12 Janeiro 2015
Não agrada um papa que apresenta a sua Igreja aos outros continentes, às outras religiões, às outras Igrejas, aos povos emergentes e até aos extremos confins da terra como uma Igreja não europeia, não ocidental, não proselitista e não dominadora "sobre reis e reinos" por força da sua autoridade divina. Porque os homens médios e medíocres estavam acostumados a uma Igreja diferente.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano pelo Partido Comunista Italiano. O artigo foi publicado no seu blog pessoal, 09-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As hostilidades contra o papa começaram oficialmente na véspera de Natal, quando o Corriere della Sera publicou na primeira página um artigo de Vittorio Messori intitulado "As dúvidas sobre a reviravolta do Papa Francisco", em que se colocava em causa um suposto "católico médio"que estaria perplexo com a "imprevisibilidade" das escolhas do pontífice.
O fato de que a crítica não era dirigida a iniciativas específicas de Francisco, mas à própria autoridade da sua liderança, e que se seguia imediatamente a um severo discurso dirigido pelo papa à cúpula vaticana por ocasião dos votos de Natal gerou a ideia, aparentemente óbvia, de que se tratava de um ataque contra o papa por parte da Cúria. Mas é realmente assim?
A advertência do papa havia sido, com efeito, pesada. Tratava-se de 15 reconhecimentos de muitas doenças curiais que o Papa Francisco havia diagnosticado antes do Natal. No entanto, elas parecem matéria mais de um confronto interno ao establishment eclesiástico do que de um debate público nos jornais da república [italiana].
As doenças indicadas pelo papa aos cardeais e aos outros dignitários eram estas: a doença narcisista, derivante de uma patologia do poder, de se transformar em chefes e de se sentir superior a todos; o ativismo que ignora a contemplação e o repouso; a doença do coração de pedra e da cabeça dura, que transforma homens de Deus em "máquinas de práticas"; o excessivo planejamento que pretende trancar e pilotar a liberdade do Espírito Santo; a não cooperação e não comunhão que gera "uma orquestra que produz ruído"; o alzheimer espiritual, isto é, o declínio progressivo das faculdades espirituais "daqueles que perderam a memória do seu encontro com o Senhor"; a rivalidade e a vanglória; a "esquizofrenia existencial" de quem vive uma segunda vida escondida e muitas vezes dissoluta; a doença das fofocas e da maledicência, que muitas vezes se torna "homicida a sangue frio" da fama dos próprios colegas e coirmãos; a adulação para obter a benevolência dos superiores; a indiferença para com os outros para pensar só em si mesmos; a severidade teatral e o pessimismo estéril com o rosto fúnebre das pessoas rudes e cruéis; a acumulação de bens materiais, sem se importar com o fato de que "o sudário não tem bolsos", com aquela vontade de trazer consigo todos os pertences, doença de que "as nossas mudanças são um sinal"; o câncer dos círculos fechados e dos lobbies em luta entre si, quando está escrito que "todo reino dividido contra si mesmo será assolado" (Lc 11, 17); e por fim a doença do lucro mundano, dos exibicionismos, da busca do poder, para a qual se é "capaz de caluniar, de difamar e de desacreditar os outros, até mesmo nos jornais e nas revistas. Uma doença que leva as pessoas a justificarem o uso de qualquer meio para alcançar o objetivo, muitas vezes em nome da justiça e da transparência".
Não é claro que foi a Cúria
A Cúria, naturalmente, não gostou, e pode ser que algum "fogo amigo" (como o papa o tinha chamado no seu discurso) pode ter vindo também de lá.
Além disso, já houvera, antes do Sínodo e à luz do sol, uma espécie de advertência ao papa por parte de cinco cardeais liderados pelo próprio prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Müller (os outros eram Burke, Brandmüller, Caffara e De Paolis) que, em um livro de compilação sobre os divorciados em segunda união, tinham advertido contra "permanecer na verdade de Cristo". Nem se podia esquecer que, nos tempos do Concílio, alguns da Cúria tinham empurrado o Corriere della Sera a desencadear Indro Montanelli contra o Papa João XXIII (que, depois, se arrependeu disso, dizendo ter sido enganado).
No entanto, o ataque liderado agora contra o Papa Bergoglio era grave demais e muito abertamente dirigido a deslegitimá-lo para que se pudesse considerar que era uma iniciativa da Cúria, que, desse modo, além disso, deslegitimaria a si mesma, junto com toda a Igreja. Nem se pode ignorar que a Cúria Romana, como disse o papa, é um pedaço de Igreja, habitada por muitos servidores fiéis. A operação parece exceder, por isso, um rancor curial.
Por outro lado, também não se pode atribuir a iniciativa ao próprio Messori, que, ao contrário, disse que não queria escrever, mas que foi solicitado a fazê-lo pelo jornal. Por isso, neste ponto, são irrelevantes as expressões por ele usadas e a solidez das suas argumentações, nem é de particular interesse a sucessiva polêmica entre o "teólogo da libertação" Leonardo Boff, cuja intervenção foi publicada pelo Corriere com atraso e fadiga no dia 4 de janeiro, e o próprio Messori que lhe respondeu no dia seguinte.
As contestações ao Papa Francisco, além disso, não eram particularmente profundas; enquanto isso, havia um singular desprezo para com o "católico médio", que, segundo o articulista, estaria "habituado a abrir mão de pensar por conta própria, quanto a fé e costumes", para "seguir" o papa, e que estaria agora perturbado pela "imprevisibilidade" do Papa Francisco.
Depois, havia as alusões maliciosas ao papa que telefona para Pannella, homem do divórcio, do aborto e da eutanásia, que diz a Scalfari que "Deus não é católico", e que vai se encontrar com o seu amigo pentecostal, enquanto as Igrejas pentecostais esvaziam a Igreja Católica na América Latina.
Mas os "católicos médios" não gostaram e reagiram com uma coleta de assinaturas sob um abaixo-assinado de "apoio ao Papa Francisco", em que se reivindica a sua fidelidade ao Evangelho, que prevê papas exatamente assim.
A verdadeira questão
Portanto, removidos os desvios, a verdadeira questão é por que a nave-mãe da burguesia italiana abriu o conflito com o papa e para defender o quê; questão ainda mais intrigante porque se trata de um papa muito amado pelos próprios leitores do Corriere (um dos quais escreveu no site do jornal um "obrigado pelo artigo", porque ele tinha "esclarecido que não é um católico médio"); aliás, também não é plausível que o órgão máximo de informações da cultura liberal realmente estava interessado nas virtudes que faltaram à Cúria e às quais o papa a exortara a retornar.
Portanto, resta ver qual é o verdadeiro significado do ataque ao papa do jornal de Milão, também para entender em qual desafio está engajada hoje a Igreja e o que devem fazer o povo dos discípulos, o "católicos médio".
Não há necessidade de conspiração para entender quais são as coisas gradualmente propostas pelo ministério petrino de Francisco, em relação ao qual o mundo interpretado pelo jornal lombardo – ou seja, a sua cultura global, as classes, os interesses, os poderes de referência – sente a necessidade de tomar partido, de tomar posição e talvez de levantar um muro – ou de censura ou de crítica –, para que essas coisas não se tornem patrimônio de toda a Igreja ou, pior, da opinião pública no seu conjunto.
Certamente, não agradou o fato de que o Papa Francisco tomou a peito questão do trabalho, começando pelo seu discurso aos operários de Cagliari até o seu encontro com os movimentos populares no Vaticano, fazendo do trabalho a marca da dignidade humana e reivindicando para ele estabilidade e segurança, e isso justamente quando a espoliação do trabalho de todos os seus direitos é o máximo compromisso da atual liderança política e econômica.
O que realmente se repreende no papa
Não agradou que, desde o início, o papa colocou sob acusação o atual sistema econômico-social, qualificando-o como um sistema de exclusão que vai até mesmo além da exploração e da opressão já denunciadas pelo pensamento revolucionário do século XIX (mas também da Quadragesimo anno de Pio XI); não agradou o diagnóstico pontifício que, na cultura e na práxis da atual economia global, identifica um sistema homicida e condena uma "ditadura da economia sem rosto nem objetivos realmente humanos".
Não agradou que, na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2015, denunciou-se que a escravidão, embora repudiada pelo direito, não acabou, mas hoje, ao contrário, se reproduz e se multiplica em formas inéditas, do trabalho escravo à escravidão dos migrantes, ao tráfico de órgãos, ao tráfico de pessoas, à escravidão sexual e não só em margens bárbaras, mas também em países muito civilizados.
Não agradou que o papa não se limitou a discursos deprecatórios, mas pôs em marcha as estruturas de caridade (e, na visão cristã, como foi lembrado por Paulo VI, a política também é caridade) e exortou os pobres, os rejeitados, os excluídos, os subordinados a lutarem pela sua libertação: Sigan con su lucha, continuem lutando, disse o Papa Francisco aos representantes dos movimentos populares de todo o mundo, recebidos por ele mesmo na sala do "velho Sínodo" em outubro passado.
Não agradou que o papa levou a Itália a salvar os náufragos em fuga das suas terras com a operação Mare Nostrum e defendeu o direito à vida dos migrantes com tanta força que a Marinha [italiana] continua a salvá-los mesmo depois que a missão Mare Nostrum foi encerrada pelo governo [italiano].
Não agrada que, com o seu simples convite a não discriminar, quanto ao direito à vida, entre cidadãos e refugiados, ele força os governos a não fingir que não há nada e a se defrontar com a imponente nova realidade de mobilidade mundial, que já diz respeito a mais de 50 milhões de pessoas em fuga no mundo como refugiados, deslocados, erradicados das suas casas e das suas terras, às quais será preciso, mais cedo ou mais tarde, restituir os direitos.
Não agrada que o papa tente parar as guerras, quer se trate de guerras contra a Síria ou contra a Rússia ou contra o Islã, não agrada que ele deplore e queira deter o comércio de armas, não agrada que ele ele seja contra os bombardeios com os drones, que ele não se una à causa de Israel contra os palestinos, que ele ponha sob acusação a Europa como "uma avó estéril", esquecida dos seus valores, e que apresente a sua Igreja aos outros continentes, às outras religiões, às outras Igrejas, aos povos emergentes e até aos extremos confins da terra como uma Igreja não europeia, não ocidental, não proselitista e não dominadora "sobre reis e reinos" por força da sua autoridade divina. Porque, e isso é verdade, os homens médios e medíocres estavam acostumados a uma Igreja diferente.
Pode-se entender que o mundo começa a se alarmar. Porque, se os fiéis dessa Igreja já estivessem nas fronteiras que o papa está indicando, a revolução já estaria acontecendo. E resta, então, o apelo para que todos os homens e as mulheres que leem o mesmo Evangelho saiam do seu torpor e se ponham a caminho. Porque, então, talvez, a revolução será feita.
No Ângelus da Epifania, que foi uma verdadeira joia, Francisco repetiu três vezes que, para caminhar rumo à meta, é preciso estar atento à estrela, ou seja, saber ver os sinais, é preciso ser incansável e é preciso ter coragem. Um papa atento e incansável agrada a todos, faz parte da ideia de que o mundo se acostumou a ter papas modernos. Mas um Papa Coragem, muitos gostariam de parar.
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Ataque ao Papa Coragem. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU