17 Dezembro 2015
Para o interlocutor de fé judaica, ainda marcado pela recordação, nos séculos de história da Igreja, das conversões forçadas e do ensino do desprezo, o novo documento vaticano, provavelmente, tem as declarações mais significativas, que abrem caminho para uma nova confiança e para a abertura ao diálogo em curso entre as duas fés "fraternas".
A opinião é de Lisa Palmieri-Billig, representante na Itália e junto à Santa Sé do American Jewish Committee (AJC), em artigo publicado no sítio Vatican Insider, 14-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Reflexões sobre questões teológicas concernentes às relações católico-judaicas, por ocasião do 50º aniversário da Nostra aetate (n. 4)" é o subtítulo deste novo e importante documento da Pontifícia Comissão para as Relações Religiosas com os Judeus. E se trata de reflexões, não de "um documento oficial do Magistério da Igreja Católica, mas de um documento de estudo da nossa Comissão", como quiseram enfatizar tanto o cardeal Kurt Koch quanto o reverendo Robert Hofmann, respectivamente, presidente e secretário da Comissão, por ocasião da apresentação oficial do documento. Pode ser que eles tenham querido salientar essa distinção devido ao fato de que alguns conceitos teológicos fundamentais relativos ao diálogo judaico-católico continuam sendo "mistérios divinos".
De fato, ao menos três "mistérios divinos" centrais emergem do texto. Em primeiro lugar, a afirmação de que as duas Alianças separadas, a com Abraão e os seus descendentes na Bíblia hebraica (a Torá – o chamado "Antigo Testamento") e a com os cristãos no Novo Testamento, não estão em contradição, mas são ambas paradoxalmente válidas eternamente, é um mistério teológico que deriva do atributo "irrevogável" dos "dons e do chamado de Deus", como afirma o título que se refere à Carta aos Romanos de São Paulo.
Em segundo lugar, mesmo que as diretrizes contrárias às atividades missionárias direcionadas aos judeus estejam implícitas nos documentos anteriores, esta é a primeira vez que um documento do Vaticano as proíbe explicitamente, afirmando que a Igreja Católica não conduz nem encoraja qualquer missão institucional voltada especificamente aos judeus. Portanto, aos cristãos, é ensinado que eles são sempre "chamados a dar testemunho da sua fé em Jesus Cristo, mesmo perante de os judeus; mas devem fazer isso com humildade e sensibilidade, reconhecendo que os judeus são portadores da Palavra de Deus e levando em conta a grande tragédia da Shoá".
Em terceiro lugar, a falta de fé judaica na divindade de Jesus não exclui os judeus da salvação: "... não decorre, porém, que os judeus estão excluídos da salvação de Deus porque não creem em Jesus Cristo como Messias de Israel e Filho de Deus" e o fato de que "os judeus participam da salvação de Deus está teologicamente fora de discussão, mas como isso é possível sem uma confissão explícita de Cristo é e continua sendo um mistério divino insondável". (O documento também reconhece que a Torá é, para os judeus, aquilo que Cristo é para os cristãos.)
Para o interlocutor de fé judaica, ainda marcado pela recordação, nos séculos de história da Igreja, das conversões forçadas e do ensino do desprezo (para usar a terminologia de Jules Isaac), essas são, provavelmente, as declarações mais significativas, que abrem caminho para uma nova confiança e para a abertura ao diálogo em curso entre as duas fés "fraternas". Ao mesmo tempo, essas mesmas declarações envoltas nas contradições do "mistério divino" ajudam a explicar a relutância da Comissão em proclamá-lo como "documento oficial do Magistério".
O documento abrange um longo caminho em sete capítulos sintéticos e intensos:
A apresentação de caráter inter-religioso do documento na Sala de Imprensa vaticana marcou outro "primeiro" histórico, como observou o rabino David Rosen (diretor internacional de relações inter-religiosas do American Jewish Committee – AJC). Rosen, junto com o Dr. Edward Kessler (diretor e fundador do Woolf Institute de Cambridge) foram os dois convidados da fé judaica convidados para apresentar o documento vaticano.
"A presença aqui de representantes judeus é, por si só, um poderoso e eloquente testemunho da fraternidade reencontrada entre católicos e judeus", disse o rabino Rosen. "E, mesmo que o documento seja destinado aos fiéis católicos (…), a presença judaica em uma coletiva de imprensa (...) é muito encorajadora e reflete uma mudança verdadeiramente revolucionária na abordagem da Igreja para com os judeus e o judaísmo."
Além das instruções para os fiéis católicos sobre o veto sobre as atividades missionárias; a salvação para os judeus, apesar da sua falta de fé em Cristo; e a validade eterna tanto da "velha" Aliança judaica quanto da "Nova Aliança" cristã, o rabino Rosen observou também a importante reafirmação de um compromisso comum para combater o antissemitismo.
"Pelo estreito laço de amizade que une judeus e católicos, a Igreja Católica se sente particularmente no dever de fazer tudo o que está ao seu alcance, junto com os nossos amigos judeus, para rejeitar as tendências antissemitas. O Papa Francisco sublinhou várias vezes que um cristão nunca pode ser um antissemita, particularmente por causa das raízes judaicas do cristianismo."
O rabino Rosen também lembrou a "declaração revolucionária do Papa São João Paulo II: 'O antissemitismo é um pecado contra Deus e contra o homem'".
É possível notar que esse documento demonstra a grande capacidade de transformação da consciência da Igreja. Apenas meio século atrás, a Nostra aetate n. 4 ousava apenas timidamente "deplorar" o antissemitismo, achando necessário especificar também que isso não era "por motivos políticos".
Outra tema fundamental abordado pelo documento, de acordo com os dois apresentadores judeus, é a posição explícita contra a "substituição" ou a teologia da "substituição". O professor Kessler acolheu com favor a afirmação do novo documento de que "a Nova Aliança, para os cristãos, não é nem a anulação, nem a substituição, mas o cumprimento das promessas da Antiga Aliança".
Ao mesmo tempo, porém, advertiu que "cumprimento" pode facilmente se tornar "substituição", e que a teoria da substituição está viva e vegeta entre os bancos das igrejas.
"Como parceiro judeu no diálogo", disse o Dr. Kessler, "acolho com favor novas reflexões sobre o que significa 'cumprimento' nas relações com o judaísmo e como se pode garantir que essa transformação nas relações não se limite às elites, mas se estenda dos muros do Vaticano aos bancos das igrejas, aos escritórios dos rabinos-chefe, até dentro das nossas sinagogas." Ele sugeriu que, talvez, tinha chegado o momento de escrever uma nova Nostra aetate!
O professor Kessler lembrou que, de acordo com as "diretrizes" emitidas pela própria Comissão em 1975, "judaísmo e cristianismo deve ser entendidos nos termos em que se autodefinem", e que "o novo documento ainda tem muita estrada a fazer antes que eu possa me reconhecer na sua representação do judaísmo. Por exemplo, fala-se pouco do judaísmo contemporâneo – a atenção é posta, ao contrário, sobre o judaísmo bíblico e rabínico".
Outra questão atinente, destacada pelo rabino Rosen, diz respeito à falta de referência à "centralidade do papel da terra de Israel na vida religiosa histórica e contemporânea do povo judeu". Ele lembrou que a instauração de relações diplomáticas entre a Santa Sé e o Estado de Israel foi um dos "marcos" dessa "extraordinária viagem desde a Nostra aetate", que reflete o "repúdio" da Igreja Católica a uma antiga representação do "povo judeu como errantes condenados a serem sem-teto até o advento final".
Ele lembrou que a relação entre religião, as pessoas e a terra já havia sido explorada anteriormente (nas suas dimensões religiosas, não políticas) nas reuniões do Comitê Internacional para as Relações Católico-Judaicas dos anos setenta (ILC).
Também foi apreciada a ênfase dada pelo documento às responsabilidades que pesam sobre as instituições acadêmicas em relação à integração, nos seus programas, tanto da Nostra aetate quanto dos documentos posteriores emitidos pela Santa Sé no que diz respeito à implementação da declaração conciliar.
A realização dessas conquistas na sociedade civil "continua sendo, absolutamente, o desafio mais importante", disse o rabino Rosen. Ele também observou a presença de diferenças em nível geográfico. Nos EUA, por exemplo, católicos e judeus são minorias consistentes da população, e o diálogo está muito avançado. Nos EUA, a Nostra aetate penetrou em todos os níveis nas escolas católicas, enquanto na Ásia e na África, onde vivem poucos judeus, há pouco conhecimento histórico ou religioso das relações entre católicos e judeus.
Da mesma forma, muitos judeus israelenses têm pouco ou nenhum conhecimento do cristianismo contemporâneo. "Quando eles viajam, as pessoas que encontram são vistas como 'outros', não necessariamente como 'cristãos'", disse Rosen.
A colaboração entre judeus e católicos "no compromisso comum em favor da justiça, da paz, da salvaguarda da criação e da reconciliação em todo o mundo" é outro ponto fundamental do documento, há muito tempo defendido também pelo judaísmo ortodoxo. A ortodoxia judaica, relutante em aceitar o diálogo teológico, contudo, sempre manteve uma ação comum nesse setor.
Por fim, o rabino Rosen apresentou uma "Declaração do Rabinato Ortodoxo sobre o Cristianismo", emitida na semana passada e assinada, até agora, por 48 rabinos ortodoxos "à frente de comunidades, instituições e seminários em Israel, Estados Unidos e na Europa." Entre as assinaturas, encontramos nomes ilustres e muito influentes.
Ao listar diversas declarações rabínicas através da história sobre a apreciação pelos ensinamentos de Jesus, afirma-se que, "agora que a Igreja Católica reconheceu o pacto eterno entre D'us e Israel, nós, judeus, podemos reconhecer a validade constante e construtiva do cristianismo como nosso parceiro na redenção do mundo, sem qualquer temor de que isso poderia ser explorado para objetivos missionários. Como declarou a Comissão Bilateral do Grã-Rabinato de Israel com a Santa Sé, liderada pelo rabino Shear Yashuv Cohen, 'nós não somos mais inimigos, mas parceiros ao articular os valores morais essenciais para a sobrevivência e o bem-estar da humanidade'. Nenhum de nós pode realizar a missão de D'us neste mundo sozinho".
"Esperamos que muitos outros rabinos ortodoxos acrescentem as suas assinaturas", disse o rabino Rosen, observando que as barreiras ao compromisso com o diálogo por parte de muitos judeus se deveram mais à história do que a motivações teológicas. Mas ele também espera uma forte oposição por causa das diferentes posições pessoais.
Rosen lembrou que, ainda no ano 2000, um documento relativo às novas relações entre cristianismo e judaísmo, "Dahru Emet" ("Falar a verdade"), foi assinado por mais de 220 rabinos e intelectuais provenientes de todos os ramos do judaísmo. No entanto, dado que as vozes da ortodoxia sempre foram minoritárias, esse novo documento é bem significativo.
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A nova aliança judaico-cristã: qual o significado para os judeus do novo documento do Vaticano? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU