpresa quando o comandante da atual brigada fez uma convocação à luta santa, para cumprir a vontade de Deus. Foi isto que o coronel Ofer Winter, que em sua juventude participou de uma escola religiosa-militar, disse aos seus soldados na véspera da batalha:
“A história nos escolheu como ponta de lança na luta contra o inimigo terrorista de Gaza, que injuria o Deus das batalhas de Israel (...). Eu elevo meus olhos ao céu e clamo com vocês: ‘Escuta, oh Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é Um!’. Oh Senhor, Deus de Israel, concede-nos o êxito em nosso caminho, pois nos dispomos a combater por Israel contra um inimigo que amaldiçoa o seu nome!”.
Nesta expedição, o objetivo oficial do exército israelense foi o de vigiar a fronteira e cessar o lançamento de foguetes contra cidades e povos israelenses. Porém, esse não é o objetivo do coronel. Enviou seus soldados para morrer (três deles fizeram isso) pelo Deus de Israel, contra os que amaldiçoam seu nome.
Se esse oficial fosse o único fanático religioso do exército já seria muito ruim. Porém, o exército está repleto de oficiais com o quipá, que foram doutrinados com fervor religioso e que, por sua vez, doutrinaram seus soldados com o mesmo espírito.
O partido sionista-religioso e seus fanáticos rabinos, muitos deles abertamente fascistas, trabalharam durante anos para se infiltrar sistematicamente no corpo de oficiais do exército. É um processo de seleção natural: os oficiais reacionários, que atuam como amos coloniais nos territórios ocupados, abandonam o exército e se tornam empresários do setor da alta tecnologia, ao passo que os fanáticos messiânicos são enviados para ocupar seu lugar.
O coronel, por certo, não foi repreendido e nem admoestado de forma alguma. Ao contrário, durante a guerra foi elogiado como um comandante exemplar na batalha.
Tudo isto me leva até o ISIS, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Grande Síria), que recentemente mudou seu nome para simplesmente “Estado Islâmico”. Essa mudança significa que os antigos Estados criados pelos colonialistas ocidentais, após a Primeira Guerra Mundial, foram abolidos. Haverá um Estado islâmico que abarcará todos os territórios islâmicos antigos e atuais, incluindo a Palestina (e incluindo Israel).
Trata-se de um fenômeno novo e aterrador. No mundo muçulmano existe, é claro, numerosos partidos e organizações islamistas, desde o partido governante da Turquia até a Irmandade Muçulmana egípcia ou o Hamas palestino. Contudo, quase todos eles circunscrevem sua luta a seus países nacionais - Turquia, Síria, Palestina, Iêmen. Seu objetivo é alcançar o poder e governar seus países. Até mesmo Osama Bin Laden queria, sobretudo, assumir o controle de sua terra natal Arábia.
O ISIS é algo muito diferente. Quer destruir todos os Estados, especialmente os Estados muçulmanos repartidos pelos imperialistas ocidentais em terra islâmica. Com uma horrível selvageria, elevada à categoria de símbolo religioso, empreendeu o caminho para a conquista do mundo muçulmano e, em seguida, do mundo inteiro.
Poder parecer um objetivo ridículo, tendo-se em conta que todo o empreendimento se sustenta em uns poucos milhares de combatentes. No entanto, essa pequena força já conquistou uma grande parte da Síria e do Iraque. Constitui uma expressão do desejo muçulmano em restaurar sua antiga glória, de seu ódio a todos aqueles (incluindo nós) que humilharam o Islã, da ânsia de valores espirituais. Impossível não se lembrar dos inícios do movimento nazista – seus ressentimentos, sua sede de vingança, seu atrativo para todos os pobres e humilhados.
Pode ser que demore apenas alguns poucos anos para se tornar uma enorme força que ameace todos os Estados desta região.
O ISIS constitui uma ameaça para Israel? É claro que sim. Caso mantenha o seu dinamismo, derrubará o regime de Assad e chegará à fronteira com Israel, onde nesta mesma semana outros rebeldes islâmicos já dispararam as primeiras rajadas.
Com semelhante ameaça perseguindo no norte, parece ridículo lutar em Gaza contra uma minúscula força islâmica patriótica – ainda que amaldiçoe o nome do Senhor.
É possível que reste pouquíssimo tempo para construir a paz com o movimento nacional árabe, e em especial com o povo palestino – do qual fazem parte tanto a OLP como o Hamas – e para nos unirmos na luta contra o Estado Islâmico.
A alternativa é aterradora.
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A religião vai se apoderando da política no Oriente Médio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU