25 Mai 2016
“É importante fortalecer a agroecologia no semiárido, porque a metade dos agricultores brasileiros está na região”, diz a coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA.
Foto: www.webpiaui.com.br |
Antes de iniciativas como essa, que foram desenvolvidas através do Programa Um Milhão de Cisternas, “a realidade das famílias agricultoras do semiárido brasileiro era marcada pela dificuldade do acesso à água. Essas famílias, principalmente as mulheres e as crianças, caminhavam mais de seis quilômetros para pegar água em grandes propriedades”, lembra.
De acordo com a coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro - ASA pelo estado da Paraíba, entre as mudanças que têm chamado atenção nos últimos anos no semiárido, destaca-se a queda nos processos migratórios do campo para a cidade. “No Nordeste houve inclusive um retorno ao campo justamente porque as pessoas passaram a ter água. Mesmo num período de estiagem não houve uma migração brusca do campo para a cidade”, informa. Apesar dos avanços dos últimos anos, frisa, “é preciso implementar políticas públicas para a população do campo, porque não podemos nos iludir achando que somente as cisternas vão resolver todos os problemas do semiárido”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Glória comenta ainda algumas das principais mudanças que tem evidenciado na região na última década, com destaque para o desenvolvimento da produção agroecológica, através do cultivo de sementes locais, que envolve 12.800 famílias. “Fizemos um mapeamento das sementes que estão sendo conservadas, diversificadas e usadas pela agricultura familiar e chegamos a identificar que o patrimônio genético do semiárido é fantástico. Esse trabalho da valorização das sementes locais é algo importante para que o semiárido seja dinâmico e para que as populações camponesas possam viver melhor. Nesse sentido, água, semente e terra são questões fundamentais”, pontua.
Glória Araújo é coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA pelo estado da Paraíba.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual tem sido o impacto do programa de cisternas na transformação do semiárido? Pode nos apresentar um balanço de qual era a situação do semiárido antes da implantação das cisternas e como essa realidade mudou?
Foto: patacparaiba.blogspot.com.br
Glória Araújo – Antes desse programa a realidade das famílias agricultoras do semiárido brasileiro era marcada pela dificuldade do acesso à água. Essas famílias, principalmente as mulheres e as crianças, caminhavam mais de seis quilômetros para pegar água em grandes propriedades. A partir da concretização desse programa, quando a Articulação Semiárido Brasileiro - ASA apresentou a proposta da instalação das cisternas para a sociedade e para o governo a fim de atender as populações difusas do semiárido, essas famílias passaram a ser beneficiadas pelo Programa 1 milhão de Cisternas e passaram a ter, ao lado da casa, acesso à água de qualidade. As cisternas têm capacidade de armazenar 16 mil litros de água e podem atender uma família de até cinco pessoas durante um período prolongado de estiagem. Os últimos seis anos foram um período de violento processo de estiagem, e muitas vezes não choveu o suficiente para abastecer as cisternas, mas mesmo assim as famílias tiveram acesso à água em casa, algo que antes não tinham.
Além do acesso à água para o consumo humano, desde 2007 estamos trabalhando para que as pessoas tenham acesso à água para a produção de alimentos: trabalhamos com cisternas com capacidade para 52 mil litros de água, que são construídas nos quintais das casas e têm os transformado em locais de produção de alimento. As mulheres têm um papel importante nesta atividade, porque agora não só produzem suas plantas medicinais, como também reproduzem suas sementes e criam aves. Nesse sentido, a água utilizada para a produção de alimentos vem transformando a paisagem do semiárido. Hoje, já foram feitas cerca de 800 mil cisternas pela ASA e também por outras organizações e pelo governo do Estado, que tem incorporado a tecnologia de cisternas de placas da ASA. Nesse sentido, cerca de 85 mil famílias do semiárido já têm acesso à água para a produção de alimentos e isso está transformando a vida das pessoas, porque agora elas não só têm água para consumir, mas também para produzir alimentos.
Também desenvolvemos junto aos agricultores um trabalho de gestão da água para o consumo e para a produção de alimentos. Isso tem trazido impactos incríveis na vida das pessoas não só porque elas passam a ter acesso à água, mas porque conseguem produzir uma diversidade de alimentos sem uso de agrotóxicos. Esses alimentos passam a ser consumidos pelas famílias e, mesmo em momentos de estiagens, elas têm conseguido vender seus alimentos no mercado da comunidade ou nas feiras locais, além de terem uma parceria com o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Chama a atenção que, mesmo no período de seca, em 2014 foram organizadas quatro feiras, que oferecem produtos agroecológicos produzidos pelas famílias.
"Mesmo no período de seca, em 2014 foram organizadas quatro feiras, que oferecem produtos agroecológicos produzidos pelas famílias" |
IHU On-Line – Uma das reivindicações da ASA era a instalação das cisternas de placa e não as de plástico, conforme havia sido sugerido pelo governo federal há alguns anos. Hoje se investe mais em qual tipo de cisterna?
Glória Araújo – Hoje diminuiu o número de cisternas de plástico, porque fizemos um movimento contrário a essa tecnologia, justamente porque ela vem de fora, tem um preço mais elevado e os agricultores ficariam dependentes da empresa que comercializa esse tipo de cisterna caso ocorresse algum problema. Além disso, a construção das cisternas de placa fomenta o comércio local.
IHU On-Line – Além do avanço em relação ao acesso à água, quais são as principais dificuldades que a população do semiárido ainda enfrenta quando se trata de ter acesso à água?
Glória Araújo – Apesar do avanço, ainda é preciso construir mais cisternas para que toda a população do semiárido possa ter acesso à água, e não apenas para o consumo humano, mas também para poderem plantar seus alimentos.
Um dado que tem nos chamado a atenção é que embora tenha esse processo migratório do campo para a cidade, no Nordeste houve inclusive um retorno ao campo justamente porque as pessoas passaram a ter água. Mesmo num período de estiagem não houve uma migração brusca do campo para a cidade. Tendo em conta esse cenário, é preciso implementar políticas públicas para a população do campo, porque não podemos nos iludir achando que somente as cisternas vão resolver todos os problemas do semiárido. Elas têm um papel importante no acesso à água, mas também é preciso olhar para as bacias hidrográficas, para as águas subterrâneas, os mananciais, ou seja, é preciso de políticas públicas que levem em conta o conjunto do meio ambiente. Isso faz com que se tenha um olhar mais sistêmico e integrado, ou seja, temos de olhar para as diversas formas de ter e garantir o acesso à água no semiárido. A luta pela água não pode acabar; ela é uma luta permanente.
Para se ter uma ideia, em alguns locais ainda não conseguimos instalar as tecnologias desenvolvidas pela ASA, porque algumas famílias não têm espaço em seus territórios para construir uma cisterna-calçadão de 200 metros. Então, a luta pela terra é algo importante para transformar a situação do semiárido.
IHU On-Line – Que tipos de políticas públicas seriam fundamentais para garantir a melhor qualidade de vida no semiárido e o desenvolvimento da região? O que tem sido feito em termos de outras políticas?
Glória Araújo – Primeiro temos que entender que o semiárido não é aquele lugar que muitas vezes é apresentado como um local de terra rachada, de vida seca. O semiárido tem um potencial muito grande e uma diversidade enorme que pode ser vista na Caatinga. Temos de olhar para essa potencialidade e capacidade naturais e humanas, ou seja, é preciso olhar o semiárido com outra lente: como um local que tem vida e capacidade de transformá-lo num local digno para se viver.
Entre os programas que vêm sendo realizados junto ao BNDES, destaco o Programa Sementes do Semiárido, que valoriza as variedades de sementes locais. Esse projeto será finalizado neste mês de maio, mas durante seu desenvolvimento conseguimos trabalhar com 640 bancos de sementes e 12.800 famílias. Fizemos um mapeamento das sementes que estão sendo conservadas, diversificadas e usadas pela agricultura familiar e chegamos a identificar que o patrimônio genético do semiárido é fantástico. Esse trabalho da valorização das sementes locais é algo importante para que o semiárido seja dinâmico e para que as populações camponesas possam viver melhor. Nesse sentido, água, semente e terra são questões fundamentais.
Também são desenvolvidas políticas voltadas para a agricultura familiar para que os agricultores possam vender seus produtos orgânicos, porque em geral eles não usam nem agrotóxicos nem sementes transgênicas; há um entendimento de que a agricultura se faz numa relação harmônica entre o homem e a natureza. Então, é importante fortalecer a agroecologia no semiárido, porque a metade dos agricultores brasileiros está no semiárido. Nessa linha, ainda seria preciso desenvolver algumas políticas que possibilitassem trabalhar a questão da produção, da organização da produção, do acesso ao mercado, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que compra a produção das famílias e a repassa para as escolas.
É importante ressaltar que algumas políticas foram bastante importantes para o semiárido, como o Programa Bolsa Família, que transformou a vida das pessoas não no sentido de elas ficarem dependentes do programa, mas, ao contrário, de elas terem condições de iniciar uma produção e passarem a ter acesso a créditos. As pessoas que recebem o Bolsa Família são trabalhadoras, vivem da agricultura, e esses programas sociais são um apoio a elas, porque à medida que acessam renda, deixam de precisar dos programas. De modo que se pode dizer que esses programas sociais também deram uma contribuição para a transformação do semiárido. Agregando isso à política de acesso à água e às sementes, foram colocados novos elementos para que essas famílias vivessem em melhores condições.
"Temos que entender que o semiárido não é aquele lugar que muitas vezes é apresentado como um local de terra rachada, de vida seca" |
IHU On-Line - Como a transposição do rio São Francisco tem sido discutida na região do semiárido, depois de 85% das obras já estarem concluídas na Paraíba e de o governo sustentar a tese de que a transposição garantirá a segurança hídrica na região?
Glória Araújo – A transposição poderá trazer vantagens, mas será para um segmento social específico, e não para a população de agricultores, indígenas e quilombolas que vivem no semiárido, porque a água não vai chegar a essas populações. Nós temos muitas críticas à transposição, porque a história brasileira mostra que quando se investe em grande obras, elas não servem para atender ao grande público. Sem falar que essas obras não levam em conta os limites da própria natureza, porque a transposição vai trazer transtornos para o velho Chico, considerando que muitos estudos demonstram que a transposição causará impactos ambientais para o rio.
Outra crítica que fazemos à transposição é em relação aos altos recursos que são utilizados para realizar a obra. Se esse dinheiro fosse utilizado para desenvolver outras políticas, seria possível atender a um público bem maior e mais pobre.
IHU On-Line - Com uma possível mudança de governo, vislumbra alguma mudança na continuidade da implantação das cisternas no semiárido?
Glória Araújo – O novo governo está desmontando o Estado brasileiro e as conquistas sociais também serão desmontadas. Desde o período da colonização até hoje, foram poucos os governos que de fato trabalharam com as populações excluídas. Nos últimos 12 anos houve mudanças para o povo excluído, e as organizações da sociedade civil terão de denunciar e lutar pela continuidade de direitos daqui para frente.
Por Patricia Fachin
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Transformações no semiárido brasileiro: “A luta pela água não pode acabar; ela é permanente”. Entrevista especial com Glória Araújo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU