Por: Vitor Necchi | 20 Setembro 2016
O professor e historiador Jocelito Zalla trafega em dois universos que lidam de maneiras distintas com a questão da identidade gaúcha e que podem entrar em choque. De um lado, seus alunos em idade escolar, que reproduzem o senso comum acerca da mitologia heroica. De outro lado, o âmbito acadêmico e da pesquisa, onde as narrativas produzidas se ocupam com o entendimento do fenômeno a partir de uma abordagem crítica. “Hoje se procura compreender, pela chave das práticas sociais, as diversas modalidades de figuração do gaúcho e do passado local, incluindo as disputas entre seus principais agentes”, descreve.
Zalla não acha que professores e pesquisadores devem militar contra o gauchismo. Por outro lado, defende: “Nossa postura de compreensão e análise do fenômeno não nos exime de fazer a crítica de todo e qualquer discurso preconceituoso que vigore no tradicionalismo gaúcho, no gauchismo em geral e em nossa cultura local”. Como há preconceito nas postulações do tradicionalismo, o pesquisador defende que devem ser denunciadas as opressões de gênero e de raça, além da dominação de classe, cabendo ao historiador um papel decisivo.
A análise da invenção das tradições gaúchas deveria tratar das relações de gênero, ressalta Zalla em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. O mito do gaúcho heroico, branco e elitizado é altamente identificado ao universo masculino, e a figura feminina, a “prenda”, foi construída como um negativo desse gaúcho: frágil, dócil, recatada. “O machismo é, portanto, algo persistente no universo regional e precisa ser desconstruído, pois limita as relações interpessoais e descamba, com frequência, em violência simbólica e física.” O tradicionalismo também tem muita dificuldade em lidar com os homossexuais, pois desvaloriza qualquer identidade descolada do padrão engessado da masculinidade estereotipada.
A história e o regionalismo gaúchos costumam integrar o currículo informal das escolas, principalmente por meio de “práticas cívicas sobreviventes do regime militar, que tendem a reproduzir a visão do tradicionalismo gaúcho, principalmente durante a Semana Farroupilha. Zalla não espera que, a curto prazo, haja uma compreensão mais crítica sobre a história regional: “Basta pensarmos no trabalho de memória realizado pela grande imprensa local, que sempre reforça os estereótipos regionais”. Mas isso pode mudar a médio e longo prazos, desde que essa questão seja assumida pelas escolas. “Isso exige investimentos na formação dos professores, além de liberdade pedagógica e autonomia da gestão escolar, coisas que, infelizmente, começam a ser ameaçadas no país por projetos de censura à educação, como o Escola Sem Partido”, lamenta.
Jocelito Zalla | Foto: Arquivo Pessoal
Jocelito Zalla é mestre, licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Sua dissertação recebeu o primeiro prêmio no Concurso Silvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, em 2010. Ela está no prelo pela Editora da UFRGS, com o título O centauro e a pena: Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas. É professor do Colégio de Aplicação da UFRGS e pesquisador do Laboratório de Ensino de História e Educação - LHISTE/UFRGS. Atualmente, cursa doutorado em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, com pesquisa sobre o escritor João Simões Lopes Neto, vida literária e produção de memória histórica no sul do país.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Literatura e história são distintas formas de apreensão do mundo que se valem da linguagem para, por meio de uma narrativa, criar um discurso, uma representação sobre acontecimentos e pessoas. Que gaúcho emerge da literatura e da história produzidas no Rio Grande do Sul?
Jocelito Zalla - Depende da literatura e da história, ou melhor, da escrita da história. No Rio Grande do Sul, devido a uma série de questões sociais e institucionais, a literatura se adiantou na representação do passado e da realidade local. Em meados do século 19, os primeiros romancistas do estado, como Caldre e Fião [1], passaram a se dedicar à temática regionalista, obviamente vinculada ao universo rural que predominava na região e em todo o país. Finda a Guerra do Paraguai [2], os letrados sul-rio-grandenses, que em sua grande maioria eram políticos profissionais, criaram agremiações intelectuais, como a Sociedade Partenon Literário [3], que deram impulso à produção cultural; esta centralizada pela prosa de ficção e pela poesia épica, principalmente.
Desses primeiros esforços literários, emergiram mitos mais tarde associados à figura do gaúcho, como o “monarca das coxilhas” e o “centauro da pampa”. Eram representações romantizadas do campesinato local, que buscavam construir um herói anônimo para a província, aproveitando o histórico bélico da fronteira e o imaginário nacional a respeito dos cavaleiros rio-grandenses, dos estancieiros-militares aos soldados rasos, que também eram peões em tempos de calmaria. Mas é importante observar que esses literatos evitavam a denominação de “gaúcho” mesmo para os homens do campo, pois ainda se tratava de um estigma social.
Nos anos 1920, o primeiro estágio de profissionalização da História (disciplina), com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, se encontrou com os debates modernistas em literatura de imaginação. Junto ao clima de conciliação das facções políticas locais pós-Revolução de 1923 [6], literatura e história criaram juntas o mito do gaúcho heroico ou “gaúcho brasileiro”, décadas mais tarde reproduzido e ritualizado pelo movimento tradicionalista: um campesino guerreiro, defensor da fronteira, regido por um código de honra exemplar, de nacionalidade luso-brasileira, portanto branco, além de ordeiro e trabalhador. Esse mito foi construído em oposição à legenda do gaucho malo platino, inimigo que passou a absorver, no plano ideológico, todas as características negativas ligadas ao gaúcho histórico. É a partir daí que se inicia o processo de “gentilização” do termo, que paulatinamente substitui o adjetivo “sul-rio-grandense” no senso comum local, confirmando o imaginário nacional já consolidado sobre o Rio Grande do Sul. Esse mito teve usos políticos diretos, como na propaganda do projeto varguista de tomada do poder central, que afirmava na bravura, na honra e na fidelidade do sulista a salvação para a nação. Com as diversas crises políticas da era Vargas, que colocavam em confronto antigos aliados locais, além do crescimento do mercado literário e da diversificação do campo intelectual no estado, literatura e história se separaram mais uma vez.
Tenho defendido, na minha pesquisa de doutorado, que a partir desse momento se verifica no estado uma espécie de divisão intelectual e discursiva do trabalho de memória. A historiografia tradicional “estabelecida” (porque também havia disputas e dissidentes nesse domínio) dedicava-se, principalmente, aos heróis da elite, aos militares-estancieiros que teriam fixado (e feito avançar) os limites do território brasileiro na fronteira Sul, e seus episódios representativos, como a Revolução Farroupilha. Essa historiografia reproduziu o núcleo duro do mito do gaúcho heroico sem apelar ao elemento popular, negando a miscigenação racial, as trocas culturais com os países platinos e, inclusive, o peso da escravidão na história da região. Em contrapartida, a literatura se tornava a principal via de escape para uma história popular do Rio Grande do Sul. Da década de 1930 até muito recentemente, a ficção cumpriu uma função de contramemória, de contraponto ao discurso historiográfico tradicional, de viés oficial. Foi através dela que personagens históricos marginalizados ganharam representação letrada, como o indígena, o negro, a mulher e, até mesmo, o gaúcho pobre que migrava para a cidade em busca de trabalho. Essa função perpassa vertentes literárias distintas e concorrentes, algumas comprometidas com e outras críticas ao modelo hegemônico de identidade gaúcha do Rio Grande do Sul desenhado desde então, encontrando lugar em Cyro Martins [7], Érico Veríssimo [8] e, inclusive, em certo Barbosa Lessa [9].
IHU On-Line – Em diferentes civilizações, em momentos de derrocada, emergem dos escombros narrativas ufanistas que tentam superar a debacle. Foi isso que fizeram os escritores do Partenon Literário, após os rio-grandenses saírem derrotados da Guerra dos Farrapos?
Jocelito Zalla - A observação é correta, mas acredito que não tenha sido este o caso. Foi necessário que se passasse um bom tempo desde o fim do conflito para que a Guerra dos Farrapos fosse celebrada no Rio Grande do Sul. Como sua saída foi conciliatória e os principais líderes da revolta foram assimilados ao exército imperial, não era necessário, muito menos desejado, se contrapor ideologicamente ao poder central. O episódio só foi recuperado substancialmente nos embates intelectuais da chamada geração de 1870. Foram os historiadores rio-grandenses republicanos, como Joaquim Francisco de Assis Brasil [10] e Alcides Lima [11], formados na Faculdade de Direito de São Paulo, onde fundaram o Clube Vinte de Setembro, que reabilitaram a revolta na memória histórica nacional. Eles transformaram o episódio em marco do republicanismo brasileiro, esmaecendo seu desdobramento separatista e ressaltando a vocação republicana prematura do Rio Grande do Sul. Apesar de contemporâneos dos escritores do Partenon, com quem também comungavam certas ideias políticas, como o republicanismo e a abolição da escravidão, já havia inclinações diferentes nas duas áreas da produção simbólica. O ensaio histórico era um gênero mais próximo da ação político-partidária, enquanto a ficção tendia ao projeto mais amplo de construção da nação. Ainda assim, a indistinção entre os campos político e cultural, além da representação do ponto de vista da elite sul-rio-grandense, explica posições comuns, como a afirmação da brasilidade dos líderes farrapos.
Um dos grandes incômodos dos partenonistas em relação ao livro de José de Alencar foi a representação de um diálogo entre Bento Gonçalves [12] e Juan Antonio Lavalleja [13], líder da independência da Cisplatina (atual Uruguai) do Império do Brasil, em 1825; o que insinuava propósito separatista semelhante na revolta dos farrapos e identidade comum às duas províncias. Nesse momento, a Revolução Farroupilha era muito mais uma arma do movimento republicano no país, mas sua brasilidade declarada foi aproveitada pelos historiadores e literatos nacionalistas dos anos 1920, que desconectaram o episódio do contexto de revoltas platinas. Quando o regionalismo gaúcho passou a enfocar mais a definição de peculiaridades locais do que a inserção, ainda que diferenciada, do Rio Grande do Sul no seio da nação, a comemoração ufanista do episódio compareceu com mais força.
É o caso do Centenário, em 1935, que teve uma exposição universal organizada na Várzea da Redenção (transformada desde então em Parque Farroupilha), quando parcela da elite rio-grandense confrontava o centralismo varguista. É o caso, também, do movimento tradicionalista gaúcho, criado no bojo do fim do Estado Novo [14]. A historiadora e cientista política Celi Pinto apontou que a memória da Revolução Farroupilha foi construída como discurso de crise, emergindo em momentos de tensão entre o centro político e a periferia sulina. Nos anos 1980, os pedidos de socorro financeiro do governo estadual à União recorriam discursivamente à saga farroupilha e à lealdade dos gaúchos, que teriam “escolhido” permanecer brasileiros. A meu ver, essa configuração que alia crise e ufanismo regionalista é muito mais frequente no século 20 do que no 19.
IHU On-Line – Na história, narrativas se apropriam do passado e, ao longo do tempo, são tensionadas e reinterpretadas por novas narrativas, conforme afirma Michel de Certeau, estabelecendo-se um ciclo sucessivo de leituras e representações do real. Entre os historiadores contemporâneos, qual narrativa está se construindo sobre o gaúcho? Quais as novas tendências verificadas nas análises da identidade regional?
Jocelito Zalla - Primeiro, é importante reconhecer que existem historiadores e historiadores. Quero dizer com isso que os historiadores profissionais acadêmicos não possuem o monopólio da representação do passado, além de coexistirem perspectivas e abordagens diferentes dentro da historiografia universitária. Ainda há muitos letrados não especializados reconhecidos publicamente como historiadores, sem formação superior na área e sem a chancela da comunidade científica. Não possuindo as ferramentas conceituais e metodológicas da disciplina, a tendência geral desses produtores de memória é corroborar o senso comum histórico ou a cultura histórica dominante, repetindo e legitimando o estereótipo do gaúcho pampiano. Daí certos choques, comuns na mídia local, entre suas versões da história e as narrativas produzidas na academia. Estas últimas, por sua vez, têm mudado sua tônica da denúncia para a compreensão do fenômeno, tomando, muitas vezes, a própria memória histórica tradicional como objeto de estudo.
Assumindo o risco da simplificação, é possível falar em duas gerações de historiadores acadêmicos da identidade gaúcha. A primeira, já denominada por pesquisadores como Letícia Nedel [15] e Mara Rodrigues [16] de “historiografia crítica”, produziu seus trabalhos iniciais no final da ditadura civil-militar e empenhou-se em desconstruir o conservadorismo da “ideologia do gauchismo” – para usar um termo de Tau Golin [17], um de seus expoentes –, recorrendo ao aparato conceitual do marxismo clássico.
A segunda geração, que começa a publicar os resultados de suas investigações no final dos anos 1990, ampliou sua gama de preocupações, recortou períodos e estratos sociais e geográficos mais específicos, delimitou objetos complementares, mas distintos, diversificou suas fontes, reforçou os diálogos com outras áreas do conhecimento que também passaram pela institucionalização universitária, como a Antropologia, a Sociologia e os Estudos Literários, e lançou mão de teorias e métodos diversos, geralmente identificados ao domínio da História Cultural. Podemos citar como exemplares dessa produção a tese de Alexandre Lazzari [18] sobre a identidade gaúcha e a nacionalidade na produção letrada do final do século 19 e início do 20, a dissertação de Carla Renata Gomes sobre a positivação da palavra gaúcho na literatura do 19, a tese de Mara Rodrigues sobre Moysés Vellinho e a historiografia gaúcha tradicional, a dissertação de Letícia Nedel sobre o Museu Júlio de Castilhos e sua monumental tese sobre o regionalismo e o campo intelectual no Rio Grande do Sul do século 20. Essa produção recente, mas substancial, na qual procuro me inserir, continua dissecando a construção discursiva do passado gauchesco e seus usos públicos. Ou seja, assim como para a geração crítica, a identidade gaúcha não é vista como essência. É uma construção social de longa duração. Mas dela, como não poderia deixar de ser, emergem principalmente as diferenças.
Hoje se procura compreender, pela chave das práticas sociais, as diversas modalidades de figuração do gaúcho e do passado local, incluindo as disputas entre seus principais agentes. Para exemplificar essa tendência com um resultado da minha pesquisa de mestrado, digo que eu mesmo fiquei surpreso ao analisar a produção escrita de Barbosa Lessa e encontrar nele um intelectual humanista, não somente comprometido com o que era considerado “cultura popular”, mas defensor dos trabalhadores do campo, crítico do racismo nos CTGs que ajudara a construir, entusiasta de campanhas de alfabetização na cidade e autor de uma literatura de imaginação sofisticada, e que disputava os rumos do tradicionalismo gaúcho com vertentes mais fechadas. Imagem diversa daquela de “ideólogo” do gauchismo conservador e literato menor, conforme definida pela geração crítica. Como agente e produtor cultural, Barbosa Lessa ocupou posições diferentes nos campos intelectual e político, ora referendando uma representação tradicional do gaúcho, ora construindo alternativas bastante progressistas a ela. Um personagem rico em contradições. Resumindo, a tendência mais atual na história produzida por historiadores universitários é a de restituir a complexidade do objeto.
IHU On-Line – Os CTGs reproduzem uma série de ritos inventados, comumente confundidos com folclore e cultura popular. Qual a diferença?
Jocelito Zalla - A cultura popular é sempre uma invenção de intelectuais. É definida historicamente segundo a expectativa de grupos letrados sobre o que deveria configurar o folclore e a memória popular da região e da nação. Também é construída como via negativa do universo erudito, aquilo que não cabe nas artes especializadas, formalizadas em academias e consumidas por iniciados. É, portanto, uma seleção de algumas práticas culturais espontâneas, dentre uma gama muito mais ampla da vida social, por agentes que têm o poder de salvaguarda, geralmente conferido por instituições públicas. Podemos dizer que o folclore de um país é o produto de seus folcloristas. Os rituais cetegistas, no entanto, não devem ser confundidos com o folclorismo, ainda que sejam tributários dele, muito menos com “cultura popular”.
Tomemos o caso das danças tradicionalistas, frequentemente apresentadas como danças folclóricas do Rio Grande do Sul. Trata-se, na verdade, de composições coreográficas autorais (as principais delas foram elaboradas por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, conforme seu Manual de Danças Gaúchas, de 1956), verdadeiras bricolagens de passos, versos e arranjos musicais provenientes das mais diversas fontes orais e bibliográficas, além do engenho criativo dos coreógrafos e músicos tradicionalistas.
Como procurei mostrar em minha dissertação de mestrado, existem três grandes matrizes para a formalização dessas danças. A primeira delas é dada pelo repertório letrado regionalista. Entre 1948, ano de fundação do “35” Centro de Tradições Gaúchas, o primeiro CTG da história, e 1950, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes empreenderam uma verdadeira imersão na produção literária, historiográfica e folclorista local, sob orientação de Dante de Laytano [19], diretor do Museu Júlio de Castilhos e da Comissão Gaúcha de Folclore, braço da Comissão Nacional de Folclore. Também consultaram historiadores como Moysés Vellinho [20] e Manoelito de Ornellas [21]. Leram Simões Lopes Neto, João Cezimbra Jacques [22] e Augusto Meyer [23], além de vocabulários e almanaques de época. Dessas obras, retiraram parte do cancioneiro utilizado nas danças. Nelas se encontram os versos do Tatu, da Chimarrita, do Anu, do Balaio, da Quero-mana, por exemplo.
A segunda grande matriz dessas danças é o criollismo argentino e uruguaio. Em 1949, o governo do estado convidou os jovens do “35” para representar oficialmente o Rio Grande do Sul no Día de la Tradición, em Montevidéu, evento que reunia sociedades cívicas dos dois países vizinhos. Lá eles conheceram grupos de danças que elaboraram coreografias a partir do imaginário gauchesco. A delegação, composta apenas de rapazes, aprendeu alguns passos que, nos anos seguintes, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes utilizaram no seu próprio projeto coreográfico, além da ideia de formar corpos de baile semelhantes nos CTGs.
A terceira matriz é o movimento folclorista brasileiro. Em 1950, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes ingressaram na Comissão Gaúcha de Folclore a convite de Laytano. Então, passaram a entrevistar idosos em zonas de campanha e a recolher fragmentos musicais e coreográficos. No mesmo ano, Porto Alegre sediou a 3ª Semana Nacional de Folclore. O “35” fez a apresentação de abertura, quando estreou a dança do Pezinho. Barbosa Lessa conta, em suas memórias, que essa dança era uma brincadeira de crianças presenciada numa das pesquisas de campo pelo interior, provável reminiscência muito modificada do “Pezinho” açoriano. A peça fez estrondoso sucesso junto ao público e incentivou a continuidade do projeto. Nos anos seguintes, Lessa e Côrtes viajaram por diversos estados brasileiros e alguns países latino-americanos, como membros da Comissão de Folclore. Dessas visitas, recolheram mais elementos utilizados em suas bricolagens. No acervo pessoal de Barbosa Lessa, encontrei material impresso trazido dessas viagens. A dança do Pau-de-Fitas, por exemplo, é praticamente uma cópia de uma coreografia descrita em publicação boliviana, referente a um rito de povos nativos callahuayas.
Toda a ritualística cetegista, na verdade, é uma invenção recente, das vestimentas ao código vocabular empregado nesses clubes cívicos, passando pela dinâmica de relações entre seus sócios, altamente disciplinada. Como mostrado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm [24], a invenção de tradições sempre se ancora em alguns elementos preexistentes no passado histórico, o que lhe confere credibilidade e legitimidade. É o caso, no Rio Grande do Sul, das bombachas, de uso também recente, das botas, do lenço amarrado ao pescoço, nas cores dos velhos partidos políticos rio-grandenses, por exemplo. Segundo Hobsbawn, ainda, os objetos do passado exercem nova função simbólica quando destituídos de sua finalidade prática. É inegável que se usou esporas na lida campeira rio-grandense, mas para que serve uma espora num palco de danças cetegista?
No caso das mulheres, a invenção foi ainda mais profunda, uma vez que sequer o conceito de “prenda” possuía baliza histórica. A companheira do gaúcho fronteiriço era a “china”, que, no imaginário local, era associada a uma mulher “de vida fácil”, que não constituía matrimônio e trocava de parceiro com frequência. Era necessário dissociar as novas dançarinas dos CTGs dessa visão pejorativa. “Prenda”, por sua vez, era termo corrente no meio rural para qualquer objeto de valor material, como uma adaga ou uma guaiaca (cinto) de couro trabalhada. Sua escolha para designar a mulher é significativa de sua posição secundária na nova associação, de objeto de desejo do homem, não de sujeito histórico. O vestido de prenda é outra completa invenção, sem nenhum precedente na história do Rio Grande do Sul. Foi uma escolha do setor mais conservador dos jovens rapazes tradicionalistas (as moças nem opinaram), baseada no vestido de chita paulista e nos vestidos dos clubes crioulos platinos, com o objetivo de cobrir todo o corpo da mulher e driblar possíveis suspeitas da sociedade porto-alegrense. Tudo isso mostra que os rituais cetegistas não podem ser confundidos com uma suposta cultura folclórica espontânea, mesmo que mediada e fixada por letrados. Seu processo de invenção é muito mais radical.
IHU On-Line – Por que o projeto cultural dessas agremiações é tão vitorioso?
Jocelito Zalla - Primeiro, porque o modelo cetegista pode ser reproduzido em larga escala, em qualquer centro urbano. Um CTG é, basicamente, um clube construído nas cidades para indivíduos que não possuem mais ou nunca possuíram laços concretos com o mundo rural. Os ritos tradicionalistas permitem a encenação de um passado mítico, de uma “idade de ouro” gauchesca perdida. Possibilitam a adesão a esse mundo imaginário pela prática. Os próprios CTGs oferecem a formação necessária ao iniciado.
Segundo, porque as tradições gaúchas inventadas são extremamente verossímeis. Ao apelar a representações de longa duração sobre a região, compartilhadas por homens e mulheres da cidade e do campo, letrados e iletrados, o tradicionalismo gaúcho constrói credibilidade para si. Justificando-se também a partir de uma retórica da perda, de lógica circular – “é preciso salvar as tradições porque as tradições estão em perigo” –, o movimento reforça sua legitimidade social.
Terceiro, porque o tradicionalismo cetegista foi apropriado por uma parcela da elite política e econômica do estado. Como a base das tradições inventadas era o mundo da criação pecuária extensiva, os CTGs acabaram por dar suporte ideológico à grande propriedade privada da terra. Como a memória histórica dos anos 1920 já havia elitizado a figura do gaúcho, e os tradicionalistas fizeram uso dessa modalidade de representação, o ingresso de membros dessa elite nos novos centros foi menos problemática, mesmo que o gauchesco inevitavelmente se confundisse, às vezes, com a vida do peão na estância, do trabalhador assalariado rural. Não é à toa que o primeiro abrigo fixo do “35” CTG tenha sido uma sala no edifício da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). Políticos profissionais também aderiram ao movimento, já nos anos 1950, como José Pereira Coelho de Souza [25], então deputado federal pelo Partido Libertador, que defendia os interesses dos ruralistas. A difusão do tradicionalismo virou, inclusive, mote de políticas públicas. Em 1976, em plena ditadura militar, foi fundado o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), órgão ainda hoje existente, vinculado à Secretaria de Cultura, que pretende promover e divulgar estudos folclóricos. Mas ele sempre foi dominado pelos tradicionalistas e serviu de braço estatal do movimento.
Por último, há os fenômenos de ordem geral, econômica, política e social, que produzem experiências pessoais de instabilidade identitária, quando os indivíduos sentem necessidade de se vincular a alguma comunidade cultural e política. O gauchismo cetegista soube capitalizar a seu favor esse sentimento, notavelmente em duas ocasiões: finda a Segunda Guerra Mundial, quando as periferias ocidentais foram incorporadas definitivamente ao capitalismo e o clima de Guerra Fria implicava a disseminação do modo de vida e de produtos culturais norte-americanos em sua zona de influência, os CTGs foram criados e se espalharam pelas maiores cidades do estado; no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com a globalização dos meios de comunicação, as novas tecnologias, além da maior integração econômica mundial dada pela queda do socialismo soviético, esses clubes cresceram enormemente no estado e ganharam o mundo. Hoje, onde há gaúchos em número considerável, há CTGs. Eles estão presentes em 23 estados brasileiros e já foram fundados, inclusive, 16 centros no exterior. A experiência de migração, aliás, radicaliza esse sentimento de perda de raízes. O tradicionalismo gaúcho, pelas características que apontei, tem conseguido se oferecer como uma resposta a esse tipo de problema.
IHU On-Line – Estaríamos sendo severos demais com o tradicionalismo ao afirmar que este movimento alicerça preconceitos e visões anacrônicas de mundo ao celebrar a elite pastoril e escravagista?
Jocelito Zalla - Infelizmente, não. Mas é importante dizer que essa configuração não estava dada no início do tradicionalismo. A celebração do gauchesco não era necessariamente ligada à vida da elite pastoril. Isso foi uma construção coletiva, em função das relações com os latifundiários e seus representantes políticos nos anos 1950, além da influência de uma perspectiva militar de civismo. E gerou tensões. Como disse, havia duas figuras privilegiadas na historiografia tradicional, o militar-estancieiro e o gaúcho pampiano, correspondentes a dois “registros de memória pública”, conforme definição de Letícia Nedel. O tradicionalismo gaúcho nasceu de sua conciliação. A fundação do “35” CTG se deu após o encontro de dois grupos, formados respectivamente por estudantes secundários do Colégio Júlio de Castilhos, capitaneados por Paixão Côrtes, e por militares, liderados por Hélio Moro Mariante. O primeiro tendia à celebração de emblemas do gaúcho/peão. O segundo, por motivos óbvios, identificava-se mais com a memória da elite e visava a criar um clube cívico fechado, restrito a 35 sócios permanentes, seguindo modelos da maçonaria. A proposta dos estudantes venceu na configuração do clube, mas os militares teriam, desde então, grande influência ideológica no movimento.
Havia, portanto, projetos mais abertos no início do tradicionalismo, que encaminhavam os novos ritos em direção ao gaúcho folk. É o caso, sem dúvida, de Barbosa Lessa, que também defendia que os CTGs fossem espaços, principalmente, de homens e mulheres oriundos do campo, expulsos pelos novos surtos de modernização que liberavam mão de obra da agricultura e da pecuária. Pode-se dizer que seriam clubes culturais e de proteção ao “gaúcho a pé”, cujo drama foi narrado na obra de Cyro Martins. A elitização do movimento barrou esse projeto, assim como delimitou muito o conteúdo popular celebrado pelo tradicionalismo. Basta pensar que há poucas referências à cultura afro-brasileira nos ritos cetegistas; função das fontes historiográficas adotadas pelo movimento.
Mesmo para historiadores vinculados ao registro de memória folk, como Manoelito de Ornellas e Walter Spalding, que também aderiram ao tradicionalismo, a escravidão havia sido pouco empregada no estado, e a população negra não tinha impacto na formação étnica e cultural da região. Um mito desconstruído mais tarde pela tese de Fernando Henrique Cardoso [26] e pela historiografia crítica universitária, mas que deixou marcas indeléveis no cetegismo. Em 1956, por exemplo, foi criado um CTG somente para negros, pois eles eram recusados nos clubes já formados. Mais recentemente, no final dos anos 1990, o grupo de danças do CTG Aldeia dos Anjos criou coreografias a partir dos maçambiques e quicumbis do Litoral Norte, de matriz africana, o que gerou grande comoção nas autoridades tradicionalistas por não se tratar de “tradição gaúcha”. Absurdos que, com certeza, reforçam preconceitos raciais vigentes em nossa sociedade.
IHU On-Line – O que há de positivo no tradicionalismo?
Jocelito Zalla - Um CTG é um espaço de sociabilidade, de trocas e de certa manifestação cultural. Em cidades muito pequenas do interior, às vezes, é o único clube existente. Em outras, é o único que permite a formação de corpos de dança e de música. Apesar da elitização do movimento, também se verifica a fundação de CTGs por grupos mais populares, de trabalhadores urbanos e rurais – principalmente a partir dos anos 1970, com o fenômeno dos bailões e a formação de uma indústria cultural de massas com referência regionalista. Nada que se compare ao projeto inicial de Barbosa Lessa, mas que acaba oferecendo um espaço de reunião e de confraternização para esses grupos. É uma pena que a memória celebrada mesmo nessas condições, e que é sempre disciplinada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG – órgão confederativo dos CTGs –, seja anacrônica em tantos sentidos, como em relação à posição da mulher na sociedade, à contribuição cultural do negro, e se porte de maneira tão conformista no que toca à dominação das elites.
IHU On-Line – O senhor desenvolveu uma pesquisa sobre gauchismo, memória pública regional e ensino de história. Quais foram suas conclusões?
Jocelito Zalla - Foi uma pesquisa-ação, desenvolvida no meu estágio probatório do Colégio de Aplicação da UFRGS, que buscava elaborar e testar um currículo (no sentido de conjunto de atividades de ensino) para a educação básica a partir da temática, incorporando os avanços recentes da historiografia profissional acadêmica. O problema principal era o de dialogar com o senso comum, aproveitar as representações atuais da identidade gaúcha e o calendário cívico oficial para refletir sobre a memória histórica no Rio Grande do Sul. A tarefa não foi fácil. Além do nível de abstração necessário, ela se revelou problemática para alguns estudantes, pois tendia a desconstruir algumas de suas adesões afetivas mais arraigadas. Nesse sentido, quanto mais os alunos estão avançados em idade e em escolarização, verifiquei que mais consolidados estão os mitos históricos e estereótipos regionais. Prova de que a sociedade reproduz a memória histórica tradicional, independente da formação escolar, e é necessário que o profissional da área intervenha.
Felizmente, tive apoio da equipe de professores na qual me inseri, além da parceria mais próxima de alguns colegas, como a professora Maíra Suertegaray Rossato. Juntos, desenvolvemos, na sala de aula, uma genealogia da “geografia imaginária do Rio Grande do Sul”, como denominamos uma oficina (de um semestre) oferecida para os 6º e 7° anos do Ensino Fundamental. Estudamos a história da ocupação da fronteira Sul; apontamos para trocas culturais entre Brasil, Argentina e Uruguai, no léxico, na literatura, na música; mas também mostramos as diferenças políticas que levaram à criação de estereótipos regionais e nacionais baseados no gauchesco, nos três países. Abordamos a Revolução Farroupilha, conforme é celebrada no senso comum, e trouxemos dados populacionais e fontes de época para desconstruir os mitos da “escravidão que não houve” e da “democracia social da estância”. Refletimos sobre a história da palavra “gaúcho” e sobre a invenção de tradições pelo movimento tradicionalista.
Com o Ensino Médio, também pude explorar a estatuária de Porto Alegre, em saída de campo, para discutir as disputas simbólicas que levaram à construção da identidade gaúcha para o estado. Foi interessante, por exemplo, abordar diferenças ideológicas e historiográficas, quanto à figura do gaúcho, explícitas no Monumento a Júlio de Castilhos (Praça da Matriz), na estátua do Gaúcho Oriental (Parque Farroupilha) e na estátua do Laçador – a mais recente e mais conservadora das três. Apesar das dificuldades iniciais, e da concorrência constante do imaginário social, das visões adquiridas na família e em outros círculos de relações, os resultados foram positivos. Essas predisposições puderam ser aproveitadas nas discussões, facilitando o trânsito do senso comum para as concepções formais de história e geografia do Rio Grande do Sul, e geralmente ajudavam a despertar o interesse dos estudantes para as atividades propostas. Em termos cognitivos, a temática permitiu desenvolver categorias como “identidade”, “patrimônio”, “tradição inventada”, “cultura”, “gênero”, “memória”, “mito” e “estereótipo”. Repertório que os alunos passaram a mobilizar em outros momentos das aulas de história e, até mesmo, em outros componentes curriculares. Alguns professores de humanidades (Língua Portuguesa, Literatura etc.) relataram o uso desses conceitos, por parte dos alunos, em suas aulas.
IHU On-Line – Como a história e o regionalismo gaúchos são ensinados nas escolas atualmente?
Jocelito Zalla - Não são ensinados. Não como conteúdo problematizado, mas costumam fazer parte do currículo informal, através de práticas cívicas sobreviventes do regime militar, que tendem a reproduzir a visão do tradicionalismo gaúcho, principalmente durante a Semana Farroupilha. Em contrapartida, professores de História, principalmente, podem abordar alguns dos mitos que fundamentam a identidade gaúcha quando trabalham a escravidão brasileira ou a Guerra dos Farrapos, mas isso é uma escolha docente e depende de sua formação.
Eu sustento, com base nos resultados da minha pesquisa no Colégio de Aplicação, que seria muito proveitoso desenvolver uma história do regionalismo gaúcho, talvez inserida na história dos regionalismos brasileiros, e de uma história das práticas de representação da história no país, para compreender as disputas simbólicas do tempo presente, os critérios que definem, no senso comum, o que é a região, o que é o Rio Grande do Sul e o que é o Brasil. Tarefa de natureza interdisciplinar, que integraria professores de História, Geografia, Literatura, Sociologia e Filosofia, pelo menos, indo ao encontro das tendências pedagógicas e das recomendações legais mais avançadas de que dispomos. Seria uma estratégia interessante, inclusive, para identificar e extirpar da escola certa pedagogia cívica tradicional, não apenas regionalista/tradicionalista, que ainda é reproduzida, de maneira acrítica, em momentos de comemoração.
IHU On-Line – O 20 de Setembro é altamente celebrado como data cívica, restando pouco espaço para compreensão dos seus sentidos e das apropriações que dele são feitas. O senhor tem expectativa de que isso se altere?
Jocelito Zalla - No curto prazo, não. Basta pensarmos no trabalho de memória realizado pela grande imprensa local, que sempre reforça os estereótipos regionais. No médio e no longo prazo, sim, desde que a escola enfrente esse problema. Isso exige investimentos na formação dos professores, além de liberdade pedagógica e autonomia da gestão escolar, coisas que, infelizmente, começam a ser ameaçadas no país por projetos de censura à educação, como o Escola Sem Partido.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Jocelito Zalla - Acho importante destacar, também, que a análise da invenção de tradições gaúchas exige um olhar para as relações de gênero. Como dito, o mito do gaúcho heroico, branco e elitizado, dos anos 1920, ainda forte em nossa cultura histórica, é baseado em valores bélicos, identificados ao universo masculino, que também é um universo consagrado como público. Assim, a “prenda” foi construída como um negativo desse gaúcho: é frágil, dócil, recatada. Seu lugar é o espaço privado, é “prendada” porque domina tarefas e técnicas do trabalho no lar. Logo, há uma hierarquia que coloca a mulher em posição de submissão, como disse anteriormente. Mas isso é sintoma de um modelo andro-heteronormativo mais amplo, que prescreve a superioridade do homem cisgênero heterossexual ao qual se ligam atributos tradicionais de virilidade. Qualquer identidade que se descole desse padrão, apresentando algum aspecto socialmente considerado próximo do feminino, acaba sendo desvalorizada.
É por isso que o tradicionalismo gaúcho tem tanta dificuldade em lidar com a homossexualidade. Como o MTG é uma entidade disciplinar, o modelo do gaúcho viril, guerreiro, “macho”, está sob constante vigilância. Há sanções para quem escape dele, além de constrangimentos sociais. Em função disso, não há espaço para a diversidade sexual no movimento. Até mesmo homens cisgênero heterossexuais que constroem masculinidades alternativas acabam sendo afetados pela patrulha da entidade e da comunidade de tradicionalistas. Algo preexistente na cultura patriarcal local, vale dizer, e que já foi ironizado por Erico Verissimo em Incidente em Antares. Quando um jovem da família Campolargo publicou um poema em jornal local, o personagem Vacariano vaticinou: “Esse menino é fresco”.
O machismo é, portanto, algo persistente no universo regional e precisa ser desconstruído, pois limita as relações interpessoais e descamba, com frequência, em violência simbólica e física. Em 2014, o CTG Sentinela do Planalto, de Santana do Livramento, foi incendiado após aceitar abrigar uma cerimônia coletiva de casamento, pois entre as 29 uniões, havia uma homoafetiva. O caso foi destaque na imprensa e gerou muita discussão. É necessário reconhecer a abertura dos líderes do Sentinela, ao permitir a realização do evento num contexto tão difícil, iniciativa que pode incentivar novas reflexões e mudanças internas no tradicionalismo. Mas não é por acaso que o fato tenha sido tão controverso a ponto de gerar a reação dos vândalos: no Rio Grande do Sul, a “identidade gaúcha” ainda não tolera confundir-se com as identidades homossexuais emergentes.
Enfim, não acho que seja nosso papel, enquanto professores e pesquisadores, militar contra o gauchismo. Mas nossa postura de compreensão e análise do fenômeno não nos exime de fazer a crítica de todo e qualquer discurso preconceituoso que vigore no tradicionalismo gaúcho, no gauchismo em geral e em nossa cultura local, que, evidentemente, é bem mais ampla, diversa e complexa. Precisamos, sim, denunciar as opressões de gênero e de raça, além da dominação de classe. A pesquisa histórica contribui para essa crítica, pois sua feição é desmistificadora, ela historiciza objetos que são aparentemente “naturais”, mostra que são construções, que eles nem sempre foram como se apresentam aos nossos olhos. Logo, não precisam continuar a sê-lo.
Notas:
[1] Caldre e Fião (1824-1876): José Antônio do Vale Caldre e Fião foi escritor, jornalista, político, médico e professor nascido no Rio Grande do Sul. É considerado o patriarca da literatura gaúcha. Trabalhava como boticário em Porto Alegre. Durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), mudou-se para o mas Rio de Janeiro, onde formou-se médico e estudou homeopatia. Abolicionista, fundou e dirigiu o jornal O Filantropo, entre 1849 e 1851. Foi um dos fundadores da Sociedade contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas. O engajamento lhe rendeu perseguições e ameaças. Retornou ao Rio Grande do Sul em 1852. Foi um dos fundadores e presidente da Sociedade Partenon Literário. Foi também deputado geral, pelo Partido Liberal-Progressista, e membro do Instituto de História e Geografia da Província de São Pedro. Suas obras: Elementos de Farmácia Homeopática, A Divina Pastora, Elogio Dramático ao Faustosíssimo Batizado do Príncipe Imperial D. Pedro, Imerisa e O Corsário. (Nota da IHU On-Line)
[2] Guerra do Paraguai (1864-1870): maior e mais sangrento conflito armado internacional ocorrido no continente americano. Iniciou-se quando o governo de Dom Pedro II interferiu na política interna do Uruguai. A reação militar paraguaia disparou a guerra. (Nota da IHU On-Line)
[3] Partenon Literário: a Sociedade Parthenon Litterario (1868-1925) foi uma associação literária brasileira, considerada a principal agremiação cultural do Rio Grande do Sul no 19. Por meio dela, formou-se um sistema literário no estado, impulsionando a intelectualidade. Sua criação deve-se ao empenho do médico e escritor José Antônio do Vale Caldre e Fião e do jovem Apolinário José Gomes Porto Alegre, tendo ocorrido em um momento de efervescência social e política, durante a Guerra do Paraguai, quando ideias republicanas estavam em voga, assim como o abolicionismo. A sociedade participava de campanhas abolicionistas, angariando fundos para libertação de escravos, realizando saraus poético-musicais. Também realizava debates com temas diversos como a Revolução Farroupilha, casamento, pena de morte e feminismo. (Nota da IHU On-Line)
[4] Alcides Maya (1878-1944): Alcides Castilho Maia foi um jornalista, político, contista e ensaísta brasileiro. A presença do ambiente rural em sua obra ficcional, como Ruínas vivas, Tapera e Alma bárbara, decorre da ascendência materna, cuja família era proprietária de estância. Desenvolvia suas atividades no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Em seus livros, tratou do êxodo rural e as transformações nos modos de produção no interior do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, conviveu bastante com Machado de Assis. Representou o Rio Grande do Sul na Câmara dos Deputados entre 1918 e 1921. Dirigiu o Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Depois de aposentado, retornou ao Rio de Janeiro, onde morou até sua morte. Era integrante da Academia Brasileira de Letras. (Nota da IHU On-Line)
[5] João Simões Lopes Neto (1865-1916): escritor gaúcho. A ele a revista IHU On-Line dedicou a edição 73, chamada João Simões Lopes Neto: força da literatura brasileira e latino-americana. O oitavo número dos Cadernos IHU Ideias é intitulado Simões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho, de autoria da Profª Drª Márcia Lopes Duarte, professora da Unisinos. A publicação tem como base a apresentação da professora no IHU Ideias de 4-9-2003. É possível conferir sobre o autor uma entrevista concedida por Márcia na IHU On-Line número 73, de 1-9-2003. Entre as principais obras do escritor, destaca-se Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913), Casos do Romualdo e o primeiro volume de Terra Gaúcha, estes dois últimos surgidos muito tempo após sua morte, em 1950. (Notas da IHU On-Line)
[6] Revolução de 1923: conflito armado ocorrido no Rio Grande do Sul que durou 11 meses. De um lado, partidários do presidente do Estado, Borges de Medeiros, conhecidos por Borgistas ou Ximangos e identificados por um lenço branco que usavam no pescoço. De outro, os revolucionários, ligados a Joaquim Francisco de Assis Brasil, conhecidos por Assisistas ou Maragatos e identificados por um lenço vermelho. O Pacto de Pedras Altas, firmado em dezembro de 1923 no castelo de Assis Brasil, encerrou o conflito. O acordo permitiu que Borges de Medeiros concluísse seu mandato, em 1928, e definiu que seria reformulada a Constituição de caráter autoritário que Júlio de Castilho redigiu praticamente sozinho em 1891. Assim, ficou impedida a reeleição. Getúlio Vargas, lenço branco, sucedeu Borges no governo gaúcho. (Nota da IHU On-Line)
[7] Cyro Martins (1908-1995): escritor e psicanalista que fez parte do grupo dos romancistas da chamada Geração de 30. Na literatura do Rio Grande do Sul, introduziu personagens gaúchos influenciados por novos costumes. Sua estreia foi com Campo Fora (1934). Suas obras mais importantes são Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944) e Estrada nova (1954), que integram a Trilogia do gaúcho a pé, que apresenta o gaúcho do ambiente rural empobrecido a partir da industrialização e concentração urbana. (Nota da IHU On-Line)
[8] Erico Verissimo (1905-1975): um dos mais importantes escritores brasileiros. Em 1932, o autor publica uma coletânea de contos Fantoche, sua estreia na literatura. Recebeu o Prêmio Machado de Assis, com Música ao Longe, e o Prêmio Graça Aranha, com Caminhos Cruzados. Integra o Segundo Tempo Modernista (1930-1940), período em que a literatura brasileira refletiu os problemas sociais do país. A obra de Érico costuma ser dividida em três fases: Romance urbano; Romance histórico e Romance político. Na segunda, encontra-se o épico O tempo e o vento, trilogia (O Continente, O Retrato e O Arquipélago) que cobre 200 anos da história do Rio Grande do Sul, de 1745 a 1945. (Nota da IHU On-Line)
[9] Barbosa Lessa (1929-2002): folclorista, escritor, músico, advogado e historiador brasileiro, Luiz Carlos Barbosa Lessa escreveu cerca de 61 obras, entre contos, músicas e romances. É um dos principais inspiradores do tradicionalismo gaúcho. Em 1948, ele e um grupo de colegas do Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, fundaram o primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG), chamado de 35. Entre os seus livros mais importantes estão Rodeio dos ventos, Os guaxos, O sentido e o valor do tradicionalismo e Nativismo, um fenômeno social gaúcho. Com Paixão Côrtes, entre 1950 e 1952 pesquisou o conhecimento remanescente das danças regionais do Rio Grande do Sul, trabalho que embasou a recriação de danças tradicionalistas, originando o livro didático Manual de Danças Gaúchas e o disco Danças Gaúchas, com interpretações da cantora paulista Inezita Barroso. (Nota da IHU On-Line)
[10] Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938): advogado, político, orador, escritor, poeta, prosador, diplomata e estadista brasileiro; propagandista da República. Foi fundador do Partido Libertador, deputado e governador do Rio Grande do Sul, quando integrou a junta governativa gaúcha entre 12 de novembro de 1891 e 8 de junho de 1892. Introduziu no Brasil os gados Jersey e Devon e a ovelha Karakul, tendo participação importante na introdução do cavalo árabe e no melhoramento do Thoroughbred, o puro sangue inglês. Juntamente com o Barão do Rio Branco, assinou o Tratado de Petrópolis, que assegurou ao Brasil a posse do atual estado do Acre. Neste estado, foi criado, em sua homenagem, o município de Assis Brasil. (Nota da IHU On-Line).
[11] Alcides Lima (1859-1935): Alcides de Mendonça Lima foi jurista, advogado, escritor, historiador e político nascido em Bagé (RS). Cursou direito na Faculdade de Direito de São Paulo, tendo como colegas Joaquim Francisco de Assis Brasil e Júlio de Castilhos. Integrou o Clube Republicano 20 de setembro durante o curso. Publicou em1882 História Popular do Rio Grande do Sul, livro que abrange desde os primórdios do Rio Grande até a Revolução Farroupilha. Deputado constituinte nacional, participou da elaboração da Constituição de 1891. Atuou como juiz em Rio Grande e Pelotas, além de deputado estadual. Participou da Revolução de 1923, apoiando Assis Brasil. Foi um dos fundadores da Academia Rio-Grandense de Letras. (Nota da IHU On-Line)
[12] Bento Gonçalves (1788-1847): militar e político brasileiro, um dos líderes da Revolução Farroupilha. (Nota da IHU On-Line)
[13] Juan Antonio Lavalleja (1784-1853): Militar e político uruguaio, liderou os Trinta e Três Orientais e presidiu o Uruguai no Triunvirato de Gobierno de 1853, com Venancio Flores e Fructuoso Rivera (que morreu antes da posse). (Nota da IHU On-Line)
[14] Estado Novo: Período autoritário da história do Brasil, que durou de 1937 a 1945. Foi instaurado por um golpe de Estado que garantiu a continuidade de Getúlio Vargas à frente do governo central, tendo a apoiá-lo importantes lideranças políticas e militares. (Nota da IHU On-Line)
[15] Letícia Borges Nedel: doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora do Programa de Pós-graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordena o Laboratório de Memória, Acervos e Patrimônio e integra a linha de pesquisa História da Historiografia, Arte, Memória e Patrimônio. Integra o Comitê Brasileiro para o Programa Memória do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), sediado no Arquivo Nacional, e o Conselho Consultivo do Museu Nacional de Imigração e Colonização, localizado em Joinville (SC). Entre 1991 e 1995, exerceu a função de assistente de coordenação no Museu Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul. Entre 2014 e 2015, foi membro da Comissão Gestora do Museu de Arqueologia e Etnologia Oswaldo Rodrigues Cabral (MarquE – UFSC), instituição da qual é vice-diretora desde 2016. Durante o doutorado, realizou estágio sanduíche na École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris). Realizou estágio pós-doutoral no Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). (Nota da IHU On-Line)
[16] Mara Rodrigues: doutora em História (UFRGS), com estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora associada dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da UFRGS. (Nota da IHU On-Line)
[17] Luiz Carlos Tau Golin: historiador e jornalista. Doutor em História (UFRGS), com estágio pós-doutoral na Universidade de Lisboa. Professor da Universidade de Passo Fundo. (Nota da IHU On-Line)
[18] Alexandre Lazzari: doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, com estágio pós-doutoral na Universidade Federal Fluminense - UFF. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. (Nota da IHU On-Line)
[19] Dante de Laytano (1908-2000): juiz, professor e escritor. Foi diretor do Museu Júlio de Castilhos, onde, em 1954, redefiniu seus objetivos, passando a museu histórico, priorizando o folclore e o estudo das tradições. Integrou o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e a Academia Rio-Grandense de Letras. Entre suas publicações destaca-se a História da República Rio-grandense, editada em 1936 e 1983. (Nota da IHU On-Line)
[20] Moysés Vellinho (1901-1980): poeta gaúcho, desempenhou papel como crítico literário, estudioso de literatura e como historiador. (Nota da IHU On-Line)
[21] Manoelito de Ornellas (1903-1969): historiador gaúcho, autor de Gaúchos e beduínos: a origem e a formação social do Rio Grande do Sul (Rio de Janeiro: José Olympio, 1966); Mascáras e murais de minha terra (Porto Alegre: Globo, 1966) e Terra Xucra (Porto Alegre: Sulina, 1969). (Nota da IHU On-Line)
[22] João Cezimbra Jacques (1848—1922): militar brasileiro, precursor do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Militar de Cavalaria, foi voluntário na Guerra do Paraguai aos 18 anos, em 1867, servindo no 2º Regimento de Cavalaria. Positivista, era discípulo de Augusto Comte. Participou da criação da Academia Rio-Grandense de Letras em 1901. Foi um dos fundadores do Partido Republicano Rio-Grandense em 1880 e do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre em 1898. (Nota da IHU On-Line)
[23] Augusto Meyer (1902 1970): jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia. Colaborou com vários jornais do Rio Grande do Sul, entre eles Diário de Notícias e Correio do Povo. Seu primeiro livro publicado foi A ilusão querida, de poemas, em 1920. Outas obras que escreveu: Coração verde, Giraluz e Poemas de Bilu. Dirigiu a Biblioteca Pública do Estado, em Porto Alegre. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1937 para, a convite de Getúlio Vargas, organizar o Instituto Nacional do Livro. Esteve à frente da instituição durante cerca de 30 anos. Meyer integrou o modernismo gaúcho, introduzindo uma feição regionalista à poesia. Estudou a literatura e o folclore do Rio Grande do Sul nos livros Guia do folclore gaúcho, Cancioneiro gaúcho e Seleta em prosa e verso. Recebeu o Prêmio Filipe de Oliveira na categoria Memórias e o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra literária. (Nota da IHU On-Line)
[24] Eric Hobsbawm: historiador marxista do século 20. Autor de inúmeros livros, entre os quais A Era dos Extremos (São Paulo: Companhia das Letras), A Era do Capital (Rio de Janeiro: Paz e Terra), A Era das Revoluções (Rio de Janeiro: Paz e Terra), A Era dos Impérios (Rio de Janeiro: Paz e Terra), Bandidos (Rio de Janeiro: Forense Universitária) e sua autobiografia, Tempos Interessantes: uma vida no século 20 (São Paulo: Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line)
[25] José Conceição Pereira Coelho de Souza (1898-1982): advogado, historiógrafo e político. Foi deputado estadual e deputado federal. Entre 1937 e 1945, comandou a secretário de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul. Foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Integrou o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e a Academia Rio-Grandense de Letras. (Nota da IHU On-Line)
[26] Fernando Henrique Cardoso (1931): sociólogo, cientista político, professor universitário e político brasileiro. Foi o 34º Presidente do Brasil, por dois mandatos consecutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como FHC, ganhou notoriedade como ministo da Fazenda (1993-1994) com a instauração do Plano Real para combate à inflação. (Nota da IHU On-Line)
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A necessidade da desconstrução do machismo no universo gaúcho. Entrevista especial com Jocelito Zalla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU