Crise reincidente na saúde decorre da insuficiência de medidas para reformar o sistema público. Entrevista especial com Alcides Silva de Miranda

Piora nos indicadores de morbidade e mortalidade e progressivo aumento do número de procedimentos hospitalares e ambulatoriais no SUS sinalizam dissonância no arranjo organizativo predominantemente terceirizado, afirma doutor em saúde coletiva e professor da UFRGS

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 03 Junho 2025

A lógica mercantil que está por trás dos processos de terceirização no Brasil também tem afetado o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Alcides Silva de Miranda, a terceirização não tem sido uma forma complementar ao SUS, conforme determina a Constituição da República, mas uma prática recorrente que tem gerado inúmeros impactos no sistema como um todo.

“O que ora ocorre é uma inversão, pois os serviços públicos agenciados para terceiros são a maioria. Além dos serviços, governos estão terceirizando prerrogativas de gestão pública e de autoridade sanitária, que deveriam ser exclusivas do poder público”, denuncia. A consequência dessa inversão, menciona, é o aprofundamento do “empresariamento gerencial que visa prioritariamente à produção de procedimentos biomédicos (estabelecidos contratualmente), em detrimento de outras medidas imprescindíveis para a Atenção Integral à Saúde (prevenção, promoção, monitoramento, reabilitação etc.). O resultado tem sido a piora do estado de saúde da população em eventos e decorrências evitáveis”.

Recentemente, o Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS/POA), órgão fiscalizador da gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), apresentou dados sobre os investimentos das capitais brasileiras na área da saúde entre 2021 e 2024. Porto Alegre, capital gaúcha, figura entre as que menos investem em saúde pública, apesar de estar entre as capitais que mais recebe financiamento. As informações são baseadas nos dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) coletados por Miranda.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sugere uma “remodelagem do arranjo de regionalização” da saúde no Rio Grande do Sul e defende a necessidade de aporte de recursos financeiros estaduais para capacitar centros regionais de assistência à saúde, além de ampliação e qualificação do serviço de Atenção Primária à saúde no estado. “Seriam iniciativas com impactos de médio prazo, contudo, com a redução progressiva da sobrecarga de demandas que atualmente saturam a capital”, assegura.

Alcides de Miranda (Foto: Arquivo Pessoal)

Alcides Silva de Miranda é graduado em Medicina pela Faculdade Estadual de Medicina do Pará (FEMP/PA), com especialização em Medicina de Família e Comunidade pelo Programa de Residência Médica do Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (SSC-GHC/RS). É mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA). É professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos cursos de graduação e pós-graduação em Saúde Coletiva.

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a situação da saúde pública em Porto Alegre hoje, segundo sua pesquisa?

Alcides Silva de Miranda – Sob aspecto epidemiológico, nos últimos anos em Porto Alegre, denota-se a degradação e a piora de um conjunto de indicadores de morbidade e mortalidade associados com problemas de saúde evitáveis ou eficazmente manejáveis, principalmente a partir da atuação potencialmente efetiva de serviços de Atenção Primária à Saúde. Ao mesmo tempo, constata-se progressivo aumento do número de procedimentos hospitalares e ambulatoriais, realizados no âmbito do SUS. Ou seja, tendência incremental de procedimentos biomédicos no SUS (em sua maior parte, contratados ou agenciados para terceiros) e, ao mesmo tempo, tendência degradante de indicadores epidemiológicos associados com problemas evitáveis ou manejáveis. No caso de Porto Alegre, uma hipótese plausível para explicar tal dissonância tem a ver com o arranjo organizativo predominantemente terceirizado e as decorrentes estratégias institucionais adotadas, com ênfase em produtivismo assistencial e insuficiência de medidas e ações de promoção e proteção da saúde.

IHU – Recentemente, o senhor declarou que a crise da saúde “é uma crise sem fim”. Quais são os fatores que explicam a crise no sistema público de saúde na capital gaúcha?

Alcides Silva de Miranda – A cronicidade e a reincidência dos episódios de “crise na saúde”, pior, a contínua degradação correlata, derivam da insuficiência de medidas para reformar estruturalmente o sistema público de saúde. A Atenção Primária à Saúde no Rio Grande do Sul permanece subfinanciada, com coberturas insuficientes (principalmente de Agentes Comunitários de Saúde) e sem as mínimas condições de suporte logística. O atual arranjo de regionalização (30 Regiões de Saúde no RS) é fictício porque não contempla as reais necessidades sociais e os fluxos de demandas para a assistência especializada, persistindo alta concentração de recursos e demandas para a capital do estado. Além dos fatores referidos, particularmente a região metropolitana de Porto Alegre encontra-se mal organizada, em termos de distribuição de recursos e serviços. Enquanto fatores sistemicamente desestruturantes não forem alterados, persistirá a crônica crise e contínua degradação.

IHU – Segundo sua pesquisa, uma das razões que explicam a crise da saúde na capital é o fato de hospitais de Porto Alegre atenderem, majoritariamente, pacientes de outras cidades gaúchas que carecem de infraestrutura. O que essa situação evidencia sobre o sistema de saúde no RS como um todo? Qual é a sua proposta para mudar este cenário?

Alcides Silva de Miranda – Remodelagem do arranjo de regionalização, com requisitos mínimos para a habilitação de Regiões de Saúde, também com aporte de recursos financeiros estaduais (assim, cumprindo a proporção mínima de 12% de despesas estaduais em saúde estabelecida na Lei 241/2012) para investimentos e custeios que incrementem a resolubilidade nos âmbitos regionais. Investimentos para aumento de cobertura e a qualificação da Atenção Primária e da assistência especializada sob gestão pública e estatal. Seriam iniciativas com impactos de médio prazo, contudo, com a redução progressiva da sobrecarga de demandas que atualmente saturam a capital.

IHU – Do ponto de vista da gestão, como essa proposta pode ser implementada na prática? O que impede a implementação do modelo que o senhor sugere?

Alcides Silva de Miranda – O que impede são os interesses econômicos em jogo. Atualmente a maior parte dos recursos públicos para a assistência especializada fluem para um pequeno número de prestadores privados (contratados ou agenciados por terceirização), que sempre demandam aumentos dos valores da tabela de procedimentos do SUS. Reestruturar a regionalização implicaria diminuir as demandas e, portanto, os recursos financeiros para a capital, isso porque os problemas de saúde poderiam ser mais bem resolvidos nos próprios âmbitos regionais. Dito de outro modo, há muitas queixas sobre as crises na saúde, todavia há sempre quem seja beneficiado, no caso, com a concentração de recursos públicos, que poderiam ser redistribuídos de forma mais eficaz.

IHU – O seu estudo sobre a situação da saúde em Porto Alegre mostrou que esta cidade é a quinta capital que mais gasta com terceirizados e a quarta que menos investe em servidores públicos. Qual é o impacto do serviço terceirizado na saúde? A terceirização é vista como um problema? Por quais razões?

Alcides Silva de Miranda – A Constituição Federal autoriza a terceirização da prestação de serviços (Art. 197 e 199) de forma complementar ao SUS. Mas, o que ora ocorre é uma inversão, pois os serviços públicos agenciados para terceiros são a maioria. Além dos serviços, governos estão terceirizando prerrogativas de gestão pública e de autoridade sanitária, que deveriam ser exclusivas do poder público. Tal tendência implica num empresariamento gerencial que visa prioritariamente à produção de procedimentos biomédicos (estabelecidos contratualmente), em detrimento de outras medidas imprescindíveis para a Atenção Integral à Saúde (prevenção, promoção, monitoramento, reabilitação etc.). O resultado tem sido a piora do estado de saúde da população em eventos e decorrências evitáveis. Além disso, a terceirização precariza e constrange os processos e as relações de trabalho no SUS, ocasionando instabilidade e dificuldades para as atividades multiprofissionais e interdisciplinares porque opera sob lógica mercantil.

IHU – Que modelo de sistema de saúde o RS precisaria? Quais as demandas do estado em termos de saúde pública?

Alcides Silva de Miranda – Modelo SUS. O RS requer uma reforma radical e substancial na perspectiva constitucional do SUS. O RS possui um perfil epidemiológico típico, com problemas recorrentes, por exemplo, suicídios, tuberculose, AIDS e outros problemas que estavam sob controle e agora se agravam. O SUS constitucional preconiza ênfase nas necessidades e prioridades sociais, incluídas as epidemiológicas, distintamente aos mercados de doenças, onde a prioridade é o lucro.

IHU – Segundo os dados do último censo, o número de idosos no Brasil cresceu 57,4% em doze anos. Qual o impacto dessa mudança no SUS, como o envelhecimento da população altera a dinâmica de funcionamento do SUS no país e quais são os desafios diante dessa realidade?

Alcides Silva de Miranda – Ocorre transição do perfil epidemiológico, agora com predominância de problemas crônicos e degenerativas. O que requer prioridade nas estratégias institucionais de apoio ao autocuidado, de cuidado integral e de reabilitação. A Atenção Primária passa a se constituir como estratégia principal para os desafios vindouros.

IHU – O reconhecimento do SUS foi, segundo especialistas da área da saúde, o maior legado da pandemia de covid-19. Quais são os maiores desafios do SUS hoje, cinco anos depois da pandemia?

Alcides Silva de Miranda – Infelizmente, trata-se de legado de vida curta, que vai se apagando da memória coletiva, caso não consolide garantia contínua de cuidado. Certamente, uma política pública só se legítima se obtiver reconhecimento do seu valor de uso. Contudo, ela tende a ser fugaz, necessitando de valores éticos-sociais agregados. Eis um grande desafio para o SUS: garantir valor de uso e valores redistributivos, mesmo sob condições adversas.

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