06 Fevereiro 2014
As articuladas reflexões de Vito Mancuso, em Il Principio passione, partem da convicção de que "a doutrina cristã da criação deve ser profundamente renovada". Por isso, ele "pretende contribuir com uma reconstrução da cosmologia e, consequentemente, com uma renovada filosofia da natureza, na convicção da importância decisiva de tudo isso para a ética e a espiritualidade".
A análise é do teólogo italiano Carlo Molari, sacerdote e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana, de Roma, em artigo publicado na revista Rocca, 01-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O artigo da edição passada terminava com a afirmação de Vito Mancuso: "A intenção que subjaz à doutrina da criação a partir do nada é preciosa e deve ser salvaguardada com cuidado. Ela, no entanto, deve ser reformulada" (Il Principio passione, Garzanti, 2013, p. 248). As articuladas reflexões que ele propõe partem da convicção de que "a doutrina cristã da criação deve ser profundamente renovada" (p. 35). Por isso, ele "pretende contribuir com uma reconstrução da cosmologia e, consequentemente, com uma renovada filosofia da natureza, na convicção da importância decisiva de tudo isso para a ética e a espiritualidade" (p. 34 e ss.).
Assim, ele quer oferecer "uma particular compreensão ou visão do mundo" (p. 34) e mostrar que "a lógica orientada à harmonia identificada pelas grandes religiões e exemplificada pela sabedoria ética da humanidade na regra de ouro é a mesma que tornou possível, na evolução da vida, aquele processo que, dos gases primordiais, levou à vida inteligente" (p. 167 ).
Mancuso, portanto, recorre à ciência para fixar o horizonte dentro do qual é possível inserir os dados da tradição judaico-cristã. Muito rico e documentado, em particular, é o capítulo quinto, “Pensar a matéria”, com a referência às varias teorias sobre a matéria escura e sobre a energia (pp. 169-193). No entanto, a escolha que ele faz de acolher a proposta do físico teórico Claudio Verzegnassi "de identificar o logos com a energia escura" (p. 192) o leva a concluir de modo discutível que isso "está perfeitamente alinhado com a minha visão teológica, segundo a qual o mundo não é governado diretamente pelo Deus pessoal, mas, no entanto, é governado; bem longe de estar à baila do cego acaso, nele há uma lógica de fundo definível como logos e princípio ordenador" (ibid.).
Criação do caos
O caos tem um grande papel na proposta de Mancuso, porque resume o aspecto agônico (de luta) do processo cósmico e histórico, e constitui "um elemento estrutural do ser" (p. 250). Segundo Mancuso, os dois modelos bíblicos da criação: o ordenamento da matéria informe (Sabedoria 11, 17 e Gênesis) e a produção a partir do nada (2 Macabeus 7, 41), que ele examina de modo detalhado, se recompõem na perspectiva evolutiva, "isto é, considerando a criação não como ocorrida de uma vez por todas no início do tempo (Gn 2, 2) (...) mas como uma criação contínua, como processo dinâmico, como caminho sem itinerário prefixado e que, por isso, requer assídua dedicação, e considerando, consequentemente, o caos (...) como uma característica intrínseca à natureza criada, que é estruturalmente logos + caos e, por isso, permanentemente a caminho, in progress" (p. 242-243). "A conciliação entre ordenamento do caos e criação a partir do nada pode ocorrer somente com uma condição, a de o caos também seja, por sua vez, criado por Deus" (p. 238).
A terminologia utilizada e a força das metáforas poderiam sugerir a ideia de que o caos é uma realidade criada como componente das criaturas, como o Logos. Eu não acredito que se deva entender desse modo. O caos, de fato, é a consequência necessária do limite e da carência, e do limite das criaturas, enquanto o Logos precede as criaturas. O Logos introduz ordem inserindo informação na medida em que esta pode ser interiorizada pelas estruturas criadas; o caos, ao invés, é um subproduto, uma desordem que deriva da insuficiência da informação interiorizada e da presença de causalidades concorrentes.
O próprio Mancuso especifica que Deus "não quis o caos como tal", ele não "disse: 'Faça-se o caos, e o caos foi feito'". No entanto, "o ser criado é, desde já, um entrelaçamento original de logos e de caos" (p. 379). O caos, portanto, deve ser "reconduzido até a imperfeição estrutural do ser criado, que sai das mãos de Deus não como perfeitamente completo, mas como estruturalmente empastado de logos e de caos, de ordem de possibilidade chance de romper a ordem, condição sine qua non para o nascimento da liberdade e do espírito capaz de amor" (p. 262, cf. também pp. 378 e ss.).
Talvez teria sido oportuno insistir mais na incapacidade das criaturas de interiorizar, desde o início, todas as informações necessárias para o seu desenvolvimento e, portanto, na necessidade do tempo como estrutura constitutiva da realidade criada.
Princípio paixão como amor
O título do livro é programático, mas deve ser explicado. Paixão, de fato, "é um dos termos mais ricos e, portanto, mais ambíguos da nossa linguagem. Indica um sofrimento físico e espiritual (...); indica um sentimento dominante no qual se subjaz e que, contudo, dá energia (…); indica o âmbito ao qual nos dedicamos mais à vontade (...); indica o sentimento cego que perturba o equilíbrio e a capacidade de autocontrole" (p. 20). Paixão é "aquela energia particular" que "surge e se move" naquele espaço particular criado pela "discrepância (muitas vezes tão dolorosa) entre a análise da realidade (que levaria a não amar nem o mundo, nem os homens) e o sentimento interior que não se resigna a cair vítima da indiferença ou do cinismo, e faz do bem e do amor a mais alta dimensão do ser" (p. 20). E, portanto, entendida "seja no sentido de emoção dominante, que nos apaixona, seja no sentido de padecimento que nos faz padecer" (p. 20).
"Em todas as suas nuances, o termo 'paixão' indica, contudo, sempre algo pelo qual se é conquistado, algo que nos captura e que, por isso, nos torna objetos de uma ação que uma alteridade exerce sobre nós" (p. 21). O princípio paixão resume, então, duas dinâmicas que se cruzam no processo cósmico e nos eventos históricos: a força propulsora da vida e, ao mesmo tempo, a luta contra o limite, o sofrimento, o caos e a morte, que, porém, fazem parte essencial do devir. O princípio paixão é aplicado "a este mundo em toda a sua maravilhosa beleza e a sua conturbadora deformidade, a este mundo catedral do sentido e registro do absurdo, a este mundo que, às vezes, é pátria e, às vezes, exílio, e que reproduz nessa sua fugidia ambiguidade a mesma dinâmica inaferrável daquela forma peculiar de energia que chamamos de paixão" (p. 23).
A pergunta de fundo que atravessa todo o desenvolvimento da reflexão diz respeito a qual "relação existe entre o amor, como essência específica de Deus que cria, e a estrutura concreta deste mundo? Em perspectiva antropológica, trata-se de entender se quando amamos nos unimos e se cumpre a lógica do mundo, ou a combatemos e a negamos; se quando agimos pelo bem e pela justiça, reproduzimos uma lógica cósmica mais ampla voltada à harmonia relacional, ou colocamos em ato uma lógica totalmente estranha ao cosmos" (p. 9).
A resposta de Mancuso "é que o amor humano reproduza e leve a cumprimento a lógica do mundo" (pp. 22 e ss.). Por isso, a doutrina cristã da criação deve levar a compreender "que o amor não está em contradição com o trabalho do mundo, que o amor não é contestação ou transgressão da lógica que preside a natureza. Essa nova doutrina da criação transmite a ideia de que o amor, ao contrário, é um resultado da lógica que preside a natureza, e não um resultado qualquer, mas sim a aplicação mais coerente, porque a lógica do mundo está orientada para uma agregação cada vez maior, e o amor é o fruto mais belo de tal orientação" (p. 35). Por isso, Mancuso interpreta "a força que leve a amar como a expressão mais profunda da força quádrupla (gravitacional, eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca) que rege o universo" (p. 35).
Portanto, ele pode concluir: "Encontramos um termo para denominar a energia que levou Etty Hillesum, em 1942, a decidir deixar o posto relativamente seguro de datilógrafa no Conselho Judaico de Amsterdã para ir voluntária ao campo de concentração de Westerbork; a mesma energia que levou Dietrich Bonhoeffer, em 1939, a pegar o navio para a Alemanha, deixando a segurança e a carreira que Nova York lhe oferecia; a mesma energia que, nos anos 1930, levou Pavel Florensky a não renegar a fé diante das ameaçadoras pressões do regime comunista; a mesma energia que fez com que o padre Kolbe dissesse em Auschwitz: 'Mate-me no seu lugar'; a mesma energia que levou Oscar Romero a se transformar de prelado de carreira a defensor dos direitos do povo; a mesma energia que levou Paolo Borsellino a não recuar um passo no seu trabalho, mesmo depois da morte do amigo Giovanni Falcone. A mesma energia que leva muitos homens e muitas mulheres a amar e a trabalhar pelo bem e a justiça. Esse termo é espírito, e o seu produto mais alto se chama amor" (p. 193).
Eu acredito que essa é a parte mais significativa da reflexão de Vito Mancuso. A fórmula "criar do nada" não diz respeito tanto às origens das criaturas, mas sim à sua condição perene. Elas estão suspensas no nada, mas são continuamente emergentes pela atração do Bem, que, quando agarra, floresce nelas como amor.
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O amor que move o sol e as outras estrelas. Uma análise do novo livro de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU