29 Agosto 2014
A economista Maria da Conceição Tavares, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem mostrado preocupação com o pensamento econômico de maneira geral. Uma crise de ideias dada pela perda das utopias, como ela tem reforçado. Em um dos seus artigos mais recentes, publicado este ano na "Insight Inteligência", ela chamou o momento atual de "era das distopias", quando se perde inclusive a ousadia no pensar.
A entrevsita é de Vanessa Jurgenfeld, publicada pelo jornal Valor, 29-08-2014.
Para a ex-deputada federal pelo PT, além da crise de ideias, o Brasil enfrenta uma crise da indústria, que precisa ser revertida. Apesar de achar que o país pode não crescer neste ano, Conceição diz que, se houver uma recessão, ela será moderada.
Eis a entrevista.
Em um dos seus textos mais recentes, "A era das distopias", a sra. diz que não gosta de dar entrevistas porque não quer engrossar o coro de lamentações dos intelectuais. A sra. falava de uma crise do pensamento intelectual?
Eu acho isso. Na verdade, não temos mais o pensamento utópico, por isso eu falei em distopia. Esse seminário [2º Congresso Internacional do Centro Celso Furtado] foi uma tentativa de discutir um pensamento utópico porque foi uma tentativa de discutir desenvolvimento com democracia avançada. Isso [a distopia] inclusive impede, quando você fica ruim dessa maneira, que se veja o que aconteceu. Se você olhar esses últimos anos, do ponto de vista social, foram anos muito fecundos. Foi a primeira vez que se tentou de fato colocar o social na frente e subordinar o resto e não o contrário como se fazia, de colocar a economia na frente e o social no que sobrava. Mas nem essa parte o pessoal está conseguindo reconhecer. E agora, claro, quando ainda por cima aparecem problemas econômicos, como é o caso agora dessa conjuntura, daí então é que as cabeças começam a fundir mesmo.
Neste artigo, a sra. afirma que a redução da desigualdade foi a única coisa que se pode dizer que o PT cumpriu...
Esta foi uma das enormes conquistas, porque o pessoal não se dá conta de que ninguém nunca focou nas desigualdades. O nosso desenvolvimento era desigual por definição e todo mundo aceitava na maior tranquilidade que era isso mesmo. Nem a luta de classes era clássica, não tinha luta de classes entre os de baixo e os de cima, era entre os de cima só.
A sra. escreveu que o mundo reformista está mal e que o mundo revolucionário também e que esse tipo de pensamento teria sumido.
Praticamente. Não sobrou quase nada. Tanto que eu acho que nós somos uma das poucas experiências que ainda estão tentando ser reformistas. Mas assim mesmo é insuficiente. Imagina os outros países? É uma palavra fora do dicionário. Sobrou só o mundo neoliberal ou o mundo do capitalismo selvagem.
Nesta análise, a sra. diz que as pessoas estão perdidas em termos políticos e econômicos.
Não só as pessoas, mas as instituições. A imprensa, que é uma instituição, está completamente perdida e só faz aumentar a confusão reinante, os intelectuais propriamente ditos e a universidade também não têm proposta maior. Isso obviamente não é característica de um país num período emergente. Ao contrário. Essas são características de um país em crise. Mas eu não acho que a crise seja tão profunda quanto o imaginário das pessoas está fazendo sobre. Estou moderadamente otimista sobre o futuro do Brasil porque sou meio materialista-histórica neste sentido. O Brasil é um negócio que está maduro já para avançar e tem avançado em certas coisas. Mas, se isso não é percebido pelos principais agentes sociais, a sociedade fica meio paralisada.
A sra. considera que o país vive uma crise do setor industrial, de qual magnitude?
Acho que estamos vivendo uma crise no setor industrial, sim. Aliás, esta é praticamente a única crise que está à vista. Porque não está à vista nenhuma crise no agrobusiness nem uma crise maior nos serviços. Além de haver problemas em algumas certas infraestruturas, o que é visível. E eu estou falando em crise porque vai além daquilo que está ocorrendo no mundo.
Poderia explicar melhor?
No mundo está ocorrendo um processo geral de desindustrialização no sentido de que a participação da indústria no valor agregado do Produto Interno Bruto (PIB) diminui, ao contrário de serviços. E isso é geral. Mas estou dizendo que além disso, que é um fenômeno praticamente estatístico e que os países desenvolvidos já tinham entrado nesta etapa há muito tempo, tem o problema que a própria indústria que está aí não está resistindo à concorrência vinda sobretudo da China. E, por outro lado, a crise internacional dos mercados para onde nós habitualmente exportávamos virou uma certa complexidade e bateu na indústria. Como a verdade é que é quase impossível concorrer com chineses nessas condições em que estamos - e isso para quase todo mundo, não só para nós -, o coeficiente de penetração de importações na indústria aumentou muitíssimo e o grau de desnacionalização consequentemente também.
E o que se deve fazer para revitalizar a indústria?
Pode perguntar, mas eu acho difícil, porque você tinha que ter um grau de intervenção maior no comércio exterior e que o Brasil não tem nenhuma tradição de ter. Não é só a política cambial que dá problema - e ela dá também -, mas é que como você está com a taxa de juros alta, aparentemente para combater a inflação, o câmbio obviamente aprecia. Com o câmbio apreciado, não há indústria que aguente, quem dirá a nossa. Mas não é só isso. Eu acho que teriam que ser boladas algumas maneiras de furar a coisa antiprotecionista do liberalismo porque o liberalismo econômico não supõe que você possa proteger nada. Acho que precisava dar uma proteção a essa indústria fazendo uma certa regulação das importações.
É possível esse tipo de mudança neste momento?
Não há pacto político tampouco porque o capital financeiro está ligado ao capital industrial. Na verdade, a indústria está assim porque parte do seu sócio menor [o capital financeiro] está virando sócio maior. E o rentismo está predominando na economia brasileira. Não só na economia brasileira, isso é um problema mundial.
A sra. se refere ao fato de que não se vê muitos empresários em defesa de questões tradicionais como juros mais baixos para a melhora da produção, nem câmbio desvalorizado, por exemplo?
Não tenho visto eles pedirem protecionismo. Tenho visto eles pedirem favores.
A sra. considera que há alguns setores débeis na economia. Quais são esses setores e o que se deve fazer com eles?
Isso só com um diagnóstico mais apurado. Imagino que os tradicionais estejam mal: têxtil, calçados, todos que são bens de consumo de massa. Creio que não estão em muito boa situação pela concorrência maior no mercado internacional. Esses setores requereriam uma proteção mais intensa.
Deve-se ajudá-los e não deixá-los sob o risco de desaparecerem?
Não tem que desaparecer setor algum. E teria também que melhorar a produtividade não baixando salários, como o pessoal está propondo, que é um absurdo. Tem que melhorar a produtividade com introdução de inovação tecnológica. Também somos um país muito pouco inovador. A inovação tecnológica nossa é de 1,2% do PIB. Teria que ir subindo, mas não existe um patamar pré-determinado. Falo de introdução de tecnologia em setores já existentes, para melhorar suas eficiências. Não precisa trazer nenhum novo setor. Temos todos os setores aqui. A indústria brasileira é madura. Não falta setor, mas boa parte ficou velha, precocemente madura.
Alguns economistas não consideram que a indústria seja tão fundamental para a economia brasileira, com avanço do agronegócio e do setor de serviços. A indústria continua sendo carro-chefe para o desenvolvimento?
Carro-chefe ela não é de jeito nenhum no momento. Se fosse carro-chefe, não estávamos arrombados. Pelo lado da indústria, [a economia] não vai. Não é o carro-chefe, mas ela continua sendo a espinha vertebral, digamos. Por exemplo, tem o agrobusiness, tem. Mas a indústria é fundamental porque a agroindústria tem uma base industrial também, não é só uma base agrícola. No setor de serviços - e isso é importante - de qualquer maneira todos eles [os serviços] passam por um apoio industrial. A única coisa que eu estou otimista é que os novos [investimentos], tanto o do pré-sal quanto de parte do agronegócio, estão requerendo efeitos para trás em cadeia que vão revigorar a indústria. Então, estou mais otimista a médio prazo, mais por força da maturação de outros setores que têm demanda derivada sobre a indústria. E isso tem a ver com proteção. Por exemplo, em plataformas de petróleo era tudo importado. Não tinha nada produzido aqui e agora está sendo quase tudo produzido aqui, menos equipamentos elétricos com mais sofisticação. Mas teve impacto enorme sobre a indústria naval, que tinha quase acabado.
Em relação aos investimentos em infraestrutura, que avaliação a sra. faz?
O investimento em infraestrutura também tem que aumentar, inclusive para compensar um pouco o fato de que há um ciclo de consumo que está se esgotando. Tem que acelerar, sobretudo os urbanos. Os ferroviários-urbanos, os ferroviários de um modo geral, estão um pouco atrasados, e os de água e saneamento, que são fundamentais para uma nova civilização. Você não pode dar apenas consumo às massas nem apenas emprego. Tem que dar condições de salubridade mínima.
A sra. acha que essa crise da indústria é um dos grandes desafios do novo eleito à presidência?
Creio que não, porque ninguém está chiando. Sem a pressão, acho difícil haver mudanças. Quem teria que estar chiando são os empresários, os quais estão pedindo favores. Estão pedindo isenções, não estão pedindo proteção. A gente vê que neste último semestre a demanda por projetos no BNDES caiu, não está mais tão alta como estava. Há uma desaceleração mesmo da taxa de investimento.
A sra. entende que a economia brasileira está em recessão?
A gente pode estar perto de uma recessão. Se bobear, se não fizer alguma coisa para sair disso, podemos estar perto de uma recessão. Mas acho que seria uma recessão moderada. Eu insisto que, como você tem uma base de consumo mínima pelas próprias políticas sociais, isso por si só já garante uma base de sustentação, então, nunca vai ser uma recessão forte. E, por outro lado, estamos digerindo a crise externa relativamente bem. Mas a economia está desacelerando. Este ano, provavelmente, não vamos crescer nada.
Quão grave seria isso?
Desde que não atinja o emprego e o salário não é muito grave para os pobres, digamos. É grave para os ricos, que vivem do investimento. Mas essa triangulação do capital financeiro com a agroindústria e com a indústria propriamente dita é muito ruim porque a gente nunca pode dizer se eles não preferem uma taxa de juros alta para fazer rentismo em vez de crescimento. Sendo assim, fica difícil dizer quem são os elementos da classe dominante.
A sra. considera que é importante mudar a política macroeconômica para recuperar a indústria?
Não só a indústria, mas para recuperar a atividade de um modo geral. Para isso, você teria que baixar a taxa de juros para poder fazer minidesvalorizações do câmbio e isso pudesse tornar mais competitiva a indústria.
Com a atual taxa de juros, a 11% ao ano, quem vai querer investir em infraestrutura?
O público. O investimento público tem que crescer, fazendo um superávit fiscal menor. Eu defendo políticas anticíclicas, evidentemente. A essa altura, se você tem medo de uma recessão, tem que fazer política anticíclica e não pró-cíclica.
O que o Banco Central está fazendo agora a sra. consideraria uma política pró-cíclica?
No momento, ele não está fazendo nada. Ele está parado em cima da taxa de juro tal como ela está. Ele fez pró-cíclica antes, há alguns meses, sob pretexto de combater a inflação, mas depois ele achou que a inflação estava cedendo devagarinho, mas estava cedendo, e agora está sentado em cima. Provavelmente, está esperando que a inflação baixe mais um pouco para baixar a taxa de juros.
Agora era hora de uma medida anticíclica?
Que precisam ser tomadas medidas anticíclicas não há a menor dúvida. Faz poucos meses que a conjuntura mudou e piorou. Mas não sei se dá para esperar mais ou não. A conjuntura mudou no último semestre, não estava ruim. Ao contrário. Estávamos crescendo 2,4% per capita ao ano durante uma década. Foi uma década de crescimento bom, satisfatório. Não aquele crescimento dos anos 1970, de 7%. Isso aí pode esquecer que não vai ter mais. A própria China teve que reduzir a taxa de crescimento dela pela metade com a crise internacional. Com a conjuntura internacional como está, não dá para crescer aloprado, mas dá para crescer bem, tipo 3% ou 4%.
Crescer a 7% não dá mais para o Brasil?
Não, isso já passou. Aquilo era a etapa da instalação da indústria. Agora já está instalada.
A sra. participou de um Congresso que lembrou os dez anos da morte de Celso Furtado. Ele falava muito da importância do planejamento do país. Como a sra. vê isso hoje no Brasil?
Está mal. Só estamos fazendo planejamento na infraestrutura e nem assim mesmo não está funcionando muito bem. Mas não creio que os programas de aceleração do crescimento tenham realmente acelerado o crescimento. Eles estão meio pasmados. Mas planejamento no sentido histórico não tem havido. Tem havido as linhas estratégicas da ação. Linhas básicas. Mas planejamento propriamente dito não. Quem faz o planejamento são as empresas públicas grandes. A Petrobras faz. A infraestrutura de um modo geral é toda planejada senão você não consegue avançar, mas, fora isso, planejamento no sentido mais conceitual, mais utópico a la Furtado, não vejo mais. E acho que nosso Ministério do Planejamento, por exemplo, está praticamente acabado. Foi liquidado.
Entre outros aspectos, algo que preocupava Furtado era a tendência da economia brasileira ao subemprego. A sra. acha que isso ainda está presente?
Não há nenhuma tendência ao subemprego. Ao contrário. Essa tendência é que a gente reverteu. A única coisa que dá para aplaudir esse governo é que reverteu a tendência ao subemprego, aumentou a tendência ao emprego de carteiras assinadas, fez política de salário mínimo adequada, de crescimento dos salários baixos, e estendeu a previdência social a setores que não tinham cobertura.
Sobre a baixa penetração do progresso técnico que Furtado destacava, qual a avaliação da sra.?
Isso vai bem devagar. Ocorre basicamente só no setor de infraestrutura e do agrobusiness. O setor de petróleo é uma fonte de progresso técnico e a Embrapa [empresa brasileira de pesquisa agrícola] também. A produtividade fantástica do agrobusiness brasileiro não é apenas porque a terra do Brasil é boa. Tem pesquisa dura para este setor com a Embrapa. Esses dois setores foram bem. Tanto foram bem que estão dando resultados. Mas os instrumentos tradicionais, de usar a Finep, e o BNDES, para programa de investimento não foram muito bem. O BNDES está financiamento mais agrobusiness do que propriamente a indústria.
Está certo o BNDES financiar mais o agronegócio do que a indústria?
Não tem demanda para projetos industriais. Se os empresários não querem investir, fica difícil. Não dá para estatizar a economia inteira. Se não tem demanda para indústria, ele [o BNDES] vai para aquilo que tem demanda. Senão vai parar o investimento completamente. Não está errado. O que está errado são os nossos empresários. Mas eu insisto que, se o fenômeno for tão profundo quanto o fato que eles [empresários do setor produtivo] se fundiram com o capital financeiro, aí realmente não tenho nenhuma resposta do que se faça. Não vou dizer que se faça uma revolução, que parece completamente desproporcional.
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País pode estar perto de recessão moderada, diz Conceição Tavares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU