Por: André | 14 Abril 2014
O fotógrafo Christophe Calais acompanhou durante 20 anos o destino de uma criança encontrada numa vala comum, durante a fuga dos hutus, após o genocídio. Ele o visitou novamente em 2013, acompanhado da nossa jornalista Anne Guion.
Fonte: http://bit.ly/1egmOWB |
A reportagem é de Anne Guion e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 08-04-2014. A tradução é de André Langer.
De todos os seus irmãos e irmãs, ele é o único que se parece mais com o seu pai. As maçãs do rosto sobressalentes. Algo do seu olhar também. No alto da colina de Mbogo, a uma hora da estrada de Kigali, na Ruanda, Angelo, 27 anos, prepara um cimento feito com a terra ocre do país. Em seguida, ele assenta um a um os tijolos da sua casa. Concentrado e silencioso. Ele carrega uma pequena cicatriz no vazio do olho esquerdo, que ficou menor apenas com o passar dos anos. A mesma que aparece nas suas fotos da infância, lembrança de uma vida sacudida no coração da tragédia ruandesa. Começa como uma “bela” história, como gostamos de dizer no Ocidente. O de uma criança encontrada viva em uma vala comum e socorrida por um legionário, que a batiza de “Angelo”. Um anjo, tal como um antídoto para a extrema perversidade do momento.
Nós estamos em julho de 1994, na Ruanda, e a Frente Patriótica da Ruanda (FPR), de Paul Kagame, está prestes a vencer a guerra e perseguir os algozes hutus até na República Democrática do Congo (RDC). Alguns dias mais tarde, assim como milhões de hutus, a família de Angelo também foge da sua aldeia. Em pânico, sob os bombardeios, Angelo, que tinha então 7 anos, e sua irmã Mukahirwa, de três anos, estão sozinhos com o seu pai, Léonard. Logo, esse último os deixa. “Ele nos disse que ia procurar algo para comer, lembra-se Angelo. Nós esperamos. Mas ele nunca mais voltou”. As crianças continuam seu caminho. Silhuetas divagantes na loucura do êxodo. A menina está fraca, sem dúvida acometida de cólera, que nessa época mata os deslocados às centenas. “Ao redor de nós as pessoas se deitam no chão para morrer de esgotamento. Minha irmã também caiu e morreu”.
O que aconteceu na sequência? Angelo não se lembra muito bem. Ele caminhou durante muito tempo sozinho, muitas vezes titubeante. Depois, veio a escuridão total. Seu corpo inerte é recolhido por caminhões que recolhem os mortos. Quando o conteúdo da vagoneta é jogado numa vala comum, um soldado brasileiro da Legião Estrangeira percebe entre a massa de cadáveres uma criança que parece estar vivia. Angelo é, primeiramente, recolhido pelos religiosos de Goma, no Kivu do Norte, na RDC. Depois ele é levado para Kahindo, um imenso campo de refugiados situado no alto da cidade. Ali encontra seu pai. “Eu estava contente em reencontrá-lo, mas, por outro lado, também gostaria de ter sabido porque nos abandonou, eu e minha irmã menor...”, nos confia hoje. A família se recompõe aos poucos nos campos de refugiados, onde a vida recomeça, como entre parênteses, ritmada pela distribuição de alimentos pelas Ongs. Dois anos depois, o menino se encontra novamente no centro dos tumultos da região. Escondidos nos campos, os “interahamwe”, as milícias genocidas, lançam ataques sobre Ruanda. Em novembro de 1996, os campos são esvaziados brutalmente pelo Exército ruandês, despejando 500.000 pessoas nas estradas. A família de Angelo faz a pé os 150 quilômetros do caminho de retorno até Mbogo. A história poderia terminar ali.
Fonte: http://bit.ly/1egmOWB |
Mas em fevereiro de 1997, Léonard, seu pai, é preso. Julgado em 2008, é condenado a 20 anos de prisão por crime de genocídio. Ele se recusa a confessar os crimes e pedir perdão, o que lhe teria permitido uma redução da pena. O anjo é o filho de um verdugo. Na Ruanda, nenhuma colina escapou do furor destruidor. Oitocentos mil tustis e hutus moderados foram mortos durante um genocídio que foi o mais curto da História. E quantos assassinos? Tantos que é preciso encontrar gradações no horror, entre aqueles que mataram em massa e aqueles que assassinaram “apenas” algumas pessoas. Qual é o crime do pai de Angelo? Difícil de ter uma ideia precisa. Em Mbogo reina ainda uma espécie de ‘omerta’ [silêncio]. Nenhum membro da família acusa diretamente o pai. Como poderiam? Léonard vai voltar, em alguns anos, alguns meses sem dúvida. Talvez só em 2015, nos dizem. Assim que voltar, retomará seu lugar de chefe da família, que dá e que tira, que favorece ou martiriza. É o caso de Jonas, um outro genocida, libertado após oito anos de prisão: um cara alto e sorridente que aprendeu inglês na prisão e com quem cruzamos em pleno trabalho no seu campo. Na colina, não se pode falar abertamente dos mortos, como do tio de Angelo, preso pela FPR em setembro de 1994 e que morreu na prisão. E que, nos dizem, “comportou-se mal durante a guerra”.
Mas, pouco a pouco uma verdade se desenha, com acentos de tragédia shakespeariana. A algumas centenas de metros da casa de Angelo, ainda havia, há alguns anos, uma ruína perto de uma árvore. É ali que moravam os Karamyka, uma família de tutsis. Às vésperas do genocídio são os únicos que ainda moravam na aldeia. As oito famílias tutsis que ainda moravam em Mbogo, no começo dos anos 1990, todas fugiram. Porque um longo prólogo de perseguições e roubos precedeu o genocídio.
A miséria fez o resto. Longe da capital Kigali, que se esvazia, a pobreza é gritante nas colinas. A densidade da população é tão grande que os hectares de terra são geralmente muito pequenos para alimentar as famílias. Nas encostas das colinas, pequenas parcelas formam como que um camafeu de verduras. Esse já era o caso em 1994. Bastou que as autoridades chamassem à morte para que tudo mudasse. Os aldeões mataram seus vizinhos porque eram tutsis, mas também porque cobiçavam seus bens e terras.
O genocídio deu o gosto de sangue aos esfomeados e desencadeou a crueldade. Léonard fez parte destes últimos. Quando Angelo nasceu, não recebeu nome, como quer a tradição, segundo as circunstâncias do seu nascimento, Ntibagilirwa, “nunca deve esperar nada dos outros” em kinyarwanda. As testemunhas o descrevem como um homem duro, violento com sua mulher e filhos. “Quando éramos pequenos, meu pai secava as bananas para fazer cerveja, que depois ele vendia. Nós estávamos com fome. Certa vez nós, eu e meu irmão maior Jean-Paul, comemos algumas. Um dia, meu pai nos pegou de surpresa. Ele foi para cima do Jean-Paul, depois o jogou na latrina. Foi nossa mãe quem o salvou.”
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Logo após o ataque contra o presidente Juvénal Habyarimana, no dia 06 de abril de 1994, que deu início ao genocídio, Léonard parte em uma missão punitiva com quatro homens da aldeia. O grupo mata sete dos oito membros da família tutsi Karamyka, a paulada. Em seguida, eles levarão o filho indefeso de um casal misto. Uma testemunha conta tê-los visto entrar na casa. Léonard pediu, em seguida, cerveja aos vizinhos “para celebrar a morte do inimigo”. “Meu pai era um animal durante a guerra...”, nos dirá Angelo, um pouco mais tarde, na intimidade do carro.
Como se cresce nessas condições? Angelo nunca foi a um psicólogo. Nunca teve ninguém para ajudá-lo a desatar os nós dos traumas acumulados. Nas fotos, os sorrisos tornam-se cada vez mais raros à medida que deixa a infância para trás. Ele saiu da escola primária para trabalhar e ganhar dinheiro. Em 2007, deixou a aldeia. Seguir-se-ão seis anos de vida errante vagando pelo país. O jovem adulto começou a fazer biscates: foi lenhador, ajudante de pedreiro, trabalhador da roça. Mas o trabalho é raro, e se enterra mais ainda na pobreza. Juntou-se a uma mulher, com quem teve uma filha, Jeanine. Depois a outra, Uwamaria, com quem teve outra filha, Mukanoheli. Não está muito à vontade no seu papel de pai. O homem teme hoje o retorno de Léonard, dividido entre seu ressentimento em relação a ele e seus deveres familiares. A vida na colina é menos cruel sem o patriarca. Mas Angelo lamenta não ter os meios necessários para visitá-lo mais vezes na prisão em Kigali, porque, disse ele, quando voltar, seu pai “recompensará o filho que lhe foi mais fiel”.
Em outubro de 2013, Angelo retornou a Mbogo com sua mulher e sua segunda filha. Ele amadureceu, nos dizem sua mãe, Marie, e sua irmã, Laurence, felizes em saber do seu retorno. Jean-Paul, seu irmão mais velho, um moço de olhar suave, confiou-lhe um pedaço de terra. Naquele dia, de manhã cedo, enquanto a névoa encobre as encostas, ele o ajuda pacientemente a construir sua casa.
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Durante 20 anos, um fotógrafo acompanha Angelo, sobrevivente do genocídio da Ruanda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU