07 Mai 2015
Há um sentimento de comum humanidade que impulsiona as pessoas a serem de ajuda umas para as outras; o cristianismo nada mais faz do que trazer essa disposição à tona e a reitera diante do seu esquecimento. Reconhecermo-nos pecadores nada mais é do que nos tornarmos conscientes da nossa incapacidade de amar.
A opinião é do filósofo italiano Salvatore Natoli, professor da Università degli Studi di Milano Bicocca. O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 05-05-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O capítulo 10 dos Atos dos Apóstolos narra o encontro entre Pedro e o centurião Cornélio. O que o relato põe em cena é a conhecida controvérsia sobre se os pagãos podiam ser admitidos nas comunidades cristãs – em sentido lato na Igreja – sem que fossem submetidos às prescrições judaicas, ou seja, a observância dos preceitos era a pré-condição para poder acolhê-los. A controvérsia é antiga – já presente na Carta de Paulo aos Gálatas – e precede a redação dos próprios Atos. A natureza da controvérsia indica as seguintes coisas:
1) que os primeiros cristãos – especialmente a comunidade de Jerusalém – certamente eram seguidores de Cristo, mas também absolutamente judeus. Se não fosse assim, eles não teriam minimamente se posto o problema sobre estender ou não aos pagãos os preceitos do judaísmo.
2) que os primeiros cristãos, por se considerarem judeus, estavam pouco a pouco saindo do judaísmo. Jesus, como se lê em outro lugar, tinha vindo para reunir as ovelhas perdidas de Israel, mas o seu anúncio de salvação era para todos e, em particular, um alegre anúncio para os pobres.
3) que as primeiras comunidades cristãs, embora pensando sobre si mesmas ainda em termos de povo judeu, cada vez mais tendem a se reconhecer mais simplesmente como povo de Deus. E Deus mesmo, embora continuando a ser o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, é acima de tudo o "Deus de todos". Um universalismo que já estava presente inicialmente na tradição profética que via todos os povos se reunirem em Jerusalém;
4) que o judaísmo, historicamente, sempre preservado e reiterou a própria identidade, mas, em geral, não praticou o proselitismo. Isso não significa que não seja possível se converter ao judaísmo, mas, no cristianismo, aconteceu exatamente o contrário; como evangelium, "boa notícia", ele se formulou desde as origens como uma mensagem universal de salvação e, por isso, fez-se imediatamente pregação ad extra: vão e preguem, "vocês serão as minhas testemunhas em Jerusalém, na Judeia e Samaria e até aos confins da terra" (Atos 1, 8).
São essas as coordenadas dentro das quais se inscreve a história do centurião Cornélio. O relato começa a partir de duas visões cujo significado é tão simples quanto decisivo: a iniciativa do encontro não parte nem de Cornélio nem de Pedro, mas é uma iniciativa de Deus.
Por quê? Porque Deus é panton Kurios, é o "Senhor de todos" e "não faz diferença entre as pessoas, pelo contrário, Ele aceita quem o teme e pratica a justiça, seja qual for o povo a que pertença" (Atos 10, 34.35). Cornélio, de fato, é descrito já no início como um "homem piedoso e, junto com todos os da sua família, pertencia ao grupo dos tementes a Deus; dava muitas esmolas ao povo e orava sempre a Deus" (Atos 10, 1). Esse versículo é muito mais rico em significado do que possa parecer à primeira vista.
Enquanto isso, Cornélio ora a Deus: o que significa dizer que ele é, sim, um gentio, mas não um ateu. E, além disso, a qual Deus ele ora? O de Israel, porque se aclimatou ao contexto e simpatiza com o judaísmo? Ou ora a um Deus seu, que deve, a seu modo, ser único, porque, caso contrário, seria um idólatra e, portanto, tudo menos piedoso? Ou o texto pretende aludir a uma espécie de religião natural, a uma pietas, em um sentido geral de devoção e respeito que encontra a sua plena manifestação nas "muitas esmolas que ele dava ao povo"? No entanto, essa era a conduta do justo: a indicada nos preceitos e amplamente apreciada em toda a tradição profética.
Mas o texto, com essas breves palavras, provavelmente diz mais: indica, no vínculo entre os homens e no recíproco encarregar-se um do outro, a religio, ou seja, aquele religare que precede as religiões positivas e as fundamenta. Eu poderia definir essa leitura, em sentido lato, como laica, mas não acho que seja uma apropriação indevida; até mesmo o crente pode, de fato, bem entrever na práxis de Cornélio aquela que os teólogos chamavam de fides implicita, ou seja, um modo de se comportar que, de acordo com os próprios Atos, não é diferente do de Cristo, que "passou fazendo o bem e curando todos" (10, 38). É cristão quem pratica justiça e misericórdia – ao menos deveria –, mas quem não é cristão faz ou pode fazer o mesmo.
Há, portanto, um sentimento de comum humanidade que impulsiona os homens a serem de ajuda uns para os outros; o cristianismo nada mais faz do que trazer essa disposição à tona e a reitera diante do seu esquecimento. Reconhecermo-nos pecadores nada mais é do que nos tornarmos conscientes da nossa incapacidade de amar.
Existe, então, um terreno comum que, independentemente das diversas fés, pode permitir que os homens vivam uns pelos outros em paz. A esse resultado, pode-se chegar por diferentes caminhos, e cada um pode encontrar o seu próprio, sem nunca pretender, porém, que é o único e verdadeiro.
De fato, diz Pedro: "Será que podemos negar a água do batismo a estas pessoas que receberam o Espírito Santo, da mesma forma que nós recebemos?" (Atos 10, 47). Note-se: eles receberam o Espírito não de nós, mas "da mesma forma que nós"...
E, então, a partir do momento em que o Espírito sopra onde quer, uma autêntica abertura aos outros significa pôr-se nas condições de discernir onde, quando, em quem o Espírito age. Reconhecê-Lo e reconhecer-se. Essa é a via régia para gerar comunidade na liberdade.
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A salvação é para todos: quando o apóstolo aceitou uma religião ''laica''. Artigo de Salvatore Natoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU