Por: André | 27 Junho 2014
Chegou a hora de salvar os móveis. E os animais. No final de janeiro, um marselhês de 24 anos confundiu um filhote de gato branco e vermelho de cinco meses, Oscar, com uma cadeira. Ele foi filmado jogando o gatinho contra a parede de um prédio – o felino catapultado caía no chão, até sofrer uma fratura de uma das patas. O vídeo circulou nas redes sociais provocando indignação. O autor dos maus-tratos, por sua vez, circulou pelo tribunal correcional de Marselha: julgado em primeira instância, o atormentador foi condenado, no dia 03 de fevereiro, a um ano de prisão por “atos de crueldade contra um animal doméstico ou adomesticado”. Muitas associações de defesa dos animais constituíram-se em partes civis. A pena é severa, exemplar. Excessiva? O torturador, cegado pela sua besteira, teria ganhado, sem dúvida, se tivesse lançado um olho em alguns textos legislativos...
A reportagem é de Pascal Paillardet e publicada na revista francesa La Vie, 13-03-2014. A tradução é de André Langer.
O Código Penal francês (artigo 521-1) pune com até dois anos de prisão e uma multa de 30.000 euros qualquer ato “de crueldade ou de maus-tratos” de animais. O Código Rural, por sua vez, define os animais como “seres sencientes” (artigo L. 214). Portanto, no Código Civil, promulgado por Napoleão I em 1804, os animais domésticos, domesticados e mantidos em cativeiro, simplesmente pertencem, segundo os artigos 523 e 528, à categoria dos “móveis” e dos “imóveis por destinação”. Os animais selvagens são uma “coisa sem dono” (artigo 713). Em um colóquio intitulado Nós e os animais, organizado no dia 07 de fevereiro pelo Clube de Reflexão Ecolo-Ethik, organizado pela senadora Chantal Jouanno (UDI), ex-secretária de Estado encarregada da ecologia, o jurista Laurent Neyret admitiu essa “hesitação jurídica”, fonte de ambiguidades. “O Código de 1804 foi elaborado pelos proprietários de terras, para organizar o comércio, o mundo agrícola... Os animais citados eram as pombas ou os coelhos”. Para evitar qualquer caricatura e lembrar que o valor intrínseco dos animais domésticos ou selvagens é reconhecido pelo direito, evocava um assunto jurídico, aquele do cavalo Lunus.
Em 1962, pela primeira vez, um juiz reconheceu, em um processo, um prejuízo afetivo pela dor causada pela perda de um animal, no caso um cavalo de corrida, o Lunus. O proprietário solicitava a reparação dos prejuízos econômicos e afetivos após o desaparecimento do seu animal, morto eletrocutado após ter mordido a lâmpada e o fio desencapado da sua cocheira!
Jean-Pierre Marguénaud, professor de direito privado na Faculdade de Direito e de Ciências Econômicas de Limoges, destaca uma outra data fundamental: a partir de 07 de setembro de 1959 e de um decreto que suprime a condição de “publicidade das atividades”, os animais domésticos, domesticados ou mantidos em cativeiro, são protegidos por si mesmos, em razão da sua própria sensibilidade. Mas essas disposições protetoras, soltas e dispersas, que devem ser procuradas com abnegação no Código Rural, no Código Ambiental ou nas legislações europeias, sofrem de uma “péssima visibilidade”, segundo Laurent Neyret.
Erguendo-se contra esta incongruência e essas incoerências, os defensores da causa animal exigem, pois, uma modificação do Código Civil, a fim de harmonizar a legislação francesa. Por iniciativa da Fundação 30 Milhões de Amigos, 24 intelectuais, entre os quais se encontram o astrofísico Hubert Reeves ou o monge budista e filósofo Matthieu Ricard, assinaram recentemente um manifesto a favor de uma mudança do estatuto dos animais. Indignado com a ideia de que um carneiro seja “um tamborete que se desloca”, em referência a Lamartine: “Nós não temos dois corações: um para o homem e o outro para o animal... Nós temos um coração, ou não temos”. Na internet, um pedido que deve ser entregue aos cuidados da Justiça, reuniu mais de 600.000 assinaturas, solicitando a criação de uma terceira categoria para os animais, distinta das pessoas e dos bens. De acordo com uma pesquisa do Ifop (Instituto Francês de Opinião Pública), feita em outubro de 2013 a pedido da Fundação 30 Milhões de Amigos, 86% dos franceses julgam “anormal” esta assimilação dos animais como um “bem móvel”. E 85% acreditam que esta questão deve ser discutida, apesar de um contexto social e econômico difícil.
Do verme ao gatinho: o direito de existir
Da Alemanha à Suíça, da Áustria à Bélgica, muitos países já reconhecem, inclusive em suas Constituições, uma proteção específica. Na Suíça, desde 1991, e na Áustria, desde 2008, advogados representam oficialmente os interesses dos animais nos julgamentos. “A grandeza e o desenvolvimento moral de uma nação podem ser medidos pela maneira como trata os animais”, afirmou Gandhi. Mas a colocação em prática desse “direito dos animais” suscita o debate, alimentado por perguntas éticas, filosóficas ou religiosas.
Devemos nos orientar para um direito condescendente, que consagre os deveres do homem em relação aos animais ou preconizar um direito que reconhece a esses últimos uma verdadeira personalidade jurídica? Além disso, como definir os “animais”: uma terminologia que engloba dois milhões de espécies, desde o verme e o carrapato até o chimpanzé e o gatinho! “Nós temos o dever de dar aos animais o direito de existir, de tornarem-se sujeitos de seu desenvolvimento”, defende Boris Cyrulnik, etólogo e neuropsiquiatra, abaixo-assinante do manifesto. “Esta iniciativa nasceu da constatação de que ninguém, na Assembleia Nacional, se interessava pelos animais”. Geneviève Gaillard está preparando um projeto de lei sobre esse tema. O deputado Frédéric Lefebvre (UMP) também entrou, em novembro de 2013, com um projeto de lei que vai nesse sentido. O texto de Geneviève Gaillard, que proporá a introdução de “uma terceira categoria para os animais, entre os bens e as pessoas”, está sendo finalizado. François Hollande declarou-se recentemente contrário... após ter se pronunciado a favor desta modificação do estatuto jurídico dos animais durante a sua campanha eleitoral, numa carta dirigida, no dia 02 de maio de 2012, à Fundação Direito Animal, Ética e Ciências (LFDA). “No Código Rural especialmente, os animais já são considerados como um ser sensível. Por que acrescentar outras considerações?”, declarou numa entrevista ao jornal La France Agricole, às vésperas da abertura do Salão da Agricultura. “Espero que se possa entrar o mais rápido possível com o projeto de lei, talvez na primavera”, disse Geneviève Gaillard.
A aversão dos políticos
Se Geneviève Gaillard se alegra com o fato de que os ecos desse debate da sociedade chegam ao espaço público, fazendo sua irrupção na Assembleia Nacional, ela observa: “Ultimamente, estávamos habituados a abordar esta questão em comitês mais restritos. A causa animal sempre foi um tema negligenciado. É, portanto, um belo avanço”. Geneviève Gaillard admite ter que lutar contra a falta de coragem política e as forças contrárias. “O peso dos lobbies, como os dos agricultores e dos caçadores, não pode ser subestimado. Muitos parlamentares têm animais, mas muito poucos aceitam falar sobre isso, como se tratasse de um tema tabu”.
Uma atitude igualmente sentida pelo etólogo Pierre Jouventin, autor de Três predadores num salão. História natural do gato, do cachorro e do homem, um ensaio publicado no final de março (Editora Belin). “Na França, estamos meio século atrasados em relação aos países anglo-saxões. Isso é tanto mais desolador e paradoxal na medida em que somos o país que mais animais domésticos têm: 60 milhões, dos quais oito milhões são cachorros e 10 milhões de gatos”, lamenta o ex-diretor de pesquisas do CNRS, especialista em pássaros e mamíferos antárticos. Desde os anos 1970, com efeito, por iniciativa de militantes como Peter Singer, professor de Bioética na Universidade de Princeton (Estados Unidos) e fundador do Movimento de Libertação Animal, ou dos trabalhos da primatóloga e antropóloga Jane Goodall, os defensores da causa animal levantaram questões éticas, às vezes de maneira muito radical, nos países anglo-saxões. A França ficou parada.
“Nosso velho país ficou cartesiano e considerado ainda com Pascal que é preciso necessariamente escolher entre o anjo e a besta”, argumenta Pierre Jouventin. Atualmente, o Código Civil, ao definir os animais por sua mobilidade e não por sua sensibilidade, parece nos reenviar ao “animal-máquina”. A este autômato sem alma nem sentimentos descrito por René Descartes, que afirmou: “O maior de todos os prejuízos da nossa infância é pensar que todas as bestas pensam”. Aristóteles, por sua vez, concedia-lhes uma alma de qualidade inferior. Segundo Pierre Jouventin, codiretor da obra coletiva A razão dos mais fortes. A consciência negada aos animais (2010), a filosofia e a religião ergueram uma “barreira estanque” entre o homem dominador, rei da Criação e senhor da natureza, e os animais. “Os três monoteísmos, e não somente a religião cristã, relegaram os animais à categoria de “coisas” que podemos explorar. Há, entretanto, contra-exemplos, como São Francisco de Assis, o grande mestre da ecologia e da relação com os animais”.
Mesmo os peixes têm emoções
A filósofa Laure Solignac, professora e pesquisadora do Instituto Católico de Paris, pondera. Esta concepção deriva, segundo ela, não da religião, mas de uma ruptura antropológica maior que aconteceu no século XVII com Blaise Pascal e René Descartes: “Naquele tempo, tivemos a tendência de instaurar uma separação entre o aspecto espiritual do ser humano e a ordem do corpo, da matéria, e portanto dos animais. Eles não eram mais considerados como companheiros, mas como inferiores. Até esta ruptura cartesiana, os cristãos consideravam que os animais tinham alma. É somente a partir de Descartes que ela foi reservada aos seres humanos”. Evocando a figura de Francisco de Assis, santo padroeiro dos ecologistas, a filósofa precisa: “Falar dos animais como de ‘bens móveis’ não é franciscano. Mas Francisco de Assis não idolatra a natureza ou os animais; ele se sente responsável por eles”. “Hoje, nenhum cientista defende Descartes”, retoma Pierre Jouventin.
De acordo com as pesquisas científicas mais recentes, esta barreira estanque entre os seres humanos e os animais torna-se cada vez mais porosa. A nossa origem animal é uma verdade científica. Muitos estudos demonstraram que os peixes podem também sentir dor ou ter um sentimento como o medo. Os animais estão conscientes dos seus atos? “Muitas espécies chegam a se reconhecer no espelho, nota o etólogo, como a pega-rabuda, o papagaio, o porco, o elefante, a orca... e a criança de mais de 18 meses”. As descobertas científicas aperfeiçoam os nossos conhecimentos sobre o sofrimento animal. E nos interrogamos, por exemplo, sobre a legitimidade de sacrificar animais em laboratórios ou de praticar as dissecções e a vivisseção durante o estudo das ciências da vida.
“A França quis tanto ser o país dos direitos humanos que se tornou antianimal”, conclui Pierre Jouventin. “Ora, compreender os animais é inserir-se num mundo mais amplo e compreender o ser humano”. Ninguém pode esquecer os benefícios da sua companhia. “Nós devíamos pedir o reembolso da ração dos gatos à Seguridade Social! Um animal dispensa bem-estar”, disse esse defensor da causa animal. Ele cita um estudo finlandês realizado com 400 bebês, que demonstra que a presença de cães e gatos estimulava o sistema imunológico das crianças. Diante desta evidência, para lembrar àqueles que jogam gatinhos contra a parede, nos faz pensar na frase do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw: “O homem é civilizado na medida em que compreende o gato”.
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Os animais têm direitos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU