12 Abril 2015
"O que dá para dizer é que entramos em um processo de crise, e o cenário imediato não apresenta solução fácil. Neste contexto, os atores começam a atuar e fazer escolhas múltiplas, influenciando-se reciprocamente. Em situações normais pode-se dizer que vai acontecer isso ou aquilo, mas não temos condições normais", afirma o cientista político.
Avançar em um momento de crise parece sempre ser um tipo de movimento complicado. Isso porque há variantes que não são exclusivas do Estado, mas da conjuntura internacional, temas estes que impactam nos rumos que o país vai trilhar. Para André Singer, ao analisar o atual momento do Brasil é preciso “também deixar de considerar que aspectos econômicos, alguns deles não inteiramente sob o controle do Brasil, também vão exercer suas doses de influência. Por fim, a própria maneira pela qual os movimentos sociais vão reagir a esse conjunto de fatores nos próximos meses será determinante para o resultado”, analisa, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
No que diz respeito ao lulismo, caracterizado pela forte identificação do subproletariado com a figura de Lula, comporta elementos de esquerda e de direita. “Eu diria que a principal bandeira conservadora que o lulismo incorporou é a da estabilidade. Existe um componente de preservação da ordem no lulismo que poderíamos considerar como uma herança conservadora. Ao mesmo tempo há um conjunto de transformações, cujo centro é o combate à pobreza, sobretudo à pobreza extrema. Isso abre uma perspectiva de redução lenta, porém contínua, da desigualdade”, pondera.
Ao relembrar Junho de 2013, o pesquisador destaca que o momento foi de um surto de manifestações que sinalizavam uma insatisfação nas maiores cidades do país. “Agora Junho de 2013 parece se desdobrar em uma rejeição importante ao governo e que caracteriza este momento de dificuldade”, sustenta. “Neste momento há um fenômeno novo. A direita está indo para a rua. No período pós-eleitoral de 2014 a direita aparece como uma ‘direita venezuelizada’. Ela se coloca como se estivesse combatendo um projeto bolivariano, o que não existe no Brasil”, contrapõe.
André Singer foi porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula, de 2003 a 2007, quando acumulou a função de Secretário de Imprensa do Palácio do Planalto. Filho do economista Paul Singer, é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP. É autor de Os Sentidos do Lulismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), O PT (São Paulo: Publifolha, 2001) e Esquerda e direita no eleitorado brasileiro: a identificação ideológica nas disputas presidenciais de 1989 e 1994 (São Paulo: EDUSP, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o lulismo sobrevive atualmente no cenário político e econômico nacional?
André Singer – Esta é a situação mais difícil enfrentada pelo lulismo desde que ele começa a surgir no primeiro mandato do ex-presidente Lula . Estamos em face de uma crise de governo associada a um cenário de dificuldades econômicas e simultaneamente um escândalo com dimensões maiores que aqueles que haviam aparecido no Brasil. Isto tudo vai demandar uma articulação política muito hábil e muito criativa. Não se pode, também, deixar de considerar que aspectos econômicos, alguns deles não inteiramente sob o controle do Brasil, como, por exemplo, a recuperação econômica mundial, vão exercer sua dose de influência. Por fim, a própria maneira pela qual os movimentos sociais vão reagir a esse conjunto de fatores nos próximos meses será determinante para o resultado.
IHU On-Line – De que forma o lulismo reúne elementos de direita e esquerda?
André Singer – Esta é uma discussão mais antiga e tem a ver com a própria formação do lulismo. O lulismo é uma invenção política que juntou bandeiras de direita e de esquerda. A principal bandeira conservadora que o lulismo incorporou é a da estabilidade, em certa medida isso poderia estar associado ao controle da inflação, mas vai mais longe. Na verdade, isso determina transformações dentro da ordem. Existe um componente de preservação dentro do lulismo que poderíamos considerar como herança conservadora. Ao mesmo tempo há um conjunto de transformações, cujo centro é o combate à pobreza, sobretudo à pobreza extrema. Isso abre uma perspectiva de redução lenta, porém contínua, da desigualdade, o que está no campo da esquerda.
IHU On-Line - O senhor acredita que há uma espécie de “pacto velado” entre PT e PSDB?
André Singer – Acredito que não. Penso que existe certa atitude de moderação por parte dos dois partidos. Embora disputem de maneira acirrada as eleições e mesmo o debate público, parece que em momentos mais graves optam por evitar a ruptura. Eu não falaria de pacto nem velado nem explícito, mas de certa moderação em momentos mais agudos.
IHU On-Line – O senhor acredita que existe uma estratégia da oposição em fazer a Dilma “sangrar” nos próximos três anos em vez de tirá-la do Planalto neste momento? Que impactos isto traz à ideia política do lulismo?
André Singer – Tanto em 2005 quanto agora, o PSDB recusou uma saída via impeachment, que, aliás, não teria base jurídica, seria um “golpe branco”. O lulismo está vivendo a experiência inédita de um governo federal que começa muito fraco, com muita rejeição, fragilizado frente ao Congresso e com um programa que não foi o anunciado na campanha. Caso isto se prolongue, pode desgastar de maneira importante a base social do lulismo, que é fundamentalmente o subproletariado. Essa base está até agora relativamente protegida porque o Bolsa Família continua funcionando e outros programas voltados às pessoas de maior pobreza, também. Os principais benefícios sociais ainda estão de pé. Mas em que medida o emprego que foi ofertado a essas pessoas, por exemplo, na construção civil, vai se manter? Já há notícias de demissões e de um início de desemprego na construção civil, sendo que este era um dos bastiões do lulismo. No momento em que estamos conversando, no final de março, não há ainda como caracterizar desemprego em massa. Mas há a possibilidade de que isso se acelere e tenhamos um fenômeno desses ainda no primeiro semestre. Espero que não aconteça, mas os dados permitem pensar que é uma possibilidade real. Caso venha a acontecer, o lulismo será afetado.
IHU On-Line – Passados oito anos da reeleição de Lula, impulsionada, também, pela expressiva votação das classes sociais de baixíssima renda, de que forma a instabilidade econômica manifestada na alta da inflação, que impacta no poder de consumo dos mais pobres, pode refletir politicamente no lulismo?
André Singer – Paradoxalmente, a inflação talvez seja, por hora, o que está mais sob o controle do governo. Infelizmente a política é a mais ortodoxa possível, ou seja, controlar inflação via aumento da taxa de juros. Mas ao parar a economia, ela acaba por dar resultado. Estamos há praticamente dois anos com alta de juros, o que tem dois impactos: de um lado, redução de crescimento e, de outro, segura o aumento de preços. O aumento de preços que estamos assistindo no começo de 2015 tem muito a ver com a alta do preço dos combustíveis, da energia elétrica, que são preços administrados, os quais haviam sido represados pelo governo no período anterior. Acredito que esse aumento se dilua ao longo do ano e não acredito em uma aceleração da inflação. Portanto, não penso que isso venha a ser um fator estrutural de desgaste do lulismo. Neste momento há o impacto porque o aumento da energia acabou de ocorrer, mas ao longo do ano isso vai se diluir. Um dos poucos lados favoráveis que a crise econômica traz é a redução das atividades, o que tende a provocar redução dos preços.
IHU On-Line – De que forma as manifestações de 2013 tensionaram o lulismo?
André Singer – Olhando para tais fenômenos desde o ponto de vista do presente, Junho de 2013 funcionou como uma espécie de alerta. Agora sabemos que Junho de 2013 foi um primeiro surto de manifestações que na verdade sinalizavam uma insatisfação geral, o que tinha como epicentro as cidades maiores do país. É verdade que se refletiu em cidades médias, mas, sobretudo, nas grandes cidades, a começar por São Paulo e Rio de Janeiro.
Aquelas manifestações, pelo modo como emergiram, foram muito confusas. Pegaram setores de classe média e setores daquilo que eu chamo de nova classe trabalhadora. O subproletariado ficou de fora. Em seguida, os índices de popularidade da presidente Dilma caíram muito, como também caíram dos outros governos, estaduais e municipais. O que significa que havia ali uma espécie de insatisfação geral.
A presidente Dilma conseguiu, lentamente, recuperar parte do apoio que havia subitamente perdido e essa recuperação foi a base por meio da qual ela conseguiu vencer a eleição de 2014. Só que houve uma espécie de adiamento.
Medidas como o Mais Médicos resultaram em uma espécie de crédito de confiança, o que levou a uma campanha eleitoral em que a presidente prometeu a retomada do crescimento e das condições econômicas favoráveis para potencializar esse crédito de confiança. Só que isso não está se dando neste começo de 2015.
Agora junho de 2013 parece se desdobrar em uma rejeição importante ao governo e que caracteriza este momento de dificuldade.
IHU On-Line – Até que ponto a atual polarização política — ricos contra pobres e não entre esquerda e direita — evidenciada nos debates nas redes sociais deriva da perspectiva do lulismo? Que tensionamentos isso gera no posicionamento da esquerda e em outras matrizes ideológicas?
André Singer – Primeiro nós tínhamos um cenário político nitidamente polarizado entre esquerda e direita — entre 1989 e 2002 — e esta polarização traduzia um confronto de classes entre capital e trabalho, com o trabalho representado pelas centrais sindicais e pelo PT. Depois de 2003 essa polarização é esmaecida e vai para o fundo da cena, sendo substituída por um confronto entre ricos e pobres, que é diferente do conflito capital e trabalho, embora tenha relação com ele. Passa a haver mais uma divisão entre camadas “populares” e camadas “ricas”. O PT, que transita de um partido de classe para um partido popular, representa as camadas populares e o PSDB ficou como uma representação ampliada da classe média, ou das camadas ricas. Portanto, passou-se a uma divisão entre opções populares e antipopulares.
Neste momento há um fenômeno novo. A direita está indo para a rua. No período pós-eleitoral de 2014 a direita aparece como uma “direita venezuelizada”. Ela se coloca como se estivesse combatendo um projeto bolivariano, o que não existe no Brasil. O governo lulista não tem nada a ver com o bolivarianismo, a não ser o fato de que faz parte de um mesmo conjunto de experiências de governos de centro-esquerda que existem na América do Sul, desde aproximadamente os anos 2000.
À medida que a direita se posiciona dessa maneira, ela produz uma radicalização e recoloca no cenário um confronto entre esquerda e direita. Hoje a esquerda tem uma expressão própria pequena, pois o PT não expressa nitidamente uma opção de esquerda, mas sim popular. O PT, evidentemente, continua no campo da esquerda, mas a maneira de enfocar os problemas é mais uma forma popular que de esquerda. Eu não saberia dizer como esta nova polarização vai se desenvolver. Mas percebo que a direita pode recolocar uma polarização que estava obscurecida.
IHU On-Line – O lulismo como processo de reforma se esgotou ou ainda tem fôlego? Quais são os limites e as possibilidades?
André Singer – Até agora o lulismo conseguiu resguardar conquistas como o Bolsa Família, que são fundamentais. Mas já há retrocessos, por exemplo, no que diz respeito ao crédito educativo, referindo-se a um dos programas lulistas que compuseram o quadro de combate à pobreza e de alternativas de ascensão. Esse conjunto de reformas está paralisado, à espera do desenvolvimento da crise. A potencialidade do lulismo vai depender da maneira pela qual ele consiga enfrentar a situação. Há questões de natureza econômica que vão determinar a profundidade da crise. Se a crise econômica se aprofundar, as possibilidades de retomada do reformismo fraco ficam mais distantes.
IHU On-Line – Considerando a atual política fazendária da União, a economia nacional parece rezar a cartilha da Escola de Chicago. Como essa dinâmica impacta na cadeia industrial do Brasil? Como compreender a opção pela recessão econômica em detrimento de investimentos no setor industrial, por exemplo?
André Singer – Falarei como cientista político. Foi feita uma campanha eleitoral com a orientação de retomada do crescimento e uma exposição de que o Brasil estaria preparado para isso. Imediatamente após a eleição o que se viu foi o contrário, com o governo buscando um ajuste fiscal que tem toda a cara de política neoliberal. De imediato, isso causará uma recessão econômica.
O impacto que isso tem na indústria parece grande. Cada vez mais ouço falar em desindustrialização. Do ponto de vista político, o governo precisa oferecer alternativas ou horizontes que permitam repactuar o seu esquema de sustentação. O governo deveria propor medidas ou uma perspectiva que permitisse deslumbrar um novo cenário.
IHU On-Line – Tendo em vista nossa conjuntura, que Brasil teremos nos próximos quatro anos?
André Singer – Quando se entra em uma situação de crise, as zonas de indeterminação aumentam significativamente. Será preciso observar como os atores vão se posicionar diante do quadro. Em certo sentido, as situações de crise são mais benéficas para a atuação política. À medida que se tem um enfraquecimento das estruturas, a possibilidade de ação aumenta. Há fatores que não estão sob o controle dos atores brasileiros, por exemplo, “haverá recuperação econômica mundial?”, “a recuperação dos EUA vai se firmar?”, “haverá outro ciclo de crescimento?”. Estas são questões que não há como responder localmente. O que dá para dizer é que entramos em um processo de crise, e o cenário imediato não apresenta solução fácil. Neste contexto, os atores começam a atuar e fazer escolhas múltiplas, influenciando-se reciprocamente. Em situações normais pode-se dizer que vai acontecer isso ou aquilo, mas não temos condições normais.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
André Singer – Vale a pena mencionar que o governo também está diante de uma situação congressual nova, diferente. A Presidência da Câmara e do Senado tem um grau de independência inédito em relação ao Executivo. Isso também é uma fonte de instabilidade que faz a previsão impossível.
Por Ricardo Machado
Nota: A fonte da imagens é, respectivamente, outraspalavras.net e portal.comunique-se.com.br
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Junho 2013 se desdobrou. A sobrevivência do lulismo em jogo. Entrevista especial com André Singer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU