Por: Jonas | 04 Agosto 2014
“A politização do ativismo pelo acesso ao conhecimento deve contribuir para nos abrir novas dimensões da realidade como um todo. As condições econômicas, políticas e culturais que favorecem ou obstaculizam o acesso ao conhecimento são um tópico de investigação obrigatório, e interessa estudá-las e prevê-las”, escreve Santiago José Roca, em artigo publicado por Rebelión, 01-08-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
“A ciência e a tecnologia não possuem um valor abstrato, mas, sim, devem se concretizar nas exigências de um país ou de uma região. É necessária uma política de descolonização epistemológica e tecnológica” (Enrique Dussel, Hacia la liberación científica y tecnológica).
O fato do ativismo pelo livre acesso ao conhecimento se manifestar em contextos e formas tão dissimilares entre si, parece razão suficiente para ensaiar uma crítica ao conhecimento livre realmente existente, o que necessariamente nos obrigaria à formulação de propostas para a assimilação de um ativismo pelo livre acesso, com sentido político. Parece-nos importante começar afirmando a necessidade de apoiar a politização da discussão em torno do conhecimento livre, uma condição necessária para que o ativismo pelo livre acesso ao conhecimento não seja assimilado por dinâmicas sociais que vão, inclusive, contra a sua própria razão de ser. Por isso, começamos nos perguntando se é possível pensar na politização ampla dos movimentos pelo livre acesso ao conhecimento, com vistas à formulação de propostas que contribuam para a análise das condições econômicas, políticas e culturais de nosso tempo, com as coordenadas que se abrem a partir da perspectiva do conhecimento livre.
A dissociação aparente entre o apoio ao conhecimento livre e a politização podem ter várias interpretações. É possível que, conscientemente ou não, se apoie certa noção de neutralidade do conhecimento. Dado que o conhecimento científico – considerado o saber por excelência – tem caráter nomológico (está baseado em leis) e é objetivo (corresponde diretamente com a realidade empírica), então passa a ser considerado como isolado de interesses e valores. A origem moderna desta posição se encontra na autocompreensão positivista da ciência, que permeou a cultura científica moderna – difundida nos centros de formação, meios de comunicação e na prática das ciências sociais – até o ponto em que a noção de que o “conhecimento é neutro” se tornou noção de cultura geral. O determinismo tecnológico, ou seja, a crença em que as mudanças sociais são impulsionadas pelo desenvolvimento tecnológico, tem suas raízes na crença na neutralidade do conhecimento, com a consequência de que a implementação de respostas tecnológicas costuma excluir considerações políticas e culturais, em razão da suposta “eficácia universal” dos sistemas técnicos. Isto, não obstante, representa a redução dos processos sociotécnicos a uma dimensão estritamente funcional, em virtude do interesse de controle sobre a realidade.
Contudo, a compreensão do conhecimento como neutro não é uma questão abstrata, mas, sim, como dissemos, é amplamente difundido pelas instituições encarregadas de fomentar a educação e a cultura, e de fato serve para encobrir todos os tipos de práticas estabelecidas. As ciências, consideradas em um marco positivista, acabam por “naturalizar” os processos sociais no sentido de que os separam de sua dimensão histórica e cultural, ao mesmo tempo em que retira do sujeito a possibilidade de exercer sua capacidade crítica. O estudo dos processos sociais, compreendidos acrítica e objetivamente, torna-se uma forma de legitimação da ordem construída histórica e culturalmente em um contexto de luta social. As instituições públicas, os órgãos multilaterais, a dinâmica dos incentivos científico-tecnológicos, privilegiam a extrapolação acrítica de propostas tecnológicas com o resultado de que contribuem com a expansão da racionalidade funcional acima das pluralidades históricas e culturais.
Contra esta classe de racionalidades foram levantadas diferentes tipos de resposta. Desde a emergência de enfoques interpretativos e métodos qualitativos de investigação científica, o surgimento de paradigmas de “complexidade”; e inclusive a elaboração consciente de propostas para uma “epistemologia do Sul”, que supere o paradigma positivista do conhecimento para uma racionalidade ‘senti-pensante’; isto é, a superação das dualidades contidas na cultura científica moderna (mente-matéria, observador-objeto ou ciência-cultura).
Precisamente, o que se opõe à “neutralidade do conhecimento” é o “conhecimento na perspectiva do sujeito”. A epistemologia, o conhecimento, o saber, são tais em função do reconhecimento de seus limites e na presença do sujeito para o qual a “verdade” é tal. O objetivismo é, então, superado com o reconhecimento das condições históricas e culturais em que emerge o conhecimento, e pode complementar-se com uma crítica razoada. Daí a necessidade de integrar a reflexão sobre o saber com a vontade de organizar coletivamente a vida em comum, isto é, com a Política.
O que se conhece como “conhecimento livre” não é exceção a estas condições. Uma vez que todo conhecimento pode ser livremente compartilhado em razão de sua natureza sociocultural, então todo conhecimento deveria ser considerado “livre”. O adjetivo “livre” surge como resposta aos movimentos de agentes capitalistas em cerco ao conhecimento e, portanto, opõe-se a adjetivos como “privativo” ou “mercantilizado”. Não obstante, o “conhecimento livre”, enquanto conjunto de garantias para o livre acesso ao conhecimento, representa uma oportunidade para construir uma epistemologia pós-positivista, crítica e com vocação política. Seguramente, aí reside uma das contribuições dos movimentos pela cultura, o conhecimento e as tecnologias livres.
No caminho do fomento ao conhecimento livre encontramos diferentes níveis de consciência. Em um nível se privilegia o acesso ao saber por si mesmo e por suas implicações econômicas, trabalhistas, culturais; ou como um conteúdo inovador que nos ajuda a ser competentes nas últimas tendências da tecnologia (neutra), e, portanto, um bem útil para as agendas de crescimento individual, que são cultivadas organizacionalmente.
Compartilhar é “bom” porque permite acessar ferramentas que são necessárias para se desenvolver em um emprego ou para cursar uma carreira de educação formal; para facilitar a inclusão social de populações em desvantagem (estudantes, jovens profissionais, pequenos empresários); como parte de um projeto de economia alternativa ou complementar que permita se sustentar melhor dentro do sistema; ou, inclusive, como uma forma de melhorar as condições de vida dos países do mundo subdesenvolvido.
“Libertar” o conhecimento é uma forma de democratizar o acesso ao saber como um bem que se encontra por trás das barreiras do mercado, em condições de custo e propriedade. A negação do acesso ao conhecimento ocorre por agravamento e aprofundamento de condições que estão dadas no mercado e que, supostamente, não é possível mudar: a legislação sobre propriedade intelectual, níveis de industrialização desiguais, ausência de capacitação, falta de capital, entre outros aspectos.
Cada uma destas posições tem suas qualidades. Cada uma delas é valiosa como uma forma de responder a um sistema de apropriação do saber fundado na hegemonia da propriedade privada no econômico-cultural e na vontade de poder de determinados grupos de interesse. Não obstante, estas dimensões não são claras para muitos daqueles que professam sua vocação pelo conhecimento livre. Caso fossem, o ativismo pelo livre acesso ao conhecimento teria um claro caráter pluralista (no sentido de um pluralismo cultural) e anti/pós-capitalista.
Nem sempre é assim, embora existam importantes exceções. Um ativismo pelo livre acesso ao conhecimento implica em realizar uma crítica às condições atuais em que o conhecimento é gerado, e a construção de propostas para outras formas de criar e compartilhar conhecimentos, fundadas em uma consciência anti/pós-capitalista, que advogue pelo estabelecimento de uma hegemonia não-capitalista.
Seja no que vemos como Commons, Pró-comum, Bem Público; assim como em marcas que utilizamos, como Open Acess, Conhecimento Livre ou Cultura Livre, estamos falando da socialização e a institucionalização de formas de geração do conhecimento baseadas na hegemonia da propriedade social e no pluralismo cultural, como antípodas da cultura capitalista.
Isto não pode ser conquistado sem que o movimento pelo livre acesso ao conhecimento adquira identidade política clara. Não uma identidade partidarista, embora os partidos sejam um importante instrumento de vontade política nas maltratadas democracias modernas, marcadas pela oligarquização da política e o sequestro da capacidade de determinação das maiorias. Não uma identidade anti-política, como expressão da frustração antissistema que não gera propostas e que costuma ser capitalizada politicamente pelos atores convencionais. Mas, sim, uma identidade política construtiva, capaz de aglutinar esforços diversos – e dispersos – na busca de outros modos de fazer conhecimento, com consciência de que o conhecimento tem um papel fundamental na luta por outro mundo possível.
Depende-se da possibilidade de garantir um conjunto de condições sociais que favoreçam a soberania popular, a democracia radical e a equidade em todas as esferas da vida social, para que sejam alcançadas outras formas de gerar e compartilhar bens intangíveis como o conhecimento. É uma contradição ver o conhecimento livre como uma seção da vida social e não se questionar a respeito das condições que fazem com que o conhecimento seja um bem não-livre. O fim transcendente do ativismo pelo conhecimento livre é a emancipação sociocultural do ser humano, e isto abrange todo o resto.
Para chegar a este grau de consciência é necessário politizar a discussão a respeito do livre acesso ao conhecimento. O que se opõe a isso é que continuemos vendo a política e a técnica como arenas separadas por uma brecha insuperável, que estabelece uma oposição entre doxa e episteme, entre cultura e ciência, entre política e saber. A questão não é se são uma única coisa ou se um influencia ao outro (no sentido de um determinismo social ou de um determinismo tecnológico). A questão é se existe relação entre estes campos e de qual forma. O nó crítico é invisível: conforma a brecha em si mesmo, a que gera uma infeliz distribuição de atributos conceituais. E a alternativa é a busca dos enlaces entre campos aparentemente separados pelo reducionismo epistemológico e as estratégias de poder.
A despolitização do ativismo pelo conhecimento livre acarreta, entre outras consequências, a neutralização do ativismo em razão de sua tradução em uma moda ou em uma subcultura infecunda. Muito pior ainda, pode resultar na determinação do livre acesso como oferta capitalista e como opção de poder capitalista, ou seja, na transformação de uma opção de superação do sistema. A resposta é a politização da discussão a respeito do livre acesso ao conhecimento e a construção de alternativas pluralistas e pós-capitalistas com caráter contra-hegemônico. A politização do ativismo pelo livre acesso ao conhecimento permite a abertura à compreensão das dinâmicas políticas, culturais, econômicas, filosóficas e geopolíticas envolvidas em torno da ciência, da tecnologia e do conhecimento; e a possibilidade de abordá-las a partir da perspectiva de uma filosofia-práxis crítica.
A politização do ativismo pelo acesso ao conhecimento deve contribuir para nos abrir novas dimensões da realidade como um todo. As condições econômicas, políticas e culturais que favorecem ou obstaculizam o acesso ao conhecimento são um tópico de investigação obrigatório, e interessa estudá-las e prevê-las. Entretanto, além disso, é necessário poder construir os marcos de interpretação que deem sentido à informação sobre esta matéria. Tais marcos devem ser construídos coletivamente e por meio do diálogo, como expressão das virtudes políticas que pensamos que deve haver nos contextos contra-hegemônicos de construção do conhecimento.
Entre os desafios que se apresentam para um programa político relacionado ao conhecimento livre é possível despontar os seguintes:
- O livre acesso à informação, considerada enquanto ‘data’, pode ser insuficiente como consigna, caso os marcos em que a informação tem sentido não são explícitos. O que dá sentido à informação são as dinâmicas sócio-cognitivas em que a informação se realiza socialmente, ou seja, a forma como se constrói o conhecimento. Talvez este seja o nível em que convencionalmente falamos de “conhecimento livre” e dos atributos que o atribuímos: aberto, colaborativo, etc.
- Não obstante, não pode haver conhecimento livre que não se sustente em uma cultura livre. Ou seja, em contextos de sentido e práticas que tornem o conhecimento (construído em condições de liberdade positiva) sustento para a emancipação sociocultural. O conhecimento livre “objetivizado”, que não depende de uma cultura de apoio, também pode ser instrumento de dominação e exploração. De fato, é possível que a maior ameaça para a adoção de paradigmas de livre acesso ao conhecimento provenha da repetição de práticas inerentes a contextos que se pretende superar, como a aprovação particular do capital tangível e intangível gerado coletivamente.
- O que se opõe à cultura livre é a prevalência de uma cultura de exploração do trabalho. O conhecimento é resultado de ciclos de saber e de trabalho; a apropriação privada do conhecimento é uma forma de apropriação do valor do trabalho. A libertação do conhecimento depende do encontrar modos de criação e circulação do saber que não dependam da exploração e da mercantilização do produto do saber e do trabalho humano. O que suporta a exploração do trabalho e a mercantilização do saber é a hegemonia da propriedade privada, ou seja, a propriedade privada como fonte de poder social. A hegemonia da propriedade social, regida democraticamente nos termos de uma democracia radical, deve emergir para suportar um trabalho com sentido social, cujos resultados tributem ao bem público.
- Nos marcos em que predomina a exploração do trabalho e a hegemonia da propriedade privada é lógico que as relações de poder sirvam de meio simbólico e prático para manter estas condições. A maior aspiração do ativismo em torno do livre acesso ao conhecimento é que consigamos compreender de outra forma as relações de poder, ou seja, que possamos cultivar outra arte da Política que supere ao que foi incubado na modernidade, caracterizado pela redução do sujeito a instrumento.
Um possível programa para o ativismo pelo livre acesso ao conhecimento pode incluir então: a eliminação de restrições artificiais para o acesso à informação, a socialização e institucionalização de práticas para a construção do conhecimento livre, a adoção de normas e pautas para a geração de uma cultura livre, a libertação do trabalho, a construção da hegemonia da propriedade social e do bem público, e a libertação das relações de poder. Evidentemente, estes aspectos podem se nutrir com outros. Como ferramenta de análise, projetam-se transversalmente nos estudos sobre as condições econômicas, políticas e culturais do mundo contemporâneo.
O reconhecimento das condições que obstaculizam o livre acesso ao conhecimento deve ser compreendido a partir da perspectiva de um programa de reflexão-ação para a subversão de tais condições e a construção de uma sociedade pós-capitalista. Assim, o conhecimento livre se conceberá como construção sócio-histórica e cultural, mais do que como um conjunto de práticas isoladas que respondem a fins imediatos. O que emerge é o saber livre a partir da perspectiva do sujeito histórico, em resposta a um sistema que pretende naturalizar as relações de dominação social e, como parte delas, a dominação cognitiva.
Evidentemente, não é possível condicionar o ativismo pelo livre acesso ao conhecimento à aceitação destas premissas. Porém, o apoio “despolitizado” ao conhecimento livre é merecedor de suspeita como prática de marketing político, acadêmico ou empresarial; e possivelmente como forma de converter o conhecimento livre em oferta do sistema. Talvez seja possível pensar em um ativismo sem partidos, mas não é possível pensar no conhecimento livre sem sujeitos concretos. O conhecimento mercantilizado retira o saber do sujeito e o objetiva em forma de mercadoria ou instrumento. O saber livre resgata o protagonismo do sujeito coletivo e suas práticas para construir uma cultura livre. No fundo, o ativismo pelo conhecimento livre não é senão a extensão de uma luta pelo resgate do humano no ser humano.
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O livre acesso ao conhecimento e a politização necessária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU