Por: Jonas | 14 Abril 2015
María Galindo é uma dessas personagens incômodas, que acaba com tudo. Após 23 anos de militância no coletivo boliviano "Mulheres Criando", conseguiu se consolidar como referência do movimento feminista e ser a pedra no sapato de ONGs, governos e de qualquer um que tenha procurado tirar proveito com “a voz” da mulheres.
Fonte: http://goo.gl/P9ZQBH |
Com um feminismo construído a partir do fazer cotidiano, enfrenta o que denomina a “falida revolução feminista” e o papel que as instituições e organismos internacionais desempenham como tradutores dos movimentos de luta, encarregados de escrever, em seu nome, os roteiros oficiais, impondo categorias e despolitizando a linguagem.
“Sou consciente de que estão nos roubando até a palavra feminismo. Um dos atos do poder é devorar tudo, ser o todo e que nada tenha sentido por fora do sentido que o poder atribui às coisas, daí a necessidade de se apropriar da palavra, do território feminista, a necessidade de cooptá-lo, devorá-lo e despojá-lo de seu sentido subversivo e inquietante”.
A entrevista é de A. Flores e J. de la Jara, publicada pelo jornal espanhol Diagonal, 12-04-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
“Mulheres Criando” nasce em 1992. Como tem sido estes anos?
Foram de um acúmulo de conhecimento político impossível de resumir. Muitas vezes, fomos reelaborando nossas ideias, e todo este acúmulo de trabalho político, a partir de uma perspectiva feminista, proporcionou para “Mulheres Criando” uma originalidade muito especial. Começamos em muito poucas mulheres e agora somos mais, ainda que nossa vocação nunca tenha sido de massas.
Houve um momento em que “Mulheres Criando” era um sonho. Nosso “índias, putas e lésbicas; juntas, revoltadas e irmanadas” parecia algo impossível de construir, um enunciado poético que nunca iria se concretizar. Porém, hoje, somos uma organização que mantém a vitalidade com um alto grau de complexidade social. Construímos uma organização política que teve um papel histórico em nosso país. De um grupo de feministas passamos a ser um fenômeno cultural e uma referência de rebeldia para as bolivianas.
Em seu livro, você reivindica a autoria da tese da despatriarcalização para evitar os usos demagógicos que estavam ocorrendo. O que esta teoria contribui com a luta feminista?
A despatriarcalização supõe um reposicionamento dos feminismos em função de uma visão utópica e não de uma visão de direitos que limita o empoderamento das mulheres à participação em estruturas enganosas, que fazem parte da visão capitalista colonial. Conceitos como discriminação, igualdade ou empoderamento são enganosos e abriram a porta à domesticação do feminismo. Uma coisa é contestar, subverter e questionar o sistema e outra muito diferente é reivindicar a inclusão no mesmo.
Tendo em conta as diferenças Norte-Sul, você acredita que a teoria da despatriarcalização é exportável ao mundo ocidental?
O neoliberalismo foi muito hábil em utilizar todas as expectativas sociais e individuais das mulheres para instrumentalizá-las em prol de seus objetivos, tanto as do Norte como as do Sul. Este livro desmonta muito bem essa trama para o Sul do mundo, mas também permite utilizar muitas dessas categorias para desmontar a manipulação das expectativas de várias gerações de mulheres no mundo ocidental. O que o sistema neoliberal está vendendo às mulheres europeias como conquistas para elas é falso, pois está assentado sobre a servidão das mulheres do Sul, sobre as exiladas do neoliberalismo, que operam como chantagem.
A partir de “Mulheres Criando”, você reivindica uma política feminista baseada na proximidade, no cotidiano e no prazer. Como tudo isto se materializa em suas práticas?
Uma de nossas pegadas é a política simbólica, a construção do ideológico, mas, sobretudo, não centramos no que chamamos “política concreta”, como a que usamos nos casos de violência machista. Propomos ações concretas para cada mulher e, em seguida, ela decide: o escândalo público, a ação ilegal ou a via jurídico-policial. Em relação ao homem, quando se nega a ser parte da solução, cercamos-lhe através de seu trabalho, lugar de residência, amigos. Em nossa rádio, divulgamos listas de pais irresponsáveis e de homens violentos. Estas práticas e metodologias do engenho, da espontaneidade e do acompanhamento fizeram com que hoje o nosso serviço contra a violência machista seja o mais prestigiado da cidade.
Apesar de o Estado plurinacional ter colocado em marcha diferentes políticas de gênero, você não possui uma opinião muito positiva delas.
Nós, feministas, concebemos a ideia de que a violência machista é um crime público, não privado, um ato de poder e de dominação política. Frente a isso, nós geramos todas as categorias para interpretar essa luta. Porém, o Estado se apropriou delas, por meio de suas instituições, limitando o discurso e acabando com o interessante do processo, que era o de romper com o assistencialismo. Por isso, a relação da instituição com a realidade é nefasta: as políticas de gênero cooptam o discurso para justificar a própria instituição e domesticar a luta feminista.
Como parte dos movimentos sociais bolivianos, você considera que eles foram afetados pela chegada de Evo Morales ao poder?
Foi um momento de muita frustração. Evo soube aproveitar um espaço vazio que se deu na sociedade, e compreendemos tal fato. No entanto, isso não significa que não possamos questionar o que com esse poder fez. A sociedade boliviana conseguiu em 2003, graças a uma revolta popular sem vanguardas, entender que o modelo neoliberal estava esgotado e, no entanto, Evo se apropriou desse discurso para lhe dar continuidade de uma forma disfarçada. Outra coisa que contestamos em Evo é a relação que estabelece entre a cúpula governamental e os movimentos sociais, que começa a ser uma relação de clientelismo, de aparelhamento com um pequeno grupo de dirigentes. E aos movimentos que de alguma maneira não confluem, tem procurado dividir e anular, como ocorreu no caso dos indígenas das terras baixas, com o conflito do Tipnis.
Então, como fazer oposição a governo de Evo Morales, reeleito com mais de 60% de apoio?
Nós não fazemos oposição, tentamos gerar nossas próprias alternativas e provocar um cenário social que não seja exclusivamente de reação. Governo e Estado não são tudo, há uma sociedade que vai além. E nós interpelamos e fazemos política com essa sociedade, procurando conceber nossos próprios cenários políticos.
Nota
O feminismo de classe média e ongueiro
Em seu último livro, “A despatriarcar”, a escritora boliviana investe contra o Governo de Evo Morales, contra o feminismo de classe média e ongueiro e contra as próprias mulheres que se vangloriam dele, que são classificadas por ela como uma “tecnocracia de gênero” que, longe de construir movimentos sociais efetivos, tem servido para desvirtuar horizontes de luta e legitimar o processo neoliberal na América Latina.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Estão nos roubando até a palavra feminismo”. Entrevista com a feminista María Galindo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU