19 Junho 2015
"Para Francisco, a questão-chave é “redefinir o progresso”, a fim de reforçar a política em face de um sistema econômico dominante profundamente excludente. Nesse sentido, o papel da Igreja é, em grande parte, educacional. Laudato Si’ incentiva os movimentos de base feito por consumidores socialmente responsáveis e encoraja os católicos a serem politicamente ativos de várias maneiras", escreve Massimo Faggioli, em artigo publicado por Commonweal, 18-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A encíclica do Papa Francisco Laudato si’ defende nada menos do que uma revolução cultural. Em prosa facilmente legível, o pontífice convida as pessoas de todas as religiões a combater, com urgência, a crise climática produzida por nós mesmos. Embora o texto afirme claramente o consenso científico sobre o aquecimento global, Laudato si’ preocupa-se mais com o poder político e econômico do que com a ciência. Nesse sentido, a encíclica inspira-se e se edifica na tradição do ensino da Igreja sobre o meio ambiente, que remonta a Paulo VI e continua até o pontificado de Bento XVI.
Dificilmente o escopo da encíclica poderia ser mais amplo. Francisco enfatiza a solidariedade entre todas as criaturas de Deus, entre os seres humanos e o resto da criação. No entanto, o papa não se afasta de uma análise política mais detalhada. Por exemplo, ele exorta os países a reduzir o dióxido de carbono e outros poluentes.
Mas a primeira fonte da encíclica, muito visível na introdução, é Francisco de Assis (o título da encíclica foi retirado do “Cântico das Criaturas”, de Francisco de Assis).
Francisco se inspira na Pacem in Terris (1963), de João XXIII, encíclica escrita durante uma outra crise mundial: a Guerra Fria. Como Pacem in Terris, a nova encíclica dirige-se às pessoas de boa vontade no intuito de “entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”. Naturalmente, o papa cita o Vaticano II (Gaudium et Spes), juntamente com os ensinamentos de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI (especialmente Caritas in Veritate, escrita por este último).
Outras citações importantes vêm de Teilhard de Chardin e Romano Guardini. Ele também menciona as cartas de algumas Conferências Episcopais (especialmente a dos bispos da América Latina e Caribe). Igualmente, ele cita o trabalho do Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, que tem falado de forma comovente sobre as questões ambientais.
Em alguns aspectos, Laudato Si’ parte de onde Evangelii Gaudium parou. Francisco denuncia a “cultura do descarte”, o poder da tecnologia e da globalização que busca insanamente o lucro. Como esperado, ele afirma o consenso científico sobre o aquecimento global. A fim de melhor ouvirmos o que a terra está nos dizendo, escreve Francisco, a Igreja deve defender os pobres – os primeiros a sofrerem os efeitos das mudanças climáticas.
O Papa rejeita as “soluções demográficas” (como escreve Paulo VI na Humanae Vitae, porém Francisco não cita o texto aqui), tais como o controle populacional. Ele critica os países ricos que alavancam as necessidades dos mais pobres em nome do controle político. Particularmente forte é a análise do papa das relações entre a política, a economia global e a informação, que é manipulada por interesses comerciais. Francisco lamenta que, no debate sobre o meio ambiente, o papel da política está, em grande parte, ausente.
O Evangelho pede à Igreja que fale contra tudo o que ameace a dignidade de cada ser humano, incluindo a desigualdade. Nesse sentido, a ecologia de Francisco é totalmente pró-vida: o respeito pelas pessoas e o respeito por outras criaturas estão intimamente ligados.
A seção mais forte de Laudato Si’ é a sua crítica da tecnocracia (um ceticismo compartilhado por Bento XVI). O “paradigma tecnocrático” se reflete em nossa incapacidade de compreender o fato de que muitos dos recursos do planeta são finitos.
Para Francisco, a tecnologia nunca é neutra – ela pode ser usada para produzir efeitos maléficos. O mercado em si não irá corrigir isto por conta própria. Portanto, a própria Igreja deve oferecer uma voz unificada, a fim de ajudar a nos libertar do paradigma tecnocrático. Para isso, Francisco exorta-nos a repensar os nossos excessos consumistas: uma boa relação com a criação pressupõe um bom relacionamento com o Criador.
De acordo com Francisco, a ecologia sempre inclui cuidar dos pobres, dos marginalizados e da natureza. Isso também significa proteger a cultura: a palavra “inculturação” não aparece no texto, mas, para a Laudato Si’, a verdadeira ecologia deve ser inculturada, e não importada com uma mentalidade colonialista. A “ecologia humana” autêntica não ignora as diferenças sexuais: aceitar a masculinidade e a feminilidade, escreve o Papa, é uma forma de respeitar criação, em vez de impor a nossa vontade sobre ela. Nesta apresentação católica de ecologia, a sociedade tem um papel na defesa do bem comum, assim como os países e governos.
Em parte, Francisco culpa uma falha na governança global para a atual crise climática. Aqui, o papa repete o apelo a uma autoridade política mundial que começou com João XXIII. Quando os cidadãos se deparam a corrupção política, eles devem resisti-la. É a corrupção, afinal de contas, que subjuga a política aos interesses financeiros. O Papa Francisco não mediu palavras. Ele considera a crise financeira de 2007-2008 como uma oportunidade perdida que poderia ser usada para mudar todo o sistema econômico (em vez disso, o Ocidente focou-se em salvar os grandes bancos).
Para Francisco, a questão-chave é “redefinir o progresso”, a fim de reforçar a política em face de um sistema econômico dominante profundamente excludente. Nesse sentido, o papel da Igreja é, em grande parte, educacional. Laudato Si’ incentiva os movimentos de base feito por consumidores socialmente responsáveis e encoraja os católicos a serem politicamente ativos de várias maneiras.
A encíclica termina com duas orações. Na oração inter-religiosa, encontramos os temas favoritos de Francisco: a ternura, os pobres e a “nossa luta pela justiça, o amor e a paz”. Na oração ecumênica, ele pede pela conversão dos ricos e poderosos no sentido de servirem ao bem comum – protegendo os pobres e a terra.
Como todo o ensino social católico, este rico documento estará sujeito a interpretações. Algumas questões me parecem importantes para compreendermos o impacto da Laudato Si’ nos Estados Unidos.
Em primeiro lugar, Francisco escreve sobre a criação e o meio ambiente a partir de uma perspectiva cultural que é diferente da de muitos americanos. Francisco é um papa um tanto urbano, e para ele o meio ambiente está profundamente ligado com os – e é configurado pelos – seres humanos (os termos “direito natural” e “direito da natureza” não aparecem no texto).
Em segundo lugar, Francisco não é um papa contrário à modernidade, mas também não é um progressista. Em vez disso, ele é um progressista crítico. A tecnologia pode nos ajudar a arrumar a bagunça que fizemos, mas a tecnologia por si só não é o suficiente. É necessária uma conversão “pessoal e comunitária”, uma mudança de coração.
Em terceiro lugar, assim como seus antecessores, Francisco acredita que o bem comum é servido tanto pelos indivíduos quanto pelos governos. Mas ele não é um católico do “governo pequeno” [Estado mínimo], ao contrário dos candidatos presidenciais republicanos católicos, que pediram ao papa que “deixe a ciência para os cientistas”. O papa rejeita a noção de prosperidade como um projeto nacional. Isso também não vai soar muito bem para os americanos. Um certo nível de prosperidade, um nível que implica a desigualdade de renda, é simplesmente incompatível com a justiça econômica.
Em quarto lugar, Francisco repete o ensino católico tradicional sobre as “questões de vida”, relacionando-as com o imperativo de cuidar de toda a criação. Mas os americanos que pensam essas questões de forma isolada, à parte da economia e do meio ambiente, vão se decepcionar.
Francisco convida-nos a termos uma visão mais global. Resta saber, todavia, se aceitará este convite aquela metade dos americanos que negam que as mudanças climáticas são um problema urgente.
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Uma revolução cultural. A encíclica ambiental do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU