22 Abril 2014
"Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo etsi deus non daretur (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha", afirma o pastor luterano e professor de teologia.
No dia 9 de abril de 1945, morre o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer. Enforcado em um campo de concentração ao lado de seus familiares semanas antes do fim da 2ª Guerra Mundial, o pensador alemão é considerado um dos poucos teólogos mártires do cristianismo. O fato explica-se considerando que a academia, muitas vezes, encerra-se em discussões herméticas. Por sua vez, Bonhoeffer, como aponta Harald Malschitzky “se perguntava pela relação entre fé e vida como ela é e acontece, fato tantas vezes ignorado na teologia acadêmica”.
Malschitzky, autor de um livro sobre o teólogo alemão, relata um breve histórico da vida de Bonhoeffer, sua resistência à Hitler e à sua luta contra a nazificação da igreja. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-line, ele relata como o teólogo insistiu na defesa dos judeus, envolvendo-se até mesmo na emigração clandestina.
"A igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos", expõe Malschitzky. “Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas”. Com parentes e amigos no estado maior do exército alemão, o teólogo infiltrou-se em um grupo para promover a derrubada de Hitler. Suas ações, obviamente não passaram despercebidas ao governo alemão, o que levou, por fim, à sua prisão.
É no cárcere que o teólogo desenvolve boa parte de sua produção mais relevante, articulando momentos de desesperança com o terror vivido com a fé. O pensamento do alemão é uma resposta a uma grande inquietação teológica: como um Deus bondoso pode permitir o sofrimento de seus filhos? Ou ainda, como aquele que é todo-poderoso pode permitir a existência do mal?
Bonhoeffer defendia que deveríamos viver no mundo como se Deus não existisse. Não era uma forma de negar o divino, mas de assumir os destinos do mundo sob nossa própria responsabilidade. Em uma teologia cristocêntrica, onde a cruz tem grande importância simbólica, sustenta: “Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos”.
Harald Malschitzky, 74 anos, é pastor e professor aposentado da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, e foi orientador de estudos na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo. É autor de Dietrich Bonhoeffer - Discípulo, testemunha, mártir (São Leopoldo: Sinodal, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Bonhoeffer é considerado um dos poucos teólogos (acadêmicos) mártires no cristianismo. O que o levou a tal engajamento, que findou em sua execução por enforcamento nas mãos dos nazistas?
Harald Malschitzky - Em uma igreja ortodoxa na cidade de Nürnberg (Alemanha), Bonhoeffer figura entre os ícones ortodoxos. É reconhecido como mártir para além da igreja. Sua trajetória tem diversas raízes. Ele viveu num momento em que um bom segmento da teologia (principalmente protestantes, mas não só) se perguntava pela relação entre fé e vida como ela é e acontece, fato tantas vezes ignorado na teologia acadêmica.
A teologia de Bonhoeffer era radicalmente cristocêntrica. Daí vinha a pergunta pelo significado e papel do Cristo na vida. Sua conclusão: O cristão coloca sua vida a serviço dos outros e a igreja só tem razão de ser se ela está aí para os outros. Ela não tem um fim em si mesma. Outra raiz tem a ver com sua atuação em outros países e em seu engajamento ecumênico. Em 1930 ele fez um intercâmbio com um seminário em Nova York, a partir do qual conheceria as comunidades negras (em tempo de segregação racial), que passaria a frequentar. O canto alegre, os testemunhos, mas principalmente a ligação da fé com a realidade e a esperança de novos tempos aqui e agora, causaram tanto impacto, que o próprio Bonhoeffer classifica o tempo como uma espécie de conversão.
Na mesma época, a Alemanha via a ascensão de Hitler. O parágrafo do arianismo era aplicado também na igreja (pastores e padres de ascendência judia deveriam ser demitidos), a tomada da igreja pelos teuto-cristãos (Deutsche Christen) já se avizinhava, o cerceamento e perseguição aos judeus era crescente. De volta à Alemanha, já em 1933 ele refletia sobre o poder ilimitado de Hitler e os seus riscos. No mesmo ano ele se ocupou diversas vezes com a questão dos judeus. Envolveu-se na criação da Igreja Confessante, coordenou a formação clandestina de pastores, se empenhou no mundo ecumênico para que a igreja estatal alemã não fosse reconhecida, se empenhou em abrir os olhos de outros países para a tormenta no horizonte alemão.
Dentro desse cenário, um enorme empenho teológico cristalizava sempre mais o reconhecimento de que o empenho cristão pelo ser humano pode implicar ações políticas radicais. Em relação à questão dos judeus, por exemplo, ele foi categórico: “Somente tem direito a cantar gregoriano aquele que defender os judeus”. Ele mesmo se envolveu na emigração clandestina de um grupo de judeus. Em relação à loucura de Hitler, uma conclusão: A igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos. Era preciso arrancar do volante do carro aquele que machuca e mata. Com parentes e amigos no estado maior do exército alemão, ele se infiltrou nesse grupo para promover a derrubada de Hitler.
Ele era uma espécie de agente da causa no mundo ecumênico. É claro que suas ações e seus passos eram vigiados. Sucessivamente foram cassados os seus campos de atuação na universidade, a publicação de seus livros, o seminário clandestino de Finkelwalde (que seria reaberto na Pomerânia). Em 1943 ele foi preso, passou por algumas prisões e campos de concentração até que, em 9 de abril de 1945, foi executado, com outras pessoas do grupo, em Flossenbürg, no sul da Alemanha.
IHU On-Line - Que teologia Bonhoeffer desenvolveu a partir da sua vivência nos campos de concentração? Que entendimento ele teve de Deus diante dos horrores que envolveram o nazismo?
Harald Malschitzky - É interessante que Bonhoeffer não desenvolveu uma teologia específica na prisão. As centenas de cartas (publicadas em Resistência e Submissão) revelam uma enorme confiança em Deus e a clareza de que cristãos e igreja só têm razão de existir em função dos outros. Parte de sua Ética, por exemplo, publicada de forma fragmentada, foi escrita na prisão, assim como alocuções de casamento e batismo, textos que expressam uma tremenda confiança em Deus.
Orações escritas para outros prisioneiros dão conta de uma fé enorme em um Deus que cuida de sua criatura. Não que não houvesse também dúvidas e questionamentos. A poesia Quem sou eu expressa bem as duas coisas. Uma oração escrita para outros presos mostra como convivem a fraqueza e a certeza da ajuda de Deus:
Dentro de mim está escuro, mas em ti há luz/
eu estou só, mas tu não me abandonas/
eu estou desanimado, mas em ti há auxílio/eu estou inquieto, mas em ti há paz/
em mim há amargura, mas em ti há paciência/
não entendo os teus caminhos, mas tu conheces o caminho certo para mim.
(Escrita em novembro de 1943).
Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo etsi deus non daretur (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha. Aqui uma razão a mais para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão. É ilustrativo que nos campos de concentração ele passava muito tempo conversando com funcionários e guardas que o vigiavam, porque, antes de tudo, eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que acontecia. Os horrores do nazismo (e outros tantos) precisam ser debitados na conta do ser humano que se brutaliza e se deixa brutalizar. Humanamente, é quase inconcebível que isso aconteça. Hannah Arendt se dedicou com afinco à reflexão e ao estudo da brutalidade, à banalização do mal, justamente a partir do genocídio levado a cabo pelo regime nazista e de forma especial tendo assistido ao julgamento de Adolf Eichmann.
IHU On-Line - Como se deu a divisão do posicionamento do protestantismo frente à ascensão do nazismo? Qual a importância da Igreja Confessante nesta conjuntura?
Harald Malschitzky - Um grande número de leigos e pastores na igreja evangélica se identificava com o nacional-socialismo. Esses “teuto-cristãos” ou “cristãos alemães” concordavam com as medidas de Hitler com base no parágrafo ariano extensivas à igreja. Uma eleição convocada em última hora, em 1933, deveria eleger um bispo identificado com o nazismo.
Bonhoeffer e outros se empenharam, por meio de uma forte panfletagem, em favor de outro candidato; 70% dos votantes escolheram o candidato da situação, Ludwig Müller. Em seguida Bonhoeffer e seu grupo elaboraram um documento que se tornou conhecido como Confissão de Bethel, que seria a base para a “Confissão de Barmen”, base da Igreja Confessante.
Nesse período Bonhoeffer aceitou o convite para trabalhar por um período em uma comunidade em Londres, mas acompanhava atentamente o desenrolar dos acontecimentos em seu país e em sua igreja tanto por notícias como por visitas a Berlim. Não participou diretamente da elaboração da “Declaração de Barmen”, mas se identificou com seus propósitos. De 29 a 31 de maio de 1934, se reuniu uma assembleia que, em seis pontos, condenou a doutrina dos teuto-cristãos, criando-se oficialmente a Igreja Confessante em oposição à igreja protestante que se identificava com o nazismo. O cerne da declaração e a base da Igreja Confessante estão traduzidos nas seguintes palavras da Confissão de Barmen: “Condenamos à falsa doutrina segundo a qual a igreja pode e deve reconhecer como fonte de sua pregação, além e ao lado da única palavra de Deus, ainda outros acontecimentos e poderes, figuras ou verdades como se fossem revelações de Deus”.
No início a Igreja Confessante era tolerada, mas isso não duraria muito. No mundo ecumênico, Bonhoeffer se empenhou, logo em 1934, no sentido de que a Igreja Confessante fosse reconhecida como única representante legítima do protestantismo da Alemanha. O Conselho Mundial de Igrejas convidara representantes das duas igrejas para uma conferência na Dinamarca, em 1934. Um desafio para a Igreja Confessante, logo de início, foi preparar pastores e pregadores para as comunidades. Eles vinham dos bancos da universidade, sem prática alguma. Foram criados cinco seminários de pregadores, ficando um deles, o da Pomerânia, sob orientação de Bonhoeffer. Ele funcionou primeiro em um lugar à beira do Mar Báltico e logo foi transferido para Finkenwalde.
A Igreja Confessante sempre foi minoria, e não é preciso mencionar que ela e todos os seus passos foram sendo controlados, cerceados e finalmente proibidos. Muitos dos seus integrantes pararam em campos de concentração. Terminada a guerra, em outubro de 1945, cristãos que tinham suas raízes na Igreja Confessante elaboraram e publicaram a Confissão de Culpa de Stuttgart na qual eles assumem culpa, entre outros, por omissão diante do nazismo.
IHU On-Line - O teólogo defendia que deveríamos agir como que em um mundo sem Deus, mas não como forma de negar o divino. Como explicar este pensamento frente ao momento histórico vivido por Bonhoeffer?
Harald Malschitzky - Bonhoeffer achava que o processo de secularização radical iria às últimas consequências. Sua pergunta era como a igreja poderia falar e agir com o mundo secularizado, que não necessariamente negava a Deus, mas que assumia os destinos do mundo sob própria responsabilidade. Um dos pontos-chave na agenda dessa humanidade secularizada deveria ser a paz, única forma de sobrevivência. O papel da igreja universal seria convocar para a paz. Em agosto de 1934, quando já estava claro que Hitler queria guerra, em uma convenção ecumênica na Dinamarca, Bonhoeffer diz: “Como se concretiza a paz? Quem convoca para a paz de forma tal que o mundo o ouça, seja obrigado a ouvir? Somente o grande concílio ecumênico da santa igreja de Cristo de todo o planeta poderá fazê-lo de maneira que o mundo, rangendo os dentes, tenha que ouvir a palavra da paz, e os povos fiquem felizes, porque esta igreja de Cristo arrancará as armas das mãos de seus filhos em nome de Cristo, proibindo-lhes a guerra e proclamando a paz de Cristo a todo este mundo delirante”. Não houve concílio, nem toda a sabedoria e capacidade diplomática e política do ser humano secularizado evitaram a guerra; boa parte de cristãos protestantes e católicos foram a favor da guerra. Todos tiveram que ver e sofrer a fúria do mal matando e destruindo indistintamente.
IHU On-Line - Como compreende, nesse sentido, a reação de Deus frente ao sofrimento de Seu Filho na cruz diante da morte, e como essa reação é também a reação de Deus diante do nosso sofrimento?
Harald Malschitzky - A Bíblia conhece momentos da ausência de Deus. O próprio Cristo sentiu esse abandono na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” Toda a questão do sofrimento vicário do próprio filho de Deus continua em discussão. Como Deus podia concordar com isso? Bonhoeffer, mesmo não compreendendo o seu Deus, enxergava a sua bondosa mão também por detrás do sofrimento. Era sua fé, que o mesmo Deus acompanhava seus filhos e filhas em todos os momentos. Não vamos encontrar em Bonhoeffer a tentativa de explicar isso de forma racional e lógica. Eu pessoalmente confesso que tenho aqui todas as dificuldades. A ausência de Deus por vezes é angustiante. Continuo, porém, na busca de respostas.
IHU On-Line - “Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos”, afirma Bonhoeffer. De que forma reconhecer a existência de um Deus onipotente, ainda que “débil”, abre caminho para o livre arbítrio?
Harald Malschitzky - O ser humano não é marionete de Deus. Ele foi criado com liberdade e recebeu a incumbência de cuidar do mundo e da criação. Segundo o testemunho bíblico, Deus admoesta e procura indicar e corrigir o rumo da humanidade através de pessoas (pensemos na figura dos profetas). O livre arbítrio (que não é tão livre assim) não me parece tão problemático, mas sim a arbitrariedade pura e simples praticada pelo nazismo, mas infelizmente não só por ele. O Cristo em sua debilidade acompanha as pessoas nas suas derrotas, dando força e ânimo para continuar, à revelia de tudo. Sua mensagem, vivida e sofrida é de paz e comunhão e de respeito justamente pelos seres mais debilitados. Sem dúvida, a debilidade tem seus riscos.
IHU On-Line - Como explicar, a partir do pensamento de Bonhoeffer, a atuação divina durante os tempos sombrios da Shoah? Como manter e defender a fé em Deus frente ao massacre de tantas pessoas?
Harald Malschitzky - Bonhoeffer não conheceu o conceito de Shoah, pois este seria aplicado ao genocídio impetrado pelo nazismo somente depois de terminada a guerra. Mas o que estava acontecendo não lhe era desconhecido. A Shoah sem dúvida mexe nos alicerces da fé de qualquer cristão e todos os grandes e pequenos programas de reparação promovidos por povos e igrejas não o mudam. Acho que não se trata de defender a fé em Deus, mas de testemunhá-la para que se encontrem formas de paz duradoura para todos os povos e crenças (ou descrenças!). Este testemunho não nasce em uma fé heroica, mas da debilidade que se limita a dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me na minha falta de fé”.
IHU On-Line - Deseja acrescentar alguma coisa?
Harald Malschitzky - O martírio não era aspiração de Bonhoeffer, embora essa questão já tenha sido levantada. Verdade que ele, em certo momento na prisão, pensou no suicídio, mas não como ato de coragem, e sim porque tinha medo de não suportar as torturas e acabar traindo todo o movimento que queria tirar Hitler do poder. Nos EUA, Bonhoeffer conheceu um teólogo católico, Jean Lassere, pacifista decidido. Num dos diálogos Lassere teria manifestado que ele desejava ser santo. Bonhoeffer se limitou a dizer que seu desejo era “aprender a crer”.
(Por Andriolli Costa)
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A onipotência e a debilidade de Deus na teologia de Bonhoeffer. Entrevista especial com Harald Malschitzky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU