29 Setembro 2007
“São Francisco de Assis fundou um novo humanismo, uma síntese feliz entre a ecologia exterior (cuidado para com todos os seres) e a ecologia interior (ternura, amor, compaixão e veneração). Ele que é novo, nós somos velhos, mesmo tendo vivido mais de 800 anos antes de nós”, afirma o teólogo Leonardo Boff, em entrevista especial, por e-mail, à IHU On-Line. Nesta semana, dia 4 de outubro, celebra-se a festa de Francisco de Assis.
Leonardo Boff, autor de uma vasta bibliografia teológica, é professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística, entre os quais citamos São Francisco de Assis. Ternura e Vigor (8. ed. Petrópolis: Vozes, 2000); Ética da vida (Rio de Janeiro: Sextante, 2006); e Virtudes para outro mundo possível II: convivência, respeito e tolerância (Petrópolis: Vozes, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como São Francisco pode ser entendido nos dias atuais? Qual é a sua maior contribuição para a humanidade em crise, depredada pelo domínio da razão e do individualismo?
Leonardo Boff - São Francisco tem muitas facetas. Ele redescobriu a humanidade pobre de Jesus encarnada nos mais pobres dos pobres que eram os hansenianos (leprosos) com quem foi viver. Inventou o presépio. Fundou uma ordem religiosa itinerante, pois os frades iam pelos caminhos evangelizando na língua vernácula do local e não em latim. Foi o primeiro a ganhar licença de celebrar a missa fora, no campo e nas praças, desde que houvesse a pedra d’ara (um pedaço de pedra contendo uma relíquia de santo). Mas, fundamentalmente, ficou memorável por seu amor cósmico. Depois de séculos em que o Cristianismo se encerrara nos conventos e se concentrara nas palavras sagradas, Francisco descobre Deus na natureza. Ela não é mais paganizada, cheia de divindades, nas fontes, nas montanhas e nas árvores. Ela é o grande sacramento de Deus. Até Francisco, o cristianismo vivia a dimensão vertical: todos são filhos e filhas de Deus. Com ele, começou a se viver a dimensão horizontal: se todos são filhos e filhas, então todos são irmãos e irmãs. Não apenas os humanos, mas cada ser da criação. Com enternecimento chamava com o doce nome de irmão ou irmã a estrela mais distante, o passarinho na rama, o sol, a lua e a lesma do caminho. Esta atitude é, hoje, considerada da maior relevância, pois encerra uma dimensão perdida em nossa cultura que se coloca por em cima da natureza, dominando-a e esquece que todos estamos juntos, ao pé um do outro e formamos a grande comunidade de vida. São Francisco fundou um novo humanismo, uma síntese feliz entre a ecologia exterior (cuidado para com todos os seres) e a ecologia interior (ternura, amor, compaixão e veneração). Enquanto nós somos velhos, ele é novo, mesmo tendo vivido mais de 800 anos antes de nós.
IHU On-Line - A Oração da Paz é atribuída a São Francisco, mesmo tendo sido provado que ela não é de autoria do santo. Mesmo assim, o que ela tem a dizer a nossa sociedade atual?
Leonardo Boff - A Oração da Paz é urdida com pedaços de frases dos escritos de São Francisco e totalmente dentro de seu espírito. Ela encerra o segredo da paz possível. Há que ser realista, pois a condição humana, pessoal e social, é feita pelo simbólico e pelo diabólico. Em nosso mundo, há luz e há trevas, há amor e há ódio, há desunião e união. Esta situação é permanente e é sempre dada. Por isso, de certa forma é insuperável. Nem por isso a paz é impossível. Ela pode ser construída. Qual é a estratégia de São Francisco? É enfatizar a dimensão de luz mais que a dimensão de trevas, dar hegemonia ao amor sobre o ódio, faz prevalecer a união à desavença e confiar na vitória da vida sobre a morte. Ao fazer isso, não recalca a dimensão sombria, mas impede que ela ganhe corpo e domine nossa vida. O efeito final é a paz possível. Esta se torna mais segura se for buscada à luz da paz que só Deus pode dar. Cada um pode ser instrumento desta paz divina que fortalece nossas buscas pela paz humana.
IHU On-Line - Quais são as características mais marcantes de Francisco e Clara? Em um de seus livros sobre o santo, o senhor destaca seu vigor e ternura. Como isso aparece na personalidade de São Francisco e como essa personalidade era encarada na Igreja de sua época?
Leonardo Boff - São Francisco representa um dos arquétipos da plena realização humana. Esta é construída a partir de duas forças que constroem nossa identidade que é a dimensão de anima e a dimensão de animus. Com estes termos introduzidos por C.G. Jung, queremos expressar que cada pessoa, homem ou mulher, possui a dimensão de racionalidade, objetividade, de projeto, de determinação na superação de obstáculos, de vontade de ser e de poder (animus). Ao mesmo tempo, tanto no homem quanto na mulher há a dimensão do afeto, da subjetividade, do cuidado, da intuição e da espiritualidade (anima). Eu traduzo estas dimensões como a convivência e integração do vigor com a ternura. Francisco viveu esta integração em sua relação de grande amor com Clara de Assis, exemplo raro na história do cristianismo de como dois seres puros e evangélicos podiam se amar de verdade, sem perder o sentido maior de sua consagração a Deus. Se olharmos a história humana, percebemos que emergem figuras que, de forma exemplar, viveram a ternura e o vigor como Jesus, como Francisco de Assis, Gandhi, Dom Hélder Câmara, João XXIII e, de certa forma, também o Papa João Paulo II. Pelo fato de Francisco realizar estas dimensões de forma seminal, tornou-se uma pessoa livre, podia conviver dentro de uma Igreja de poder sob o Papa Inocêncio III, o Papa mais poderoso de toda a história da Igreja, e simultaneamente andar pelos caminhos de braços dados com um leproso, anunciando a alegria de Deus que é Pai e amoroso e que fazia de cada coisa o sacramento de sua aparição. Esta síntese, assim tão terna e fraterna, nunca mais foi vivida no cristianismo. Mas ele permanece como referência de um cristianismo despojado, alegre, reconciliado com as sombras e confraternizado com todos os seres.
IHU On-Line - Como entender a atualidade de São Francisco? Por que sua eterna busca pela bondade cativa tantos homens e mulheres?
Leonardo Boff - Em São Francisco, tudo é simples e direto. Não há nenhuma sofisticação nem segundas intenções. Nele, aparece o ser humano em sua inocência original, perdida na história por mil interesses individualistas e pela fome de poder, pela busca de cargos e status social e de acumulação de riqueza. Ele mostrou que ser pobre voluntariamente é muito mais que não ter nada, mas a continuada vontade de dar, de mais uma vez dar e de se despojar de todo interesse para poder comungar diretamente com as coisas e as pessoas, sem mediações que se interponham a essa vontade de estar junto e de sentir o coração do outro. No fundo, o ser humano sonha com um mundo no qual reine tal inocência, onde todos possam se sentir filhos e filhas da alegria e não seres condenados a viver no vale de lágrimas.
IHU On-Line - O Papa Bento XVI destaca a importância de São Francisco como homem da Igreja. Como o senhor vê o santo e qual sua opinião sobre a definição do Papa?
Leonardo Boff - O Papa é um saudosista e possui uma concepção de Igreja da tradição medieval, superada pela própria Igreja posterior. Ele vê a Igreja como um fim em si mesma e como condição necessária para a salvação da humanidade. Esquece que o Salvador não é a Igreja, mas Jesus que veio para todos, que ilumina cada pessoa que vem a este mundo e que, no fundo, é o Cristo cósmico da teologia de São Paulo, quer dizer, aquele que redime não apenas a humanidade, mas toda a criação. Se há uma coisa que não define São Francisco é exatamente entendê-lo como homem de Igreja. Ele foi um homem do evangelho vivido “sine glossa”, quer dizer, sem as interpretações dos teólogos que praticamente sempre o emasculam ou o mediocrizam. Por isso, sua regra começa: “A regra e a vida dos frades menores é esta: seguir o santo evangelho de Nosso Senhor Jesus em obediência, pobreza e castidade”. Sabe-se, pela pesquisa histórica, que Roma condicionou a aprovação da regra com o acréscimo “sob a obediência ao Papa Honório e seus sucessores”. Mas Francisco queria que o Espírito Santo fosse o Geral da Ordem e não alguém nomeado pelos frades e aprovado pelos Papas. O que o Papa Ratzinger afirma vai contra todo o espírito de São Francisco. E mais: se enquadra dentro do eclesiocentrismo de sua teologia que no fundo é uma espécie de fundamentalismo, uma patologia religiosa.
IHU On-Line - Em que sentido São Francisco transformava as sombras de sua vida em luz? O senhor teria exemplos concretos da vida do santo que podem elucidar esse ponto?
Leonardo Boff - São Francisco assumia tudo como vindo das mãos de Deus, pois se sentia na palma da mão de Deus. Chamava a tudo de irmão e de irmã. Não apenas as coisas ridentes, mas também as sombrias e dolorosas. Chama as doenças de irmãs doenças. A própria morte é chamada de irmã morte. O curioso nele é que fazia das próprias fragilidades humanas e dos pecados caminhos para chegar a Deus pela via da humildade, da compaixão e da total entrega à misericórdia divina. Sentia-se “miserável vermezinho, pútrido, fétido, mesquinho, miserável e vil”. Seguramente era fétido, pois andava com o mesmo burel todo esburacado e sujo pelos poierentos caminhos do vale de Rieti e da Umbria. Mas assumia a dimensão de sombras de forma jovial, pois nada, nem o pecado nem a morte, o afastava da íntima comunhão com Deus. Esse tipo de piedade é importante para um cristianismo libertador, pois ajuda os fiéis a superarem o moralismo e o farisaísmo. Assim como somos, pecadores e maus, seremos acolhidos e perdoados por Deus. Pois é essa a novidade do evangelho. Se fossemos tão bons e santos, não precisaríamos do Redentor, nem de seu sangue nem de sua morte. Mas Deus é o Deus da ovelha tresmalhada, do filho pródigo e da moeda perdida. Confiar que apesar destas sombras não saímos da esfera de Deus é libertar a vida para a jovialidade dos filhos e filhas de Deus, é ter descoberto o evangelho como expressão do amor incondicional e do rosto misericordioso de Deus. São Francisco viveu este tipo de experiência religiosa de forma intuitiva, sem reflexão teológica, como algo evidente para quem se orienta pela mensagem do Jesus histórico.