15 Dezembro 2015
A política brasileira de saúde mental, álcool e outras drogas é hoje reconhecida internacionalmente.
Ela é resultado de uma mudança radical na abordagem e atendimento de pessoas portadoras de transtornos mentais, a partir da Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/2001), aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso.
A reportagem é de Conceição Lemes, publicada por Viomundo, 14-12-2015.
No topo, o ministro Marcelo Castro e o novo coordenador-geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Valencius Wurch. As três fotos seguintes são da Casa de Saúde Dr. Eiras, todas do arquivo pessoal da médica Cristina Vidal. A primeira, uma vista da Casa de Saúde Dr. Eiras. A segunda, entrada de refeitório de um dos pavilhões. A terceira, um espelho doloroso. Na década de 1970, a direção internava lá crianças com retardo mental, paralisia cerebral e adultos deficientes após os 18 anos. Todas iam para o Pavilhão Santa Rosa. A foto é desta época. Em 1997, com o fechamento da Funabem, em Botafogo, todos os internos foram levados para lá. Uma casa de horrores
Imagens publicadas no portal Viomundo
Praticamente em todos os países desenvolvidos houve um processo de reforma do modelo assistencial em psiquiatria, cujo objetivo sempre foi retirar o hospital psiquiátrico – o chamado manicômio — do centro da assistência e levar o tratamento para o ambiente comunitário.
No Brasil, isso também aconteceu. Antes, a internação em hospitais psiquiátricos era considerada como a principal ou única possibilidade de tratar pessoas com transtornos mentais e necessidades de saúde decorrentes do uso álcool, crack e outras drogas.
Porém, com a Reforma Psiquiátrica, um modelo mais humanizado foi construído, e os cuidados para a reinserção social, a reabilitação e a promoção de direitos humanos passaram a ser foco do tratamento.
“O processo brasileiro de reforma psiquiátrica vai além da questão da desospitalização”, explica o psiquiatra Rossano Cabral Lima, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
O objetivo principal é construir um outro lugar social para o portador de transtorno/sofrimento mental, já que os muros do manicômio podem se reproduzir, de modo simbólico mas igualmente violento, no cotidiano das famílias e da cidade como um todo.
Isso implica, por exemplo:
Pois esta política de Estado, aprovada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), acaba de sofrer um golpe seriíssimo. O autor, o próprio ministro da Saúde, Marcelo Castro.
Na quinta-feira passada, 10 de dezembro, em audiência pública com representantes de 656 entidades de saúde e movimentos sociais ligados à luta contra os manicômios, ele anunciou para coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde (MS), o psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho.
O ministro avisou que Valencius assumiria nesta terça-feira 15, substituindo o também psiquiatra Roberto Tykanori, coordenador da área desde o primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff.
O ministro antecipou para esta segunda-feira. Saiu no Diário Oficial da União a nomeação de Valencius e exoneração de Tykanori. Voltando à audiência da última quinta-feira.
O ministro, que é psiquiatra, deixou para dar a informação bem no finalzinho da audiência. O psiquiatra Rossano Cabral Lima estava presente. Os grifos em negrito são desta repórter.
“Num primeiro momento, nos disse, que, como estávamos demandando a permanência do atual coordenador e outro grupo recebido por ele havia indicado outro nome para o cargo, ele iria procurar um ‘caminho do meio’”, conta Rossano ao Viomundo.
“Depois, ao final, disse que já havia feito o convite para um amigo que trabalha no Rio de Janeiro, ele havia aceitado e chegaria em Brasília na próxima terça”, prossegue. “Indaguei-lhe, então, se poderia nos informar o nome. Ele falou que se chamava Valencius.”
“Pouco antes dessa revelação disse que iria ‘abrir o coração’. Achava que a atual gestão da saúde mental havia exagerado na direção política e ideológica do campo, e que queria dar uma condução mais ‘científica’”, relembra Rossano Lima. “Chegou a tecer críticas à influência de teóricos como Michel Foucault na formação de colegas de sua geração de psiquiatras.”
Assim como o ministro, o seu amigo é do Piauí.
Fiz uma busca no Google e em sites em informação e comunicação científica em saúde.
Não achei nenhum trabalho científico sobre saúde mental publicado por Valencius Wurch.
O seu Lattes informa que, de 1979 a 1981, fez residência médica em Psiquiatria na Universidade Federal Fluminense (UFF). E desde 1982 é médico do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro.
Nada além.
Logo, ou ministro não conhece direito as atividades acadêmicas e profissionais do amigo ou a palavra científica tem outro significado para ele.
Daí, duas questões:
*Como alguém com tal currículo comandará de maneira mais ‘científica’ a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool, Crack e outras Drogas?
*Como fica o ministro para quem o cargo exige autoridade científica que o seu protegido não tem?
De 1994 a 2000, Valencius Wurch foi diretor-técnico da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro. A Dr. Eiras foi o maior hospital psiquiátrico de administração privada da América Latina.
Em manifesto, um grupo de médicos psiquiatras denuncia:
Valencius, anunciado hj pelo ministro da saúde como Coordenador Nacional de Saúde Mental foi, por 10 anos, diretor e feroz defensor do manicômio chamado “Casa de Saúde Dr Eiras”.
A Dr Eiras, o maior hospício da América latina, era da família de notório fascista brasileiro, Leonel Miranda, ministro da saúde na ditadura. Esse hospício funcionava como um campo de concentração com 2000 leitos, onde milhares de pessoas eram por décadas maltratadas até a morte, geralmente por fome, por violência física, por doenças de fácil controle e curáveis.
Em nota ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), sete entidades respeitadas esclarecem:
A Casa de Saúde Dr. Eiras faz parte de um histórico sombrio da psiquiatria brasileira, uma vez que cumpriu o papel de ser o maior hospital psiquiátrico privado da América Latina.
No ano 2000, o relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, constatou graves violações de direitos humanos na Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, tipicamente encontradas nas grandes instituições manicomiais, tais como prática sistemática de eletroconvulsoterapia, ausência de roupas, alimentação insuficiente e de má qualidade e número significativo de pessoas em internação de longa permanência.
Vale dizer que Valencius Wurch era assumidamente contra a Reforma Psiquiátrica.
Em entrevista ao Jornal do Brasil, publicada em 7 de junho de 1995, ele criticou os fundamentos do projeto de lei n. 3657/1989, cujo substitutivo deu origem à Lei da Reforma Psiquiátrica, a 10.216/2001, marco regulatório da Política Nacional de Saúde Mental.
Afirmou serem os fundamentos “de caráter ideológico, e não técnico, e se baseiam em situações ultrapassadas”.
Por coincidência, parte da crítica do ministro à atual gestão, que, segundo ele, teria exagerado na direção política e ideológica do campo.
O psicólogo e consultor Luiz Bolzan pergunta então: como tortura e reclusão seriam terapêuticos? Que elementos terapêuticos teriam técnicas de tortura e total reclusão?
Ele mesmo responde. Nenhuma.
“Como demonstram vários autores, como Habermas, Mészaros, Marcuse, entre outros, toda técnica é ideológica, resta saber a serviço de quem. Da manutenção do status quo dominante ou dos trabalhadores, dos que sofrem e tem o Estado e o capital contra si?’, questiona Bolzan. “O alienismo tem muitos interesses econômicos.”
A psicóloga Semiramis Vedovato, membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS) pelo segmento de trabalhadores de Saúde e pelo Conselho Federal de Psicologia, põe o dedo na ferida: “Ao contrário do que falou na audiência pública, a escolha do ministro se mostra ideológica, pois de científico o sr. Valencius não tem nada produzido e a ideologia dele é do retrocesso e na lógica manicomial. Portanto, trata-se de uma escolha que ameaça frontalmente a Reforma Psiquiátrica e, principalmente, o SUS”.
CONHEÇA O INFERNO SOB A DIREÇÃO DE VALENCIUS. ELE VAI TOCAR O MINISTÉRIO COMO A DR.EIRAS?
A psiquiatra Ana Paula Guljor, Ph.D. em Saúde Pública e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), conheceu bem de perto o trabalho de Valencius Wurch.
De 1995 a 1997, ela foi assessora de Saúde Mental do município de Paracambi. Seu trabalho: supervisora hospitalar da Casa de Saúde Dr. Eiras.
Pedi à doutora Ana Paula que fizesse para o Viomundo um breve relato daquele período. “É sempre muito duro reviver aquela época. Ainda me enche os olhos d’ água”, confessa.
Acompanhe o relato dela e entenda melhor por que é contra a indicação de Valencius Wurch:
Eu assumi em março de 1995.
Antes, eu já tinha ido à instituição para contatos pontuais com a direção. Eram sempre tensos, mas não havia me detido em permanecer no hospital.
Nas comissões de auditoria, o diretor [leia-se o Valencius Wurch], levava os avaliadores para onde desejava e nunca ninguém questionava.
Em minha primeira supervisão, achava que deveria ser assim. Afinal, os grupos eram muito mais experientes que eu…
Decidi reorientar o foco da supervisão. Só neste momento percebi a dimensão da tragédia que era a Dra. Eiras.
Alguns pavilhões, de mais fácil acesso, eram mais cuidados. Apesar de muito ruins, ainda era possível detectar neles existência de vida…
Alguns com cores, apesar das paredes descascadas, tinham pacientes mais ativos, agitados, inquietos e com roupas — rasgadas sim, mas existiam.
O cheiro de creolina intenso faziam minhas lentes de contato embaçar, mas encobriam de alguma forma o cheiro de excrementos.
Os pavilhões de triagem eram o São Pedro, masculino, e, se não me engano, o Santa Rosa, feminino.
Estávamos em 1996 e o problema que me chamou atenção no Santa Rosa foi o retorno das práticas de eletrochoque, disfarçadas mas existentes.
Encontrávamos os indícios do uso do eletrochoque apenas nos livros da enfermagem, em nenhum outro lugar.
Naquele momento inicial, o primeiro alvo não era a triagem. Como o objetivo era a redução das internações longas, comecei a cadastrar os usuários que permaneciam nos pavilhões de longa permanência.
Estes, sim, são o inferno na terra. Era uma longa caminhada – literalmente — até chegar a cada um deles.
Os pavilhões Santana e Maria Helena exigiam disposição. Caminhar debaixo de sol forte, sobre terreno irregular, durante um bom tempo. Um cadeirante circular por ali seria impossível.
Essa caminhada mais longa exauria não apenas o físico. Quanto mais longe era, mais abandono se via.
As roupas velhas se transformavam em trapos e estas, depois, em nudez. O chão coberto, dentro e fora dos pavilhões, por sequência de pessoas desnudas, inertes, de olhar ao longe ou em movimentos para si.
Diferente dos demais pavilhões de chegada, eu não era assediada por cigarros ou para ceder minhas bijuterias ou meus acessórios coloridos, característica minha desde a juventude.
Naquele caminho, era a vastidão. Após algum tempo na instituição, talvez na esperança de que eu desistisse da caminhada, já não mandavam mais pessoas me acompanhar até os locais.
Vastidão…solidão… Parecia que as pessoas se misturavam com as paredes das estruturas da construção – cinzentas, da cor do cimento e dos paralelepípedos.
Poucos resistiram à inércia que parecia contaminar os habitantes do local. Técnicos e pacientes. Sofrimentos distintos, mas sofrimentos reais. Uns sem esperanças de saída daquele lugar, pois eram “crônicos”, como todos repetiam a exaustão — final da linha de trem, como em Barbacena, o mesmo trem de doidos.
Os outros, profissionais de nível médio, condenados a cuidar de seres que não acreditavam poder ajudar a ficar diferentes.
Algo me chamava a atenção. Os mantras eram “acreditar”, “ter fé”. Palavras como “alta”, “reinserção”, “retomada”, reinício” não existiam ali.
No seguir da caminhada, entre as cores cinza do lugar: cinza parede, cinza técnico, cinza paciente, me encontrei diante da entrada do pavilhão São Miguel me parece ou algum outro dos Santos condenados a dar nome aqueles lugares de inferno. Já a alguns metros percebia o cheiro forte de urina.
As canaletas nos pátios eram estrategicamente colocadas para que a urina chegasse ao ralo, o que raramente ocorria.
As baias — não eram enfermarias…– ladrilhadas até quase o teto. No alto, alguns cobogós [tijolo perfurado ou elemento vazado, feito de cimento, utilizado na construção, com a função de quebra-sol ou para separar o interior do exterior] ou supostas ventanas de cimento, que não podiam ser fechadas. De forma que impediam a entrada do ar no verão e gelavam o ambiente no inverno.
Colchões eram raridades e lençóis inexistentes.
As camas eram de ladrilho e tinham argolas ao lado. Não é difícil entender que serviam para a contenção.
Os banheiros com sanitários sem descargas (muitos), sem portas para permitir uma privacidade, mal cheirosos e sujos. Alguns — com bancada de ladrilho em formato de uma longa pia com várias torneiras — eram para lavar as mãos, para o xixi de alguns e para beber água fresca, pois não havia bebedouros.
Em geral, dois profissionais para cerca de 90 pacientes. No pavilhão daqueles com quadros neurológicos, o pior dos mundos…
Pessoas se arrastando no chão, sem roupas, com marcas no corpo de cicatrizes que eu tinha medo de pensar qual a origem, mas supunha que eram maus tratos.
A comida não daria para meus cachorros em casa…
Foram muitos meses de sofrimento, mas com a esperança de que meu trabalho de relatar o que acontecia, de ter um cadastro dos pacientes com histórias mínimas do prontuário, contato de família entre dados de vida banais mas existentes, me permitiria contribuir com as equipes e mudar aquela situação.
Após dois anos na Dr. Eiras, consegui montar um banco de dados e enviar muitos relatórios para a vigilância sanitária e coordenação estadual de Saúde Mental.
Aí, finalmente entendi. Com o tempo, vamos ficando cinzas quando as portas nunca se abrem. Assumimos as cores das paredes. Assim era com os viventes daquele espaço.
Dei sorte. Em 1997, fomos afastados pelo novo secretário de Saúde e pudemos chorar e sofrer na alma a desconstrução de um projeto. Isto nos trouxe de volta as cores: vermelha, da indignação, e verde, da esperança.
Voltamos lá após a intervenção de 2000. Desta forma fiquei, junto, na luta, até apagar a luz e fechar a porta”.
Resultado de tudo isso: a tese de doutorado de Ana Paula Guljor na Fiocruz, orientada por Paulo Amarante. Título: O fechamento do hospital psiquiátrico e o processo de desinstitucionalização em Paracambi: um estudo de caso.
Ana Paula, aliás, nunca abandonou Paracambi. Foi coordenadora do Polo de Saúde Mental (2001 a 2004), supervisora do CAPS Vila Esperança Paracambi (2005-2008), assessora da coordenação de Saúde Mental de Paracambi (2001 a 2010).
OU O BRASIL CONTINUA AVANÇANDO NA SAÚDE MENTAL OU VOLTARÁ AO TEMPO DAS TREVAS
Diante desse relato, fica fácil entender a grita geral de entidades e movimentos que atuam na área de Saúde Mental contra a indicação de Valencius Wurch para coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde.
Não se trata de mero cargo. Valencius será simplesmente o responsável pela Política Pública Nacional de Saúde Mental.
Seguramente, mudança de 180 graus em relação a Roberto Tykanori, que desde fevereiro de 2011 é Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde.
Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina da USP, onde fez também residência médica em Psiquiatria, Tykanori é uma das referências nacionais em Saúde Mental e um dos nomes importantes do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Por exemplo, esteve à frente do processo de reforma psiquiátrica de Santos, no litoral paulista, a primeira cidade brasileira que fechou um manicômio e construiu uma rede substitutiva com serviços abertos territoriais de 1989 a 1996: os Núcleos de Apoio Psicossocial e outras experiências pioneiras – cooperativa de trabalho Paratodos, Rádio Tam-Tam, Centro de Valorização da Criança (anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente), enfermaria para acolhimento de crianças ameaçadas pelo Crack (droga que chegava em São Paulo na ápoca) juntamente com a Ação Social, as famílias e o Conselho Tutelar.
Foi coordenador de Saúde Mental do município de São Paulo de 2001 a 2004, na gestão de Marta Suplicy.
Desde 2005, professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – campus Baixada Santista, é doutor em Saúde Coletiva.
Estamos, portanto, numa encruzilhada. Ou continuamos avançando na área de Saúde Mental no Brasil ou retroagiremos ao tempo das trevas. Ao publicar nesta segunda-feira a nomeação do seu amigo, o ministro Marcelo Castro já tomou a decisão. Optou pelo retrocesso.
Resta saber se o Conselho Nacional de Saúde (CNS), que se reúne nesta semana, vai deixar por isso mesmo.
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Trevas no rumo da Saúde Mental: ministro critica influência de Foucault e indica psiquiatra que dirigiu casa de horrores; “a comida não daria para meus cachorros” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU