25 Agosto 2015
"Para pais inseguros é mais fácil exigir que a instituição mude que fazê-lo com filhos sem limites. E assim chegamos ao momento atual, em que os professores estão a cada dia com mais dificuldade para exercer o seu papel precípuo: ensinar", escreve Tania Zagury, filósofa, professora adjunta da UFRJ, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 23-08-2015.
Eis o artigo.
Pais hesitantes, que preferem exigir que a escola mude a impor eles mesmos limites aos filhos, são uma das causas da proliferação de colégios públicos militarizados, acredita filósofa
Muitas pessoas ficam perplexas, outras revoltadas e algumas reagem a favor da decisão de entregar à Polícia Militar a gestão de algumas escolas públicas brasileiras. Tudo começou a partir da ideia do governador Marconi Perillo, que implantou a primeira há poucos anos, em Goiás. Hoje são mais de 90 no País. Em foco: diminuir a indisciplina e os danos ao patrimônio público e melhorar os índices de aprendizagem dos alunos.
Dentro do mesmo enfoque se pode situar a matéria que o Fantástico, da TV Globo, reportou sobre a proliferação de acampamentos nos Estados Unidos onde crianças e adolescentes insubordinados são internados pelos pais diante do crescente desrespeito dos filhos. Exauridos pelo fracasso de suas tentativas de retomar as rédeas de uma situação em que a autoridade paternal fracassou, optam pela medida como derradeiro recurso contra a marginalização - direção na qual parecem caminhar seus perdidos rebentos. Situação bem próxima à que se encontravam as escolas militarizadas.
Nos dois casos, trata-se de encarar um momento em que família e escola se percebem frente a jovens com quem o diálogo se mostrou inútil e o desrespeito se tornou a regra. A duração da estada nos acampamentos varia de um fim de semana a até um ano, dependendo da decisão dos coordenadores, quase sempre ex-militares inspirados na própria vivência de obediência sob pressão. Sem qualquer preocupação psicológica, encarregam-se de mostrar aos mimados clientes que ali o regime não é questionável. Mantêm os jovens em tarefas sucessivas, alternando-as com exercícios físicos pesados, até que caiam na cama e durmam de exaustão. O dia seguinte - e todos os demais - são exatamente assim.
Os coordenadores agem na crença de que os internos precisam de um choque de realidade para compreenderem o que é a vida. No caso brasileiro, trata-se, a meu juízo, das consequências práticas da adoção de uma ideia que começou a circular em torno dos anos 1970, segundo a qual dar limites ao educar levaria a criança a se tornar reprimida, frustrada e até traumatizada! “A escola é castradora” foi jargão que ouvi à exaustão na minha juventude. Muitos o repetiam, sem nem sequer supor que poderia trazer consequências negativas no futuro. Era expressão simpática aos jovens de então, contemporâneos de um momento em que o conceito de liberdade, interpretado como o “direito de fazer só o que se deseja e quer”, era cantado em prosa e verso - influência das teses existencialistas, da revolução estudantil de 1968, da filosofia hippie, da oposição à Guerra do Vietnã.
No Brasil, o problema começou a partir do momento em que as mídias fizeram chegar a todos os cidadãos os conceitos referidos. Por várias razões, esses conceitos acabaram sendo distorcidos ao serem simplificados e descontextualizados, o que levou boa parte dos pais, assustados e temendo provocar danos emocionais nos filhos, a abandonar o fundamental papel que sempre desempenharam: de socializadores primários e geradores da ética. Afinal, qual o pai saudável mentalmente que, por vontade própria, quer traumatizar o filho?
Assim, acreditando que o diálogo seria instrumento suficiente para que sua prole trilhasse o caminho da cidadania, jogaram pela janela a hierarquia familiar. Em consequência, seus filhos, com muita liberdade e poucos limites, passaram a compreender o mundo como espaço criado para satisfazê-los em seus quereres. E foi assim também que interpretaram os esforços dialógicos de seus hesitantes pais: como licença para fazerem apenas o que lhes aprouvesse. Muitos pais só perceberam quão inadequada foi a forma de educar os filhos quando já era tarde demais. A geração nem-nem que o diga! Dados do IBGE (PNAD 2012) revelaram que o número de jovens de 15 a 29 anos que não estudam nem trabalham chegava à época a 9,6 milhões, ou seja, uma em cada cinco pessoas nessa faixa etária - e nem todos por falta de emprego ou oportunidade de estudo - eis aí o grande problema -, mas por falta de limites e projeto de vida.
A insegurança dos pais ao educar ainda persiste, mas cresce o número dos que depreendem que a falta de limites e a superproteção comprometem a formação dos filhos, com grande prejuízo para suas vidas. Infelizmente, porém, o problema tem se agravado porque, também na escola, essa visão equivocada encontrou espaço. Teorias psicologizantes, aliadas a medidas educacionais equivocadas e outras de caráter meramente político e não comprometidas com o saber, têm dominado o cenário nas últimas décadas. E, assim, jovens indisciplinados e não socializados adentram um ambiente escolar de conveniente impunidade, encontrando, também aí, um lugar para chamar de seu. Se ocorre resistência a seus desmandos, remetem-se a seus dominados papais, que, acuados pelos filhos tiranos já crescidos, são pressionados a questionar quaisquer medidas que a escola, mesmo timidamente, tente implantar para discipliná-los.
Para pais inseguros é mais fácil exigir que a instituição mude que fazê-lo com filhos sem limites. E assim chegamos ao momento atual, em que os professores estão a cada dia com mais dificuldade para exercer o seu papel precípuo: ensinar. Em alguns casos, têm dificuldades até para preservar a integridade física. E mental. Felizmente não é em todas as escolas, mas a situação é crítica em grande parte da rede pública - e em parte da rede privada. Nesse contexto fica difícil alcançar o que, em educação, chamamos de situação de aprendizagem: um conjunto de condições que precisam existir para que a pessoa - criança, adolescente ou adulto - possa aprender. Segundo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é o país em que o professor mais perde tempo de aula acalmando os alunos para poder ensinar (em média 20% de cada aula). Em situação de agressões, chacota, cutucadas e ameaças, não se consegue aprender - nem ensinar. Significa que, na sala de aula regida pelo desmando, o aluno não alcança o nível mínimo de concentração exigido para, por exemplo, ativar a memória de longa duração, essencial para que a aprendizagem não só ocorra, mas permaneça. Sem falar em atenção e motivação, condições que permitem à pessoa se concentrar, pensar e agir a favor da aprendizagem. Não existe milagre em educação. Professor acuado e agredido é professor inibido e atormentado. Aluno que demonstrou desejo de estudar e, por essa razão, é perseguido e maltratado pelos que aprenderam a amar a desordem e a impunidade se encolhe e não aprende.
Se a sociedade não acordar para a realidade dos fatos que aqui tento resumir; se não aprendermos com os erros recentes; se não abolirmos do sistema educacional as medidas inócuas e as deletérias que se tem tomado em educação nas últimas décadas (como a Progressão Continuada e o Sistema de Ciclos, que parece estar acabando, afinal); se, além disso, continuarmos a fingir que liberdade e licenciosidade são a mesma coisa, quando não o são de forma alguma; se não agirmos com presteza, diante do absurdo em que estão imersas as escolas da rede pública, em breve não teremos mais como reverter o quadro. Surgirão assim, a cada dia, mais e mais pessoas que, ainda que bem-intencionadas, acabarão atraídas para o outro extremo da linha que separa autoridade de autoritarismo.
E, assim como vemos nos protestos legítimos das ruas pessoas que se misturam aos que se manifestam contra a desonestidade e a corrupção para clamar pela volta da ditadura, assim também veremos crescer o quantitativo dos que defenderão a militarização primeiro nas escolas, depois na sociedade. Não, não precisamos de escolas militarizadas nem de acampamentos para rebeldes. Precisamos apenas compreender que só há aprendizagem em condições propícias ao aprender; que só teremos docentes de qualidade se lhes dermos condições para atenderem aos seus legítimos anseios de ensinar, porque - ganhem bem ou mal - não os teremos enquanto continuarem apanhando em sala de aula. Nem teremos democracia e igualdade de oportunidades se os jovens crescerem achando que têm todos os direitos, mas se esquivando aos deveres que lhes correspondem. Não existe cidadania quando só se tem direitos.
Devolver a autoridade aos docentes, volto a insistir, nada tem a ver com autoritarismo, e sim com o direito que a pessoa que ocupa um cargo precisa ter para alcançar o objetivo a que a instituição se propõe - sem ser confrontada a cada instante, e no mesmo patamar, por quem deseja e promove o impedimento ao direito que o outro e cada um têm de ter. Afinal, igualdade de oportunidades e democracia começam por aí.
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Sob rédea curtíssima. A opção por escolas militares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU