A passagem da modernidade para a pós-modernidade, da era industrial para a era do conhecimento e a necessidade de aprimoramento tecnológico e informacional promoveram não só modificações na formação dos militares brasileiros e uma diversificação das carreiras do oficialato, mas a engendração de “dois tipos de identidades” na corporação: “uma identidade de espírito militar mais puro e outra em que o espírito militar estaria mais sujeito às influências do mundo civil”, afirma o sociólogo Cláudio Leite à IHU On-Line.
A primeira, esclarece, diz respeito àquele militar forjado pelos ideais modernos e que “possui certos deveres como elementos constitutivos do seu 'eu' individual, os de caráter laico ao invés dos religiosos, o que não permite as manifestações da sua subjetividade. O coletivo ainda está acima do indivíduo, e o 'eu' se submete aos valores e obrigações externas, ele deve se sacrificar em prol do que é mais importante, a missão, como se verifica nas virtudes militares prescritas”.
A segunda identidade corresponde ao militar formado com base nos ideais pós-modernos e que “age sem se pautar por engajamentos referentes a grandes metanarrativas, seja de referências externas ou ideais abstratos como os das virtudes militares, mas sim engaja-se na busca do prazer e bem-estar particulares”.
Autor da tese de doutorado intitulada “As transformações do Exército Brasileiro na sociedade contemporânea: do individualismo moderno ao hiperindivualismo pós-moralista” (2019), Leite pesquisou as principais transformações pelas quais o Exército tem passado nos últimos anos. Entre elas, ele menciona as mudanças "no âmbito das relações civis-militares e na visão de Exército como uma organização formada por especialistas profissionais do Estado”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele destaca que as influências socioculturais advindas do individualismo exacerbado e do contexto tecnológico contemporâneo culminaram em modificações no ensino, na socialização e na formação dos militares, dando origem a diferentes grupos de profissionais dentro do Exército. “Alguns com processos de socialização e formação profissional militar iniciados no começo da vida adulta, muito jovens, e realizados exclusivamente no interior das Instituições Militares. Outros com processos de socialização e formação profissional militar realizados após a formação profissional em instituições civis, numa fase da vida adulta mais madura. Essas diferentes situações permitiram que os primeiros, ao tornarem-se oficiais, adquirissem uma mentalidade militar mais sólida em termos da adesão às virtudes militares. Sendo menos individualistas e se submetendo a uma ética sacrificial, em prol do coletivo. Os outros, com essa adesão fragilizada, de modo a serem mais individualistas e tendo como imperativo uma ética indolor”, exemplifica.
Os ideais modernos e pós-modernos que estão presentes na corporação, explica, são conflitivos e hoje “o oficial militar se percebe numa encruzilhada”: ou “se sacrificar por sua missão como militar, envolvendo vários imperativos éticos, ou se engajar em prol de seu próprio bem-estar e prazer individual”. Internamente, pontua, “apesar de a instituição planejar levar adiante essa profissionalização especializada dos oficiais, ela busca manter as virtudes militares tradicionais em sua profissionalidade, de características modernas. Parece não perceber que tal manutenção é contraditória ao movimento de profissionalização que ela própria almeja em termos efetivos”.
Cláudio Leite é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e em Direito pela Ulbra RS, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente é professor efetivo do magistério federal, carreira do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, lotado no Comando do Exército - Colégio Militar de Belo Horizonte.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como os ideais de modernidade e pós-modernidade constituíram e constituem a visão de mundo do Exército Brasileiro?
Cláudio Leite - No decorrer da história do Exército Brasileiro, os ideais da modernidade foram adotados conscientemente por meio da invenção de uma série de tradições que passaram a ser cultuadas na instituição para formatar de modo homogêneo a mente dos oficiais. Isso se deu através da adoção de rituais específicos, símbolos, modelos diferentes de uniformes ou fardas, utilização de insígnias e amuletos cujos significados remetem às virtudes militares, referenciais fixos, imutáveis e universais regulamentados, tais como o Patriotismo, o Civismo, a Fé na Missão do Exército, o Amor à Profissão, o Espírito de Corpo e o Aprimoramento Técnico-profissional.
Eles são ideais modernos porque se referem a um indivíduo constituído pela moralidade e ética laicas consolidadas na modernidade, em que ocorre a ruptura com a visão de mundo religiosa prevalecente até então. Esse indivíduo torna-se o centro de tudo. Porém, trata-se do indivíduo moderno, que ainda possui certos deveres como elementos constitutivos do seu “eu” individual, os de caráter laico ao invés dos religiosos, o que não permite as manifestações da sua subjetividade. O coletivo ainda está acima do indivíduo, e o “eu” se submete aos valores e obrigações externas, ele deve se sacrificar em prol do que é mais importante, a missão, como se verifica nas virtudes militares prescritas.
Já os ideais pós-modernos estão relacionados à constituição de um indivíduo subjetivo cuja moral é caracterizada por uma ética indolor ou de pós-dever. Esse indivíduo age sem se pautar por engajamentos referentes a grandes metanarrativas, seja de referências externas ou ideais abstratos como os das virtudes militares, mas sim engaja-se na busca do prazer e bem-estar particulares.
IHU On-Line - Que tipos de antagonismos são gerados por esses dois ideais?
Cláudio Leite - Antagonismos entre os ideais modernos, no caso, as virtudes militares e os pós-modernos, caracterizados por uma ética indolor. Assim, o oficial militar se percebe numa encruzilhada: se sacrificar por sua missão como militar, envolvendo vários imperativos éticos, ou se engajar em prol de seu próprio bem-estar e prazer individual. São posturas antagônicas.
IHU On-Line - Quais são as principais transformações pelas quais o Exército Brasileiro passou nos últimos anos? Quais são as causas dessas transformações?
Cláudio Leite - São inúmeras, sobretudo no âmbito das relações civis-militares e na visão de Exército como uma organização formada por especialistas profissionais do Estado. Nesse sentido, tendo em vista o foco da pesquisa doutoral, sobre aspecto da formação profissional do militar, as principais transformações foram as demandas da Era do Conhecimento e da Informação. A necessidade de aprimoramento tecnológico e informacional promoveu a diversificação das carreiras que constituem o oficialato do Exército Brasileiro. Fenômeno causado pela passagem global da Era Industrial para essa Era do Conhecimento.
IHU On-Line - Na sua tese de doutorado, o senhor trabalha com a hipótese de que as influências socioculturais advindas do individualismo exacerbado e do contexto tecnológico contemporâneo foram as forças que mais modificaram a profissionalidade militar. Como se deu esse processo? O que mudou na formação e na estrutura do Exército Brasileiro a partir dessas influências?
Cláudio Leite - Esse processo, no decorrer dos últimos anos, culminou em modificações no ensino, na socialização e na formação do profissional militar. O oficialato tornou-se constituído por diferentes grupos de profissionais. Alguns com processos de socialização e formação profissional militar iniciados no começo da vida adulta, muito jovens, e realizados exclusivamente no interior das Instituições Militares. Outros com processos de socialização e formação profissional militar realizados após a formação profissional em instituições civis, numa fase da vida adulta mais madura.
Essas diferentes situações permitiram que os primeiros, ao tornarem-se oficiais, adquirissem uma mentalidade militar mais sólida em termos da adesão às virtudes militares, sendo menos individualistas e se submetendo a uma ética sacrificial, em prol do coletivo. Os outros, com essa adesão fragilizada, de modo a serem mais individualistas e tendo como imperativo uma ética indolor.
Portanto, dois tipos de identidades foram engendrados, uma identidade de espírito militar mais puro e outra em que o espírito militar estaria mais sujeito às influências do mundo civil. Essa segunda seria uma identidade militar mais frouxa, com traços paisanos.
IHU On-Line - O senhor pode descrever o que chama, na tese, de perfil rígido e perfil flexível do oficial? Como um aumento do perfil flexível pode mudar o futuro do Exército?
Cláudio Leite - O oficial de perfil rígido é aquele de espírito militar puro, em que a mentalidade do militar é guiada pelas virtudes militares. Ele se preocupa em atender de modo radical os comandos de sua missão como soldado, inclusive se sacrificando como indivíduo em prol do coletivo. Trata-se do oficial de identidade enquadrada.
Já o flexível não possui essa submissão radical, ele possui traços na identidade que são típicos da vida civil e não da vida militar. Não se dá ao sacrifício, mas busca atender suas demandas individuais em primeiro plano. É um técnico especialista em termos efetivos, mas não se adapta ao enquadramento prescrito.
IHU On-Line - Como, internamente, o Exército Brasileiro tem lidado com as mudanças? Quais são as reações a essas mudanças?
Cláudio Leite - Na verdade, o próprio Exército é o responsável por essas mudanças. Internamente foi a própria instituição que modificou as estruturas das carreiras dos oficiais. Não há outra saída diante do desenvolvimento tecnológico e informacional atual. A guerra tornou-se essencialmente especializada nesse sentido. Todavia, apesar de a instituição planejar levar adiante essa profissionalização especializada dos oficiais, ela busca manter as virtudes militares tradicionais em sua profissionalidade, de características modernas. Parece não perceber que tal manutenção é contraditória ao movimento de profissionalização que ela própria almeja em termos efetivos.
IHU On-Line - Quais são as consequências dessas mudanças que têm ocorrido no interior das forças armadas?
Cláudio Leite - Internamente as consequências são as dissonâncias entre os próprios oficiais, prejudicando o espírito de corpo da instituição, promovendo uma dicotomia entre enquadramento e efetividade profissional. O que pode acarretar fugas de profissionais altamente especializados para setores da vida civil.