01 Abril 2014
Eles sabiam: o presidente João Batista Figueiredo e o general Danilo Venturini, chefe do Gabinete Militar da Presidência, foram informados com mais de um mês de antecedência que o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 1º Exército, no Rio, preparava um atentado terrorista no Riocentro, em 1981.
A reportagem é de José Casado, publicada pelo jornal O Globo, 30-03-2014.
Eles nada fizeram: um mês depois, na noite de quinta-feira 30 de abril de 1981, duas bombas explodiram em torno do pavilhão, enquanto Elba Ramalho cantava “Banquete de Signos” para milhares de pessoas. O show pelo Dia do Trabalho, com participação de 30 artistas, era promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), vinculado a partidos de oposição ao regime militar.
Uma bomba detonou no colo do sargento paraquedista Guilherme Rosário, dentro do Puma conduzido pelo capitão de infantaria Wilson Chaves Machado.
O carro estava em movimento, o que impede determinar o local escolhido para a explosão. No estacionamento, seria um ato intimidador. Na porta ou dentro do show, um massacre.
O sargento morreu, o capitão ficou ferido e sobreviveu. Serviam no DOI do 1º Exército, com jurisdição sobre os estados do Rio, Minas e Espírito Santo.
Minutos depois, outra bomba abriu um buraco no chão em frente à central de energia, sem danos. O espetáculo continuou — mesmo se houvesse explodido a casa de força, um gerador seria automaticamente ligado, o que expõe o planejamento primitivo da operação.
A revelação sobre o conhecimento antecipado desse ato terrorista e sua difusão pela hierarquia do governo militar está confirmada, documentada e assinada pelo chefe do SNI Otávio Medeiros.
Fez isso em depoimentos no QG do Exército, em Brasília, no segundo Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o caso.
Sua primeira narrativa ocorreu no final de 1999. Contou que “de um mês e meio a um mês antes de 30 de abril”, soube pelo subordinado Newton Cruz do “projeto de uma operação que seria realizada por dois elementos do DOI no Riocentro, mas que “foram dissuadidos”. Achando o caso “contornado”, ressalvou, não avisou a “nenhuma autoridade do Exército ou da administração do Estado do Rio”. Omitiu nesse depoimento um detalhe: informara o presidente e o chefe do Gabinete Militar.
Cruz, ao depor em Brasília, apresentou versão diferente: “Soube da possibilidade de ser lançada uma bomba no estacionamento do Riocentro, por dissidentes do DOI, cerca das vinte horas do dia 30 de abril de 1981”. Foi informado por telefonema do chefe de Operações do SNI, Ari Pereira de Carvalho.
Na sua versão, quem alertou Carvalho foi o coronel Freddie Perdigão Pereira, da agência do SNI no Rio: “Perdigão os demovera, os convencera a colocar a bomba em local afastado, de modo a não causar danos pessoais ou materiais, e estava indo junto com eles. Não havia o que fazer, eles não estavam lá para matar ninguém”. Ressalvou “não se lembrar" de ter avisado seu chefe, Medeiros, achando que “não o fez antes dos acontecimentos, só depois”.
Restava um conflito de datas. Um general dizia que soubera cerca de um mês antes. Outro alegava conhecimento no dia, com uma hora de antecedência. Essa divergência levou os principais chefes do SNI a um confronto. E na manhã de quinta-feira 27 de janeiro de 2000, eles foram submetidos a uma acareação.
Discutiram diante do encarregado do Inquérito Policial Militar, general Sérgio Ernesto Alves Conforto. Estavam presentes o procurador Cezar Luís Rangel Coutinho, o escrivão tenente-coronel José Roberto Rousselet de Alencar, com o tenente-coronel José Carlos Cardoso e o coronel Valter Carvalho Simões Jr como testemunhas.
No quartel-general do Exército, diante do subordinado, Medeiros reafirmou ter sido informado por Cruz “de um mês e meio a um mês” antes do atentado. Então, revelou que “transmitiu esse conhecimento ao presidente e ao general Venturini”, chefe do Gabinete Militar. Ao ouvir a confissão, Cruz criou “um momento de maior tensão” — anotou o encarregado do IPM. Retrucou o ex-chefe, desqualificando-o: “Mentira!"
Medeiros devolveu: “Você não lembra?” Repetiu o repasse da informação a Figueiredo e a Venturini. Cruz piscou, arrefeceu o tom de voz, sugerindo um “engano” de Medeiros: “Talvez o fato a que se refere diga respeito a outro evento”.
“Permaneceram em suas posições de opinião”, registram os autos. No fim houve uma distensão e passaram a conversar sobre fatos “que os teriam afastado”. A acareação terminou com Medeiros e Cruz abraçados, “emocionados”.
O registro do que aconteceu naquela manhã no QG do Exército foi subscrito por todos e está guardado há 15 anos nos arquivos do Superior Tribunal Militar. Ele é essencial para a compreensão da anarquia nos quartéis, durante a ditadura, que levou as Forças Armadas brasileiras ao maior desastre de sua história. Expõe os generais do último governo militar — o presidente da República, os chefes do Gabinete Militar e do SNI, entre outros — acobertando integrantes do DOI, do SNI e do Centro de Informações do Exército (CIE) em atos de terrorismo, com ameaça à vida de milhares de civis. E concederam aos envolvidos a maior recompensa funcional possível na burocracia da violência: a impunidade.
Se no centro do governo não havia surpresa com o atentado, menos ainda no comando do 1º Exército. Extraordinário mesmo só o fiasco da “missão”, com um cadáver e um ferido.
Um ano antes discutira-se no DOI um projeto para ataque contra o espetáculo de 1º de maio no Riocentro. Foi em abril de 1980. O espetáculo organizado por Chico Buarque, que lançava a música “Apesar de você”, destinava-se ao financiamento do Centro Brasil Democrático, ligado ao Partido Comunista. No comando do Destacamento de Operações de Informações estava o coronel Romeu Antonio Ferreira. O DOI era uma anomalia burocrática na estrutura hierarquizada e disciplinada do Exército. Nascera no final de 1969, como organismo policial autárquico. Seus integrantes não usavam farda, trabalhavam em sigilo e sob codinomes. Oficiais chamavam-se “doutores”. Os subalternos, “agentes”.
Ferreira era o “Dr. Fábio”. Um mês antes do show, recebeu do subchefe de Investigações Edson Sá Rocha, o “Dr. Sílvio”, memorial de duas páginas descritivas da forma de abordagem e de execução do atentado, acompanhado de um desenho esquemático das instalações do Riocentro, com áreas assinaladas.
O objetivo era provocar um “apagão” durante o show, levando milhares ao pânico dentro do pavilhão. A confusão se prolongaria no estacionamento, onde estariam espalhados objetos pontiagudos para perfurar pneus dos carros.
Na origem, a iniciativa não seria do DOI mas da agência carioca do SNI, na conexão mantida pelo coronel Freddie Perdigão Pereira com parte da equipe de Operações do destacamento, entre eles o sargento Guilherme Pereira do Rosário.
“Dr. Fábio” leu o plano e o rejeitou. Conversou com “Dr. Sílvio” que, segundo ele, concordou. Procuradores do Ministério Público Federal discordam. Entendem que Edson Sá Rocha participou do primeiro plano e do atentado doze meses depois.
Naquele início de abril de 1980 o comandante do DOI encaminhou os papéis com veto explícito (“negativo”) ao seu imediato, “Dr. Fernando” nascido Julio Miguel Molinas Dias. Quando bombas explodiram, no ano seguinte, era Molinas quem comandava o DOI.
Nas páginas seguintes relata-se a história de como foi encoberto o atentado terrorista no Riocentro durante o governo Figueiredo. Baseia-se em depoimentos e documentos guardados nos arquivos do Supremo Tribunal Militar, da Procuradoria Militar e do Ministério Público Federal no Rio, além de entrevistas com oficiais, ex-agentes e colaboradores do DOI, CIE e do SNI no período. Nesses 33 anos, duas investigações apresentaram fatos novos e relevantes: a conduzida em 1999 pelo general Sérgio Conforto e a encerrada no mês passado pelos procuradores Antonio do Passo Cabral, Sergio Suiama, Ana Cláudia de Sales Alencar, Tatiana Pollo Flores, Andrey Mendonça e Marlon Weichert, do Ministério Público Federal no Rio. Juntas, desmontam a maior das pantominices montadas durante o regime militar.
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Riocentro: documentos revelam que Figueiredo encobriu atentado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU