09 Abril 2014
800 mil pessoas morreram no genocídio de Ruanda em 1994. Esta é a versão do papel desempenhado por uma instituição com mais responsabilidade do que qualquer outra: a Igreja.
A reportagem é de Chris McGreal, publicada pelo jornal The Guardian, 07-04-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Não é fácil encontrar alguém em Gisors, na França, que fale mal do Pe. Wenceslas Munyeshyaka.
Outros padres na imponente Igreja Católica medieval da cidadezinha francesa, a uma hora de carro de Paris na região rural rica da Normandia, falam com admiração de sua popularidade entre os fiéis. Trata-se de sua capacidade de se envolver com as pessoas, dizem. Os fiéis gostam de seus sermões, percebem a sua sinceridade. Ele traz algo da África.
Mesmo aqueles que quase não vão à igreja de Gisors conhecem o Pe. Wenceslas e insistem ser ele um bom homem. Um atendente de um restaurante próximo à igreja diz que vê o padre pela região e que ele é bem respeitado. Ninguém acredita no que é dito, acrescenta. É simplesmente impossível acreditar que um padre tenha feito uma coisa dessas.
Quase a metade dos eleitores em Gisors apoiaram a Frente Nacional de extrema direita, contrária aos imigrantes, na última eleição parlamentar da França. Muitas destas pessoas acolheram Wenceslas como um irmão, sendo ele um dos poucos residentes negros estrangeiros da cidade. Ele é tão bem conhecido que um estúdio de fotografia local vende um cartão postal do padre ruandês vestido numa batina branca com a igreja ao fundo.
A voz pública rara que mostra dúvidas na cidadezinha de Gisors é a do prefeito, Marcel Larmanou, um antigo comunista que afirmou que a igreja está infeliz porque ele não mudou de ideia por causa do Pe. Wenceslas.
“Falando francamente, ninguém quer acreditar no que dizem sobre o padre, porque ele é extremamente valorizado aqui. Quer as pessoas tenham todas as informações ou não, elas parecem ter a cabeça feita a seu favor. Ele é um cara inteligente, generoso. Mas não sei se ele é uma vítima ou um agressor”, disse o prefeito.
“Ele está bastante chateado porque eu não me posicionei em relação a este caso. Ele acha que eu deviria apoiá-lo como todos os demais. A igreja veio até mim e disse: o senhor precisa tomar uma posição”.
Larmanou falou que o problema é a dificuldade em saber o que aconteceu num lugar tão longe duas décadas atrás. As pessoas em Gisors ouviram falar sobre Ruanda em 1994, visto que a carnificina constituiu as notícias da época, mesmo que imagens dos Tutsis sendo esfaqueados até a morte nas ruas eram demasiado horríveis para serem mostradas na televisão.
Mas grande parte do mundo se esforçou para compreender a enormidade do crime, em parte porque era mais fácil cair nos clichês sobre tribalismo e ódios étnicos antigos do que lidar com uma realidade mais complicada, enraizada na luta por poder político. No auge da matança, o presidente da França, François Mitterrand, fez a seguinte observação cínica: “Em tais países, o genocídio não é tão importante”.
Então, um certo dia, no ano de 2001, o Pe. Wenceslas Munyeshyaka chegou à magnifica e cavernosa igreja de Gisors, datada do século XII, com suas aspirações de ser uma catedral estampada em suas torres góticas e renascentistas. Era bastante distante da triste igreja da era colonial construída na capital de Ruanda, Kigali. A mesma igreja em que ele costumava usar uma arma em sua cintura.
O Pe. Wenceslas foi acolhido em Gisors pelas pessoas comovidas por sua história. Era um refugiado, disse ele, do genocídio em Ruanda. Tinha sorte de ter sobrevivido aos assassinatos. Seus parentes morreram. Ele quase perdeu sua vida ajudando as pessoas a escaparem dos esquadrões de morte. As coisas ainda não estão bem, lamentava. Não é seguro ele voltar.
Há uma outra história que se espalhou também pela localidade de Gisors. O Pe. Wenceslas havia sido detido na França poucos anos antes após acusações de que havia vestígios de sua participação no genocídio. Os tribunais o deixaram ir.
Esta informação não parece ter muito influenciado na trajetória do religioso. O Pe. Wenceslas foi nomeado capelão dos escoteiros na diocese. Mas o passado não foi tão fácil de se ignorar, pois manifestantes de fora da cidade apareciam na igreja durante a missa entoando frases que acusavam o padre de assassinato e que traziam uma acusação feita por um tribunal internacional condenando-o por genocídio, extermínio e estupro.
Em 2005, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda – TPIR, da ONU, divulgou denúncias contra o Pe. Wenceslas. A condenação era um catálogo de horror. O padre, diz-se, conspirou ao lado de líderes da milícia extremista Hutus, organizando a matança dos Tutsis.
O Tribunal alega que o sacerdote ajudou a elaborar listas de homens a serem mortos – os que se passavam por Tustis foram levados e mortos –, permitiu que a milícia vasculhasse a igreja em busca de vítimas e que ele estuprou jovens meninas.
No mesmo ano da acusação feita pelo TPIR, um tribunal militar em Ruanda condenou o padre à revelia e o sentenciou à prisão perpétua por genocídio.
Os manifestantes – alguns dos quais eram sobreviventes do genocídio, outros cidadãos franceses casados com ruandeses – pediram para a Igreja Católica se distanciar do Pe. Wenceslas, privando-o de sua posição.
O vigário em Gisors, Pe. Michel Moran, não levou nada disso em consideração. Organizou uma forte defesa para o padre, incluindo uma ação envolvendo párocos que ouviram testemunhas cuidadosamente selecionadas e, então, declarou o Pe. Wenceslas inocente.
O esforço para levar o padre a julgamento por seus supostos crimes se arrasta desde Ruanda aos juízes franceses, indo até o tribunal internacional e voltando aos tribunais de Paris. O religioso foi detido e solto várias vezes. Os sobreviventes estão ansiosos para que justiça seja feita.
Mas para a Igreja há mais coisas em jogo do que o futuro de um padre. O Pe. Wenceslas é apenas um membro do clero no centro da luta sobre onde depositar a responsabilidade moral pelo genocídio.
O Vaticano retrata a Igreja como uma vítima não só pelos assassinatos em massa – pois padres e feiras estiveram entre os mortos –, mas também pela perseguição do atual governo de Ruanda, que tem prendido membros do clero e acusado líderes da Igreja de terem participação nos crimes.
Duas centenas ou mais de padres e feiras, Tutsis e Hutus, foram assassinadas durante o genocídio. Alguns morreram corajosamente tentando salvar vidas ou se recusando a abandonar suas paróquias. Mas houve outros sacerdotes que se puseram a matar.
Alguns colaboraram com as milícias para massacrarem as próprias congregações; outros puxaram o gatilho por eles mesmos. Padres ordenaram escavadeiras derrubarem igrejas cheias de pessoas e organizaram o abate de crianças tutsis deficientes.
O Vaticano vem tentando identificar a Igreja com os padres heróis. Mas pergunte-se aos ruandeses, hoje, em qual lado a Igreja Católica como instituição estava durante o genocídio e muitos dirão que ela estava aliada aos assassinos.
Durante anos o arcebispo de Ruanda trabalhou para o governo como membro do gabinete do presidente e como defensor do partido no poder. Em sua maioria, seus bispos permaneceram em silêncio durante o genocídio ou se alinharam com o regime, organizando os massacres.
Quando líderes religiosos falavam, suas declarações eram tão ambíguas ou falaciosas a ponto de serem vistas por muitos ruandeses como indiferentes com a matança.
As acusações de que a liderança católica agiu como defensora do genocídio foram asseguradas pelo envolvimento de uma rede de organizações da Igreja, de conventos a missionários, na ajuda de padres acusados de assassinato em Ruanda para escaparem à Justiça. Alguns se esconderam na Europa, usando nomes falsos na qualidade de padres paroquiais. Outros estão à vista de todos, incluindo o Pe. Wenceslas.
Ao longo do território de Ruanda, hoje, os nomes de igrejas muitas vezes são lembrados não como lugares de oração, mas como centro de extermínio. Em muitas localidades, mais Tutsis morreram entre os bancos e os altares do que em qualquer outro lugar. Sobreviventes dizem não se tratar de coincidência.
Mas o que mais os deixa frustrados é a cultura de negação presente na Igreja Católica (que reivindica três de cada quatro ruandeses como membros), cultura que ecoa o fracasso do Vaticano, de vários anos, em encarar o escândalo dos padre pedófilos e a cumplicidade de alguns na Igreja em proteger criminosos nazistas de guerra.
Cheguei em Gisors numa quinta-feira de tarde e vi o Pe. Wenceslas realizar seu serviço religioso a alguns poucos fiéis idosos espalhados entre as fileiras de bancos vazios feitos de madeira.
Percebi claramente o charme do qual algumas pessoas falaram. Ele era educado, envolvente e mesmo espirituoso na medida em que pintava um quadro de si como um sacerdote perseguido numa igreja perseguida. Às vezes, dava risadas sobre o que dizia ser acusações absurdas contra ele. Ele pediu para ser compreendido como inocente, erroneamente acusado.
“Conseguem imaginar o que significa ser acusado enquanto padre? Ser acusado de genocídio sendo um sacerdote? Dizendo que você violentou mulheres quando isso é claramente falso. Conseguem imaginar?”
Ele não levantou a voz quando falamos sobre o motivo por que muitos dos sobreviventes do genocídio o acusam de ter se aliado aos assassinos. Mas o Pe. Wenceslas ficou mais enérgico quando lhe perguntei sobre a arma.
Disse haver uma fotografia dele com uma cruz em seu pescoço e uma arma em sua cintura do lado de fora de sua igreja, St. Famille, em Kigali. É uma das coisas sobre as quais os sobreviventes falam.
Trata-se de uma mentira, disse ele, claramente perturbado.
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Escondendo-se na França: padres acusados de genocídio em Ruanda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU