08 Abril 2014
Os transportes públicos nas capitais brasileiras sofrem com conflitos entre municípios e estados e precisam urgentemente do financiamento do governo federal.
É o que defende o especialista em transportes Jorge Rebelo, que foi durante 25 anos o chefe do setor de transportes para América Latina do Banco Mundial e é hoje um dos principais consultores do órgão.
A entrevista foi publicada pela BBC Brasil, 07-04-2014.
Em seu novo livro, São Paulo and Mumbai: The impact of rail-based networks on two Bric mega cities ("São Paulo e Mumbai: o impacto de redes ferroviárias em duas megacidades dos Brics", em tradução literal), ele defende que os governos federais - e não somente as administrações regionais - se ocupem da expansão do transporte de massa nas metrópoles, para evitar o prejuízo financeiro causado pelo trânsito.
No Brasil, Rebelo acompanhou de perto a expansão do metrô nas principais capitais. E diz que os conflitos políticos entre as administrações estadual e municipal são um dos principais obstáculos a um planejamento mais eficiente nas cidades.
A solução, segundo ele, seria a criação de "autoridades metropolitanas" de transportes, entidades que teriam autonomia para implantar os projetos independentemente das mudanças no cenário político local.
Eis a entrevista.
Como você avalia a situação do transporte urbano no Brasil hoje?
Acho que o transporte nas cidades brasileiras já chegou a um momento muito ruim. Então estão acontecendo incidentes e haverá cada vez mais incidentes. Embora a constituição de 1988 descentralize o transporte urbano, acho que o governo nacional deveria incentivar a melhoria dos transportes de massa nas cidades como vem fazendo, mas de uma forma mais sistemática.
Deveria propor, por exemplo, cobrir parte dos investimentos pedindo uma contrapartida muito específica. Uma espécie de "vamos dar dinheiro, mas vamos organizar a casa". Acho que já houve uma tentativa do Congresso de propor isso em determinado momento com a lei da mobilidade, mas acabou não saindo.
Seria preciso pedir (dos governos regionais) quatro pilares: a criação de uma autoridade metropolitana; o planejamento integrado de transporte, uso do solo e meio ambiente; a diversificação dos mecanismos de financiamento para garantir que a implantação de mais infraestrutura seja realizada de forma confiável e gradual e, finalmente, a participação progressiva do setor privado no sistema de transportes.
Por que é tão importante diversificar os mecanismos de financiamento? De que maneira isso poderia ser feito?
Entre 1994 e 2001 houve pouquíssimo financiamento ao metrô em São Paulo, por exemplo, porque em 1994 o governo federal não avalizou o financiamento do Banco Mundial à linha 4 do metrô, por questões de dívidas. Só a partir de 2001 esses empréstimos voltaram a ser avalizados pelo governo e a expansão voltou a acontecer. É preciso gerar outras fontes de financiamento, que dependam menos das administrações.
Uma das maneiras de fazer isso é alugar as áreas de cima das estações de metrô para shoppings, escritórios. Ou investir em outras atividades que gerem renda para o metrô como a publicidade e o uso da via para passar cabos de fibra ótica. No Brasil isso já se faz, mas operações urbanas tem que ser feitas com muito mais planejamento do que são feitas hoje, para que possam gerar mais dinheiro para os custos do metrô.
Em Hong Kong e Cingapura, quase um terço do custo de investimento em expansões de linhas de metrô e trem é pago pelo que eles chamam de "empreendimentos associados". Em São Paulo, o metrô tem essencialmente os shoppings.
A participação do setor privado no sistema de transportes também põe menos peso no governo, uma vez que a obra será feita por empresas privadas. Mas aí é preciso uma comissão de regulação forte, que examine os contratos de Parceria Público-Privada. Seria uma entidade como a Anatel ou a Anac.
O país, em especial as grandes cidades, parece precisar de muitas ações em diversas frentes no que se refere à melhoria dos transportes. Por onde começar?
O mais importante é criar aqui autoridades que possam realizar investimentos em transporte nas metrópoles de uma forma duradoura e periódica.
Se não houver uma entidade que tenha essa função - e ao mesmo tempo os meios financeiros para garantir que tantos quilômetros novos de metrô e trem sejam construídos por ano -, não se terá capacidade suficiente para satisfazer a demanda dos passageiros das regiões metropolitanas.
A criação de uma autoridade metropolitana implica que os governos estaduais e municipais cheguem a um acordo. Eles têm que dar a essa entidade a autoridade e o dinheiro para investir no sistema. Foi isso o que aconteceu em cidades como Madri e Londres.
E por que isso ainda não foi feito?
Acho que isso não aconteceu porque o país está começando em diversos aspectos seu processo democrático. A população ainda não se deu conta da importância deste tipo de entidade. E deveria exigir que ela existisse.
O que tem acontecido até agora em São Paulo, por exemplo, são reuniões, às vezes informais, entre os técnicos das prefeituras e do Estado. Mas isso não é suficiente para o planejamento. O uso do solo na cidade está nas mãos da prefeitura, enquanto que a maior parte dos transportes de massa está nas mãos do Estado. O fato de não existir um casamento entre Estado e prefeitura leva às vezes a que cada um dos níveis de governo invista em algo que não é importante.
São Paulo sofre muito porque temos as principais linhas de transporte vindo ao centro e há poucos polos de desenvolvimento econômico fora do centro. E isso sobrecarrega as linhas. A criação de novos polos de emprego tem que ser pensada juntamente com o transporte. Por exemplo, a linha 4 facilitou o desenvolvimento da região de Pinheiros e da Marginal. Mas é preciso um planejamento periódico e contínuo de mãos dadas entre o Estado e a prefeitura.
Em Madri e Barcelona, me disseram que houve um momento que o transporte estava tão mal, tão mal, que todos os partidos se reuniram e chegaram à conclusão que era melhor criar uma autoridade metropolitana. E melhorou tanto que esta entidade hoje é sagrada, ninguém mexe nela.
Como funcionaria esta autoridade metropolitana?
Há dois aspectos. Um deles é o planejamento a longo prazo de todos os investimentos de grande porte no transporte: metrô, BRT, bicicletas. Este grande plano de transporte teria cada um dos investimentos planejados, para que fosse possível avaliar as prioridades, o custo-benefício de cada uma e passar para as fases seguintes. Isso evitaria que nas mudanças de governo, chegue uma administração nova e diga "não quero fazer isso, quero fazer outra coisa que sirva ao meu propósito político".
Este órgão também seria responsável pela definição das tarifas e dos subsídios para todos os modos de transporte, então buscaria a integração cada vez maior entre eles. Por isso, ele também seria encarregado de racionalizar os sistemas. Por exemplo, quando há muitas linhas de ônibus sobrepostas, dirigir o fluxo para o metrô.
A cada sete anos, em São Paulo, se faz uma pesquisa enorme sobre os usuários de transporte para saber quais são as necessidades para o futuro. E se define o uso do solo da cidade no plano diretor. Tudo isso, que atualmente é feito em parte pela prefeitura e pelo Estado, seria feito pela entidade metropolitana.
No Rio de Janeiro, por exemplo, há uma situação bem peculiar. A maior parte dos operadores de transporte são privadas: os ônibus, os trens e as barcas. Lá seria preciso ter uma autoridade metropolitana muito forte e ela não existe formalmente.
Embora a administração do Estado e da prefeitura estejam alinhadas, isso não significa que elas estejam planejando todos os aspectos do transporte juntos. No Rio há um bilhete único do Estado e um bilhete único carioca. Uma entidade faria isso de maneira interessante para todos os municípios, não só para o Estado ou para uma das prefeituras.
Neste momento, qual deve ser o modo de transporte prioritário para as administrações das grandes cidades?
Não há solução de curto prazo, mas o número de BRTs - as faixas seletivas para ônibus mais velozes - é importante. Para melhorar é preciso aumentar o número de corredores exclusivos, sejam eles rodoviários ou metroferroviários.
De preferência, nas grandes cidades seriam construídas mais linhas de metrôs e trens. Já os BRTs deveriam ser planejados principalmente nos acessos, para chegar às estações metroferroviárias. É muito importante aumentar o número de corredores exclusivos colocados em áreas que facilitem o acesso das pessoas não só ao trabalho, mas também à saúde, ao lazer e à educação.
Se todo mundo sabe que isso é importante, por que isso não está sendo realizado? Por causa destas lutas políticas. Qual é a solução? Uma autoridade metropolitana. E como chegar lá? A população tem que exigir isso, justamente porque está cansada, não quer mais andar como numa lata de sardinhas.
O Brasil esteve na vanguarda dos BRTs por muito tempo em algumas cidades, como Curitiba. O desafio de Curitiba será manter um sistema que é elogiado em todo o mundo, em que os transportes e o uso do solo estavam bem ligados, quando finalmente adotar o sistema de metrô.
O Transmilênio, sistema de BRT em Bogotá, na Colômbia, é considerado o sucessor do projeto de Curitiba. São duas faixas de ida e duas de volta. O sistema transporta 12 mil pessoas por hora em cada sentido e em cada faixa. Mas já está começando a ficar lento, então é preciso passar para o próximo sistema de mais capacidade, o metrô. O erro de Curitiba foi não passar para essa fase antes.
O BRT é, neste momento, a solução mais barata, mas ele precisa estar integrado aos outros modos de transporte.
As grandes capitais agora estão um pouco mais folgadas em termos de orçamento e querem investir, mas passaram muito tempo fazer isso. Tinha que existir um plano nacional de mobilidade, mas de financiamento, com um acordo entre as entidades governamentais para reduzir o tempo de implantação de melhorias e expansão de transportes de massa.
Está chegando o momento desse grande plano de transporte urbano para o Brasil, porque o que se perde de PIB nas capitais por causa do trânsito é (um valor) muito grande, da ordem de 2,5% do PIB.
O planejamento deve incluir os BRTs e a fase seguinte, que é o metrô, em todas as capitais do Brasil. Mas se eu fosse o governo, já estaria pensando nas cidades médias, que estão crescendo.
A maioria das obras de mobilidade urbana planejadas para a Copa do Mundo 2014 não sairá do papel. Como você avalia as que estão sendo realizadas?
Tenho acompanhado realmente os BRTs do Rio. Acho que foi uma boa decisão e estão avançando.
Se os investimentos para a Copa foram pensados para servir à população que existe no entorno das linhas que estão sendo projetadas, isso será ótimo. Mas se eles foram projetados só para servir estádios, a única forma positiva de aproveitar isso no futuro seria elaborar planos para desenvolver os arredores dessas linhas que levam aos estádios. É o que fizeram, por exemplo, no Japão, ao redor de Tóquio.
O que o povo quer é uma solução imediata, para amanhã. Isso não vai acontecer facilmente, infelizmente, porque houve todo este tempo perdido. Estamos falando destas soluções há 20 anos. O que é preciso em cada cidade agora é um plano, um acordo entre as principais autoridades para manter a continuidade. Não se pode fazer o que se fez em Salvador, de interromper um projeto.
É preciso escolher em cada cidades pessoas que são conhecidas por começar a obra e terminar a obra. Ter um pacto entre todas as agências fiscalizadoras para não interromper por qualquer coisa os projetos. Elas tem que investigar as denúncias até o fim, mas sem deixar o projeto parar, como foi o caso de Salvador.
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Conflitos políticos impedem transporte público eficiente, diz consultor do Bird - Instituto Humanitas Unisinos - IHU