Fome: uma doença social. Entrevista especial com Elaine de Azevedo

“Os inúmeros subtítulos dos alimentos saudáveis – light, vegano, diet, orgânico, ayurveda, tradicional, caipira, colonial – iludem o comedor ao desqualificar a origem dos alimentos. Isto é, sem dúvida, o elemento que realmente define uma alimentação saudável”, adverte a nutricionista

Foto: Diário do Vale

Por: Arthur Romanzini Lazzarotto e Patricia Fachin | 23 Fevereiro 2023

“A fome é doença social e precisa ser abordada a partir de intervenções econômicas, políticas, ambientais, culturais e sociais. É uma problemática complexa que expressa sobre o corpo humano as desigualdades e as injustiças sociais que um ser humano sofre”, disse Elaine de Azevedo, doutora em Sociologia Política, ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Segundo ela, apesar de as diferentes áreas da ciência, a exemplo da nutrição social, produzirem conhecimentos específicos para acabar com a fome, esse problema social “só vai realmente acabar quando toda a população puder se alimentar com dietas saudáveis, o que significa ter o direito de escolher alimentos de qualidade a partir de uma renda básica digna, de acesso a emprego, terra, moradia e serviços de saúde e educação de qualidade”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Elaine reflete sobre as incoerências do sistema alimentar hegemônico, “cujo objetivo não é produzir soberania nem segurança alimentar”, e sobre suas implicações para o sistema médico farmacêutico, para a destruição da agricultura familiar e para a proliferação da fome nos grandes centros urbanos. “Os pequenos agricultores familiares e as comunidades tradicionais remanescentes do mundo rural foram obrigados a desistir da agricultura ou a migrar para as franjas das grandes cidades para serem explorados, junto com os grupos sociais mais vulneráveis socialmente – negros e, especialmente, mulheres negras – que não foram contemplados com terra, herança ou acesso à educação e à saúde. E no campo, nas florestas e nas cidades passam fome. Ou só comem alimentos de alta densidade energética, envenenados, de baixo custo e qualidade que promovem saciedade, insegurança alimentar e diversas enfermidades. São os mesmos alimentos ultraprocessados que, por incrível que pareça, também seduzem muitos que poderiam comer comida orgânica, de origem familiar, local, variada e fresca. É a tal da comida de verdade”, relata.

Entre os desafios para acabar com a fome no Brasil, ela destaca: “O primeiro é resgatar os princípios e as ações dessa cartilha que o PT já aplicou com eficiência no seu governo anterior e dedicar um bom orçamento para cumprir as metas. O segundo é finalmente ter coragem de fazer a reforma agrária, de descriminalizar quem ocupa terras improdutivas e demarcar definitivamente todos os territórios indígenas e quilombolas. O terceiro é legitimar a agricultura familiar que produz comida, segurança e soberania alimentar como um sistema tão importante quanto o agronegócio que interfere no PIB e na balança comercial”.

Elaine de Azevedo (Foto: Arquivo pessoal)

Elaine de Azevedo é graduada em Nutrição pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, mestre em Agrossistemas, pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutora em Sociologia Política, com a tese intitulada “Riscos e Controvérsias no processo de construção do conceito de Alimento Saudável: o caso da soja”, pela mesma universidade. Atualmente, leciona no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. É criadora do podcast Panela de Impressão.

Confira a entrevista.

IHU – Como a nutrição pode contribuir para o enfrentamento da fome no país? Que conhecimentos oriundos dessa área são indispensáveis para a elaboração de políticas públicas de enfrentamento à fome?

Elaine de Azevedo – A nutrição tem diferentes áreas: a área clínica e hospitalar; a área esportiva; a área de alimentação coletiva e industrial; e a área de nutrição social. Certamente, a nutrição clínica é importante para tratar os efeitos dramáticos da fome no organismo humano e para restabelecer a saúde do paciente que sofre as consequências clínicas da fome. Vemos a importância dessa intervenção clínica agora, no caso do povo Yanomami afetado pelos efeitos do garimpo e da fome extrema.

Mas a área essencial para abordar a fome e prevenir seus efeitos sobre o organismo humano é a chamada nutrição social, que atua a partir dos princípios da saúde coletiva. A nutrição social é uma área essencial e seu maior potencial é estar aberta para dialogar, de forma intersetorial e interdisciplinar, com diferentes campos. Porque a fome é doença social e precisa ser abordada a partir de intervenções econômicas, políticas, ambientais, culturais e sociais. É uma problemática complexa que expressa sobre o corpo humano as desigualdades e as injustiças sociais que um ser humano sofre. São impactos que podem ser plenamente evitados com vontade política, senso coletivo, altruísmo e alteridade.

A nutrição social oferece alguns conhecimentos específicos e essenciais para acabar com a fome. Eles implicam a construção de dietas saudáveis – com alimentos frescos e locais, sem contaminação biológica e química – e culturalmente ajustadas ao território. Mas a fome só vai realmente acabar quando toda a população puder se alimentar com tais dietas, o que significa ter o direito de escolher alimentos de qualidade a partir de uma renda básica digna, de acesso a emprego, terra, moradia e serviços de saúde e educação de qualidade.

IHU – Como forma de contrapor-se ao sistema atual, os alimentos orgânicos e veganos têm se tornado tendência. Como a produção orgânica e sustentável pode contribuir para a segurança alimentar do país?

Elaine de Azevedo – A alimentação orgânica e vegana tem um enorme potencial para contribuir para a soberania e segurança alimentar do país se for produzida em sistemas responsáveis – ou sustentáveis – dos pontos de vista ambiental, social e econômico. Isso significa que esses alimentos, além de serem produzidos sem nenhuma dependência de insumos químicos sintéticos, devem também dignificar todos os reinos da natureza e os pequenos produtores de comida. Leia-se: a agricultura familiar e suas diferentes manifestações no formato de agrofloresteiros, comunidades tradicionais, pescadores artesanais, extrativistas e assentados.

É importante compreender que os alimentos orgânicos e veganos nem sempre são sustentáveis e podem ser completamente inseridos no que você chama aqui de “sistema atual”. Esse sistema é conhecido como convencional, hegemônico, industrial ou moderno.

Para responder melhor a essa pergunta, vou ter que primeiro definir esse sistema.

É um sistema porque tem muitas partes interconectadas cujo objetivo não é produzir soberania nem segurança alimentar. É, na realidade, uma dinâmica de caráter econômico que busca alta produtividade de alimentos de baixa qualidade e alta durabilidade, e que gera concentração de renda para poucos e desequilíbrio ambiental.

O sistema começa em grandes áreas de terras expostas em ecossistemas destruídos que excluem os pequenos agricultores e a possibilidade de uma divisão fundiária mais equitativa. O solo empobrecido é preparado com o uso intenso de fertilizantes a base de NPK, que promovem o cultivo de monoculturas fragilizadas e que, como todo organismo mau nutrido, sofrem e ficam vulneráveis, atraindo os diversos indicadores desse desequilíbrio: as chamadas de “pragas da agricultura”. De forma a combater as “doenças” que um solo pobre produz, na verdade um desequilíbrio artificialmente causado, o sistema utiliza diferentes tipos de agrotóxicos.

Para cultivar e colher nas grandes áreas de monoculturas que interferem na biodiversidade e envenenam não só os cultivos, mas também as águas, os solos e o ar, o sistema precisa de maquinário e emprega poucos humanos. Além disso, faz uso de transporte a base de petróleo, veículos que levam essas culturas a longas distâncias – às vezes bem longe da sua origem. Exportados, seguem junto a nossa paisagem, a fertilidade dos nossos solos, nossa água e soberania. O destino desses grãos é, majoritariamente, virar proteína animal ou agrocombustíveis. Até aqui o sistema pode ser também chamado de agronegócio.

Se trocar as monoculturas de grão por extensas áreas de capim para rebanhos bovinos criados a base de pasto, ração feita de grãos e drogas veterinárias ou por aves e suínos confinados sobrevivendo a base de antibióticos em granjas, temos o sistema de carne industrial. Esse sistema termina nos frigoríferos para oferecer proteína animal para poucos aqui e muitos lá fora.

O sistema continua quando estaciona caminhões de cana, soja, milho e trigo nos pátios da indústria alimentar que se abraça com a indústria química para transformar a monocultura em alimentos que durem muito nas prateleiras, produzam saciedade e adição, custem pouco e iludam os comedores.

 

E essa indústria também utiliza restos de carnes e leite para produzir produtos cárneos e lácteos de baixa qualidade e mais acessível para os menos privilegiados.

 

E assim, mascarados com poucos grãos integrais, açúcares, sal, gorduras hidrogenadas, vitaminas e sabores artificiais, sob as promessas de um corpo perfeito, endossados por estudos científicos financiados pela própria estrutura que os produzem, protegidos por embalagens atraentes e rótulos de “saudáveis”, “funcionais”, “light”, “diet” e “naturais”, os produtos das monoculturas ou do agronegócio – os ultraprocessados – são vendidos nas grandes redes varejistas.

Isso tudo acontece com o apoio da mídia que fomenta a ilusão dos consumidores e a corruptibilidade de governos e parlamentares, insensíveis aos apelos ambientais e de saúde coletiva do povo que os elegeu.

Se os orgânicos e veganos não forem produzidos por pequenos agricultores e seguirem a mesma lógica dos ultraprocessados, como vem acontecendo, eles não são saudáveis – e muito menos sustentáveis. Para ser sustentável e saudável, um alimento deve alcançar dimensões ambientais, sociais, econômicas e culturais.

Não dá para imaginar que o leite em pó ou o frango orgânico produzido pelo agronegócio – nesse caso, o agriorganic business – e vendidos por grandes empresas multinacionais sejam sustentáveis só porque os animais receberam ração a base de milho orgânico, sem drogas veterinárias. Da mesma forma, uma alface hidropônica ou uma carne vegana produzidas em fazendas verticais ou laboratórios de startups, que mantêm a mesma lógica capitalista de concentração de tecnologia e renda, não merecem o título de alimentos sustentáveis só porque excluem o animal do processo produtivo.

IHU – Você fala dos orgânicos ultraprocessados e veganos industrializados. Parece que muitos enxergam os alimentos orgânicos e veganos como sempre saudáveis e sustentáveis. Como isso se torna negativo?

Elaine de Azevedo – A questão acima responde a essa pergunta. É o sistema familiar de produção aliado à cultura que define a saudabilidade e a sustentabilidade de um alimento. Não basta ser vegano. Nem orgânico. Reconheço que existe um grande desafio aqui, mas é preciso ter isso em mente. O negativo nisso tudo é que os inúmeros subtítulos dos alimentos saudáveis – light, vegano, diet, orgânico, ayurveda, tradicional, caipira, colonial – iludem o comedor ao desqualificar a origem dos alimentos. Isto é, sem dúvida, o elemento que realmente define uma alimentação saudável.

IHU – Como os ultraprocessados e os agrotóxicos têm contribuído para a insegurança alimentar e a fome no país?

Elaine de Azevedo – A fome envolvida nesse tipo de alimento se manifesta de duas maneiras, pelo menos. Primeiro, esses alimentos são percebidos como “baratos”. Entre aspas, porque no custo de R$ 3,00 de um pacote de Miojo não está embutido os externalidades ambientais e sociais implícitas a esse produto. E são alimentos com alto teor de toxicidade – contaminados com diferentes insumos sintéticos utilizados pelo sistema de origem e afetados pelos processos industriais de processamento. Por isso, produzem insegurança alimentar e podem “matar a fome”, mas não promovem saúde. Então, o sistema agroalimentar hegemônico termina mesmo é no sistema médico farmacêutico que oferece procedimentos e medicamentos para diagnosticar e tratar as doenças e os dissabores causados pelos alimentos ultraprocessados. Por isso também o casamento entre as multinacionais Monsanto (agroindústria) e a Bayer (indústria farmacêutica) foi o mais emblemático dessa perversa relação.

Mas a fome dos ultraprocessados e contaminados atinge outros atores. Os pequenos agricultores familiares e as comunidades tradicionais remanescentes do mundo rural foram obrigados a desistir da agricultura ou a migrar para as franjas das grandes cidades para serem explorados, junto com os grupos sociais mais vulneráveis socialmente – negros e, especialmente, mulheres negras – que não foram contemplados com terra, herança ou acesso à educação e à saúde. E no campo, nas florestas e nas cidades passam fome. Ou só comem alimentos de alta densidade energética, envenenados, de baixo custo e qualidade que promovem saciedade, insegurança alimentar e diversas enfermidades. São os mesmos alimentos ultraprocessados que, por incrível que pareça, também seduzem muitos que poderiam comer comida orgânica, de origem familiar, local, variada e fresca. É a tal da comida de verdade.

IHU – Em sua opinião, quais os passos básicos que o país não está tomando para enfrentar o problema da fome e da insegurança alimentar?

Elaine de Azevedo – Estamos em outro momento político agora. Mas que o governo anterior não fez está muito claro. Ou melhor, o que ele fez. Bolsonaro simplesmente desmontou todas as políticas de bem-estar social e de apoio à agricultura familiar e à segurança alimentar e nutricional construídas durante o governo do PT, ações que tiraram o Brasil do mapa da fome.

Alguns exemplos pra relembrar essa triste realidade: Bolsonaro desmontou o Programa Fome Zero e o Bolsa Família, o CONSEA, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e o Programa de Aquisição de Alimentos; extinguiu o Ministério de Desenvolvimento Agrário; interferiu na dinâmica e no orçamento da Política Nacional de Alimentação Escolar e desmontou a política pública de criação de estoques regulares que mantinha o preço baixo de alimentos básicos como arroz e feijão; fortaleceu a indústria de ultraprocessados e liberou mais de 2 mil tipos de agrotóxicos. Acredito que tudo isso deve ser retomado pelo atual presidente, que já conseguiu minimizar a fome no país. A cartilha de ações interdisciplinares e intersetoriais que já acabaram com a fome aqui, nós já temos. Está pronta. É uma cartilha mundialmente reconhecida.

IHU – Quais suas expectativas em relação ao enfrentamento da fome e da insegurança alimentar no novo governo Lula?

Elaine de Azevedo – A meu ver, Lula tem três desafios para acabar com a fome no Brasil: o primeiro é resgatar os princípios e as ações dessa cartilha que o PT já aplicou com eficiência no seu governo anterior e dedicar um bom orçamento para cumprir as metas. O segundo é finalmente ter coragem de fazer a reforma agrária, de descriminalizar quem ocupa as terras improdutivas e demarcar definitivamente todos os territórios indígenas e quilombolas. O terceiro é legitimar a agricultura familiar que produz comida, segurança e soberania alimentar como um sistema tão importante quanto o agronegócio que interfere no PIB e na balança comercial.

É preciso assumir frente, ao povo brasileiro e ao mundo, que ambos os sistemas são essenciais. Como? Destinando o mesmo orçamento que direciona para o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento – MAPA para o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome – MDS. No mínimo, queremos 50% da verba da agricultura para o MDS e, dentro desse orçamento, um adicional para a agricultura familiar de base agroecológica. Ou seja, mais incentivo para aqueles que, além de produzir comida saudável, produzem também ar, águas, solo e alimentos puros e floresta em pé. Se essas três ações forem implementadas, o Brasil nunca mais será o mesmo. E só assim pode sair e não voltar para o mapa da fome.

 

 

IHU – Como a alimentação e a fome têm sido estudadas a partir da sociologia da alimentação, da sociologia da saúde e da sociologia ambiental? Que novas compreensões essas áreas apresentam para refletir sobre os desafios brasileiros relativos à fome, à alimentação e ao cuidado do meio ambiente?

Elaine de Azevedo – A sociologia tem ampliado seus olhares para a alimentação para além das abordagens dos estudos culturais próprias do início das ciências sociais. A metodologia da sociologia, que implica tolerância com as diferenças, diálogo interdisciplinar com outras áreas e o cruzamento entre os saberes acadêmicos, empíricos, tradicionais e populares dos grupos sociais que padecem da fome e dos problemas ambientais, permite abarcar melhor a complexidade dessas questões. Incorporar na compreensão da fome quem sofre com ela permite sugerir intervenções mais ajustadas para resolver a problemática.

A visão interdisciplinar da sociologia permite responder questões que precisam ser elaboradas, tais como: que impacto os diferentes sistemas agroalimentares exercem sobre a fome e a insegurança alimentar? Qual a relação entre fome, degradação ambiental, as mudanças climáticas e os ultraprocessados? Quais são as diferentes abordagens éticas que envolvem o comer? Como a fome contribui para fomentar os sistemas de opressão? Como erradicar a fome no sistema capitalista? São todas perguntas de caráter sociológico.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Elaine de Azevedo – Quero enfatizar o papel da mídia hegemônica no combate à fome e na descriminalização dos movimentos como o MST e o MPA, essenciais na luta contra a fome nesse país. Quero é ouvir, na Globo e nos principais jornais, que a agroecologia é pop. É orgânica. É quilombola. É indígena. É sustentável. E quem tem que pagar por essa propaganda que não é enganosa é o Estado.

É essencial também usar a educação para impulsionar a agricultura familiar e a agroecologia. Todo estudante nesse país precisa ser educado em disciplinas que mostrem as repercussões sociais, ambientais e sobre a saúde humana dos agrotóxicos e do agronegócio. A cartilha do veneno tem que circular nas escolas de ensino fundamental e médio. E todos os cursos nas universidades, especialmente aqueles voltados para produzir comida e saúde, precisam incorporar disciplinas com conteúdos de agroecologia em seus currículos. Não é possível um profissional da área que se intitula “da saúde” sair da universidade só pensando em doenças, suplementos, medicamentos e sem conhecer a maior estratégia de promoção da saúde, que é se alimentar diariamente de alimentos frescos, locais e sem venenos.

Por fim, no âmbito global é preciso ter em mente que, para acabar com a problemática dos venenos da agricultura e da compra de políticos corruptíveis em países subdesenvolvidos pelas empresas de insumos agrícolas, a sua produção precisa ser banida na origem. O único veneno seguro é aquele que não é produzido, e essa ação implica mobilizar os governos e a população dos países que abrigam essas empresas, bem como seus acionistas. Temos muito a fazer.

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