19 Janeiro 2014
“Afinal, qual seria, então, o verdadeiro motivo para essa contínua tensão entre mística e filosofia?”, pergunta o professor.
Fonte: http://bit.ly/1cCQG8t |
“A palavra mística é parte integrante da tradição do pensamento ocidental, da própria história da filosofia e da teologia — mas como mot maudit, palavra maldita. Por parte dos teólogos, o relacionamento com os místicos é, no melhor das vezes, de certa tolerância, pois afinal habitam o templo do mesmo Deus. Entretanto, do lado da filosofia, interpretada como tradição metafísica, nada há que tolerar, pois pertencem a fraternidades distintas: a da ciência e a da religião”, aponta José Carlos Michelazzo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Ao demarcar os marcos da epistemologia ocidental, o entrevistado avança na discussão para compreendermos o saber a partir da mística. “A sabedoria da mística segue o caminho sensível das experiências da despossessão e da dor, da miséria e da compaixão para com a nossa condição humana e ainda o cultivo de uma intimidade não discursiva para com as coisas simples e cotidianas, porque são sempre portadoras da presença direta do divino no mundo; aqui a exaltação focaliza o traço trans-antropocêntrico do homem: o desprendimento, a humildade, a busca da unidade com o todo”, complementa.
Para José Carlos Michelazzo, conhecer alguma coisa é o resultado de uma relação direta com ela, o que implica a presença efetiva da coisa. “Ora, a busca da experiência da imediatidade e unidade do real em sua totalidade é a questão, par excellence, da mística”, sustenta. Muito interessado pela obra de Heidegger, o professor estabelece uma relação entre o pensamento do filósofo alemão e a mística. “É evidente que Heidegger não faz uma simples apropriação de termos da mística, tanto ocidental quanto oriental, como se ele apenas os transpusesse para uma linguagem filosófica. Isso seria um equívoco elementar. Ela é o grande horizonte no interior do qual o filósofo irá estabelecer seu intenso e ininterrupto diálogo crítico com toda a História da filosofia ocidental, desde os pensadores pré-socráticos até Nietzsche, passando por Husserl, por pensadores religiosos e ainda por artistas e poetas.”
José Carlos Michelazzo possui graduação em Filosofia e Psicologia, mestrado em Filosofia pela PUC-SP, doutorado em Filosofia pela UNICAMP e pós-doutorado em Filosofia da Religião pela PUC-SP. É professor de cursos de pós-graduação e especialização e psicoterapeuta, atuando na perspectiva da Análise Existencial (Daseinsanalyse). Autor do livro Do um como princípio ao dois como unidade – Heidegger e a reconstrução ontológica do real (Pinheiros: Editora Annablume, 1999). É membro do Grupo de Pesquisas sobre o Pensamento Japonês desde sua fundação, em 2005. Na área de Filosofia, sua ênfase é em fenomenologia e no pensamento hermenêutico de Martin Heidegger. Sua atual linha de pesquisa se orienta para o diálogo entre os pensamentos ocidental (Heidegger) e oriental (Escola de Kyoto), assim como para o estudo comparativo entre a mística de mestre Eckhart e o Zen budismo de Mestre Eihei Dōgen.
Nota: A presente entrevista foi publicada na Revista IHU On-Line, "Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação", no. 435. A edição, nas versões html, pdf e "versão para folhear" pode ser acessada aqui.
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/1kmkBsv |
IHU On-Line - Quais são as tensões que se dão a partir do diálogo entre a filosofia e a mística?
José Carlos Michelazzo - A palavra mística é parte integrante da tradição do pensamento ocidental, da própria história da filosofia e da teologia — mas como mot maudit, palavra maldita.
Por parte dos teólogos, o relacionamento com os místicos é, no melhor das vezes, de certa tolerância, pois afinal habitam o templo do mesmo Deus. Entretanto, do lado da filosofia, interpretada como tradição metafísica, nada há que tolerar, pois pertencem a fraternidades distintas: a da ciência e a da religião. Na verdade, esta intolerância generalizada contra a mística é mais paradigmática do que “classista”. O místico parece falar sobre realidades estranhas, pronunciar sentenças paradoxais, não se sente na obrigação de ter que justificar aquilo que afirma. Numa palavra, aquilo de que fala a mística, a sua experiência, a sua verdade, parece não caber dentro da linguagem discursiva guiada pela lógica e pelo princípio de não contradição, alicerces centrais da filosofia. Resta, então, na maior parte das vezes, à palavra maldita nada mais que o seu lado negativo, transformando-se, então, em “mistificação”, ou seja, naquele modo de dizer e interpretar feito de modo falacioso, obscuro, tendencioso e, finalmente, falso. Se observarmos com atenção, o próprio Heidegger não é exceção a esse viés ocidental. Ele geralmente toma a palavra mística no sentido negativo e só raramente no sentido positivo.
Afinal, qual seria, então, o verdadeiro motivo para essa contínua tensão entre mística e filosofia? Trata-se, tout court, de “programas” incompatíveis entre ambas. De fato, filosofia e mística, quando comparadas, perseguem sabedorias diferentes, pois percorrem caminhos bem distintos. A da metafísica se apresenta como busca incansável pelo conhecimento permanente por ele dar constância e durabilidade às suas obras nas modalidades de doutrinas, leis, teorias, sistemas, etc.; trata-se de uma exaltação do traço antropocêntrico do homem: autocentração e controle do mundo. A sabedoria da mística segue o caminho sensível das experiências da despossessão e da dor, da miséria e da compaixão para com a nossa condição humana e ainda o cultivo de uma intimidade não discursiva para com as coisas simples e cotidianas, porque são sempre portadoras da presença direta do divino no mundo; aqui a exaltação focaliza o traço trans-antropocêntrico do homem: o desprendimento, a humildade, a busca da unidade com o todo.
IHU On-Line - Como sua pesquisa estabelece a proximidade entre o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger e a mística comparada?
José Carlos Michelazzo - Martin Heidegger é considerado um dos maiores, senão o maior filósofo do século XX. Este prestígio, entretanto, corre paralelo com alguns preconceitos, mal-entendidos e falsas interpretações do seu pensamento. Um desses mal-entendidos é o que se refere ao seu envolvimento com noções, ideias e palavras oriundas do misticismo, sobretudo na segunda etapa do seu pensamento. Por isso são mais numerosos os estudos que aproximam Heidegger do pensamento poético do que do pensamento místico.
O que, via de regra, é admitido entre seus comentadores é que ele toma emprestado palavras ou temas religiosos do misticismo para seus próprios propósitos filosóficos. A mim sempre pareceu um tanto inocente fazer afirmações como esta, fazendo-nos imaginar Heidegger escolhendo palavras ou noções centrais da tradição mística ou da teologia negativa como meros instrumentos ou ferramentas para seu uso pessoal.
Na verdade, palavras como nada, angústia, queda, regresso, vazio, simplicidade, silêncio, repouso, meditação, serenidade, etc. — especialmente caras aos místicos, tanto ocidentais quanto orientais — no meu entender são, para Heidegger, como “alças” de acesso ao pensamento originário do ser. O que por meio delas o filósofo procura expressar é a presença envolvente do real — ou seja, das lebendige Leben, “o elemento vivo da vida” que não se expressa por meio de conceitos. Conhecer alguma coisa é o resultado da relação direta com ela, sem intermediações teóricas, de tal modo que implica a presença efetiva da coisa. Ora, a busca da experiência da imediatidade e unidade do real em sua totalidade é a questão, par excellence, da mística.
Assim, uma questão central de minha primeira pesquisa, hoje publicada pela Editora Annablume, foi investigar como a palavra-chave de Heidegger “copertença” (Zusammengehörigkeit) entre ser e ente e ainda outras pertencentes à tradição mística podem ser tomadas como verdadeiros “pontos de sutura” no tecido do real, devolvendo, desse modo, o traço de unidade originária do pensamento, cindido pelo dualismo metafísico.
É evidente que Heidegger não faz uma simples apropriação de termos da mística, tanto ocidental quanto oriental, como se ele apenas os transpusesse para uma linguagem filosófica. Isso seria um equívoco elementar. Ela é o grande horizonte no interior do qual o filósofo irá estabelecer seu intenso e ininterrupto diálogo crítico com toda a História da filosofia ocidental, desde os pensadores pré-socráticos até Nietzsche, passando por Husserl, por pensadores religiosos e ainda por artistas e poetas.
IHU On-Line - Se a questão da unidade foi o tema de seu primeiro trabalho, qual é a importância do resgate da experiência da totalidade originária na primeira fase do pensamento de Heidegger, tema de seu segundo trabalho?
José Carlos Michelazzo - A pesquisa do tema “ser e totalidade em Heidegger” foi importante por dois motivos: primeiro porque era um período (entre 1915 e 1927) não coberto pela primeira pesquisa, a qual focalizara a maior parte da obra do filósofo após Ser e tempo (Petrópolis: Vozes, 2006) (1927); o segundo foi trabalhar o período inicial de Heidegger que é rico em referências ao problema da mística, na medida em que o seu pensamento está ainda muito próximo da teologia e mais especialmente do pensamento místico de Mestre Eckhart. A questão da totalidade, foco central dessa pesquisa, não é um tema exclusivo de Heidegger, pois todo filósofo, por assim dizer, é uma espécie de “caçador” de totalidades, uma vez que procura apreender o todo do real por meio de um construto teórico por meio do qual procura resolver, no interior de sua edificação, o maior número de problemas referentes a uma determinada região do real ou ao ente em seu todo.
Todavia, a concepção de totalidade à qual o pensamento de Heidegger quer ter acesso é de uma natureza diferente à da metafísica, uma vez que está voltada não somente para a dimensão iluminada do ente no seu todo, mas também para a sua diferença, isto é, sua dimensão finita e privativa, através da qual é explicitado o caráter fático, histórico, incontornável, inesperado, inefável, monstruoso, indeterminado, sem-fundamento, estranho, inaudito, misterioso — do real.
Entretanto, para poder incorporar essa dimensão finita e privativa do ser, segundo Heidegger, o homem terá que desantropologizar o seu pensamento, uma vez que não lhe compete, a partir de sua essência mais originária, justificar racionalmente a sua existência, na medida em que ela é uma dádiva do real que não depende, em última instância, nem da ação nem da vontade humanas. Ora, uma expressão como “desantropologizar o pensamento” coloca em evidência a experiência kenótica da mística, isto é, o processo de desprendimento do caráter ilusório de identidade antropocêntrica do homem como condição indispensável para o acesso à sua natureza mais originária, seja enquanto centelha divina (Eckhart), seja como natureza búdica (Zen).
IHU On-Line - Partindo de um viés místico, como compreender os conceitos heideggerianos centrais de Dasein e Sein-zum-Tode?
José Carlos Michelazzo - É partindo do eixo central de seu pensamento — isto é, a desconstrução da concepção de ser da metafísica que o apreende enquanto um substrato entitativo atemporal e fechado em si mesmo — que Heidegger reinterpretará a essência do homem enquanto relação copertença ao ser. Esse homem agora, diferentemente da concepção moderna de sujeito, se apresenta esvaziado de sua simples autorreferência e da pretensa posse de sua existência, uma vez que ela pertence ao ser em sua unidade e totalidade. Dasein é o termo alemão com o qual Heidegger nomeia essa nova essência de homem.
O Da (aí) do Dasein, não para enfatizar o advérbio que localiza ou fixa o Sein (ser) em algum lugar, mas para mostrar o estado de aberto que coloca “homem-ser” numa correspondência originária, fática e temporal, nos alertando constantemente de que não estamos na existência de modo permanente, mas ao contrário, nela não somos senão transitivos, hóspedes, transeuntes, forasteiros. Essa talvez seja a mais difícil de nossas correspondências com o ser, porque ela nos expõe sem máscaras a nossa finitude, diante da qual nos angustiamos e fugimos, dada a carga que ela representa para nós.
Sein-zum-Tode, ser-para-a-morte em Heidegger não significa, por conseguinte, que existir é estar condenado à morte, mas uma contínua consciência da finitude de nosso existir. Morrer não é uma questão biológica — tentativa que empregamos para objetivar a morte tornando-a banal e espúria —, mas um acontecimento ontológico intrínseco e fundamental de nosso Dasein, ou seja, ele nos mostra um viés, uma tônica da vida, na medida em que banha o horizonte de nossa existência com traços de finitude e contingência. Dispensável parece aqui fazer referência sobre o significado central do morrer no universo da mística, enquanto desmantelamento de uma ilusória permanência do eu como condição para a verdadeira libertação do homem.
IHU On-Line - Em que medida as três possibilidades de construção do humano (a antropocêntrica, a existencial e a numinosa), presentes em sua pesquisa, dialogam com a dimensão do mistério?
José Carlos Michelazzo - Em outra pesquisa pretendi estudar o problema do tempo sob a perspectiva de Heidegger em diálogo com o pensamento oriental, mais especificamente com o de Dōgen, Mestre-Zen japonês do século XIII. A estratégia usada para esse estudo foi a apresentação de três possibilidades de construção do humano, tomadas como maneiras de ser do homem, oriundas de três possíveis horizontes de interpretação do problema do tempo. A primeira construção, a antropológica — que se caracteriza pela estruturação do homem enquanto um eu separado do mundo —, é a que se estabelece a partir de uma primeira interpretação do tempo enquanto simples permanência, tal como a tradição metafísica ocidental sempre interpretou.
A segunda, a existencial — em que se dá um “afrouxamento” na distinção eu-mundo, tal como entende a ontologia fundamental de Heidegger —, se realiza sob uma segunda interpretação, o tempo como finitude ou impermanência relativa. A terceira, a numinosa — em que acontece uma ultrapassagem completa da distinção eu-mundo —, se dá sob uma terceira interpretação do problema do tempo que é a da sua impermanência absoluta.
Assim, o homem antropocêntrico, aquele que acredita na ilusão da posse do tempo, não possui diálogo algum com a dimensão do mistério, uma vez que para ele mistério é algo inexistente, ou “existe” apenas na condição de não ter sido ainda desvendado; aqui temos a habitação do filósofo e do cientista. Quanto ao homem existencial, sua consciência do tempo finito e do ser-para-a-morte só é possível na medida em que ele esteja aberto ao caráter imponderável e misterioso de sua existência; aqui temos a habitação do pensador e do poeta. Por fim, o homem que experimentou a dimensão numinosa não é apenas aquele que dialogou de forma mais intensa com a dimensão do mistério, mas que foi absorvido por ela, em face da morte de seu eu como identidade separada do mundo; aqui temos a habitação do místico e do homem desperto ou iluminado (Buda).
IHU On-Line - Quais foram as descobertas fundamentais da pesquisa que empreendeu sobre o problema do tempo sob a perspectiva do pensamento de Heidegger em diálogo com o pensamento oriental, mais especificamente com o de Dōgen?
José Carlos Michelazzo - Como sabemos, a noção de finitude em Heidegger advém de sua tentativa de interpretar o tempo em um modo mais originário, enquanto ligado à existência concreta do homem. Apenas o homem ek-siste “como” tempo finito — os demais entes existem “no” tempo — e isso significa que a sua existência “salta” para fora, no sentido de que ela não está sob o controle de sua representação, nem ele exerce posse alguma sobre ela. Para o filósofo, esse saltar da existência é determinado pelo caráter ekstático do tempo, constituído pela unidade dos modos do futuro, do passado e do presente. O traço ekstático de cada um destes modos temporais, sempre em unidade com os outros dois, é o que provoca o saltar da existência, permitindo, desse modo, ao homem transcender, isto é, ter consciência do mundo, da morte, das oportunidades passadas ou vindouras que o constrangem a realizar suas possibilidades como ser humano. Dentre os três modos temporais, o futuro é o que tem primazia sobre os outros dois, uma vez que, para Heidegger, a existência chega até nós pelo futuro e vai para o passado, diferentemente da metafísica que dá primazia ao passado, pelo qual somos “empurrados” para o futuro.
Pelo caráter cosmológico da mente desperta, não encontramos no Mestre Zen os dois traços centrais do tempo presentes no pensamento de Heidegger: o tempo como uma experiência exclusivamente humana e a primazia do horizonte ekstático do futuro. Para o mestre Zen, nem a existência, nem o tempo são exclusivamente humanos, mas pertencem a todos os seres cônscios, aqueles seres vivos que possuem alguma forma de consciência. Contrariamente ao primado do futuro, tal como entendido por Heidegger, Dōgen entende que a mente desperta apreende as coisas em um presente pleno, absoluto, que em nada se aproxima do nunc stans da metafísica, o simples agora ou a imobilidade do momento presente. Ao contrário, é um presente absoluto porque é aberto simultaneamente nos três modos do tempo (passado, presente e futuro), ou seja, nenhum deles tem primazia sobre os outros dois, mas os três, conjuntamente, formam uma unidade total de abertura. Poderíamos dizer, aproximadamente, que o presente absoluto não é o presente que conhecemos separado dos outros dois, mas uma presença plena, ampla, dilatada, a ponto de englobar o futuro e o passado.
IHU On-Line - Em que sentido o pensar, o poetar e o silenciar são horizontes em direção ao habitar numinoso?
José Carlos Michelazzo - Aqui também diz respeito à caracterização das construções existencial e numinosa, com ênfase, porém, ao problema da linguagem. Como dissemos, os construtores da habitação existencial são o pensador e o poeta, e Heidegger afirma que o pensador diz o ser, o poeta nomeia ou canta o sagrado. E o místico? Heidegger nada afirma sobre isso. Entretanto, em sua Carta sobre o humanismo (1947), o filósofo nos acena para uma terceira construção, além da do pensador e da do poeta. Diz ele: “Somente a partir da verdade do ser (Sein) deixa-se pensar a essência do sagrado (Heilige). E somente a partir da essência do sagrado deve ser pensada a essência da deidade (Gottheit). E, finalmente, somente na luz da essência da divindade pode ser pensado e dito o que deve nomear a palavra ‘Deus’ (Gott)”. O que nos surpreende nesta sentença de Heidegger é ele admitir a existência de um âmbito ainda mais recuado, situado para além dos âmbitos do ser e do sagrado e, para nomear esse âmbito, ele faz uso da palavra-chave do místico Eckhart — “deidade” (Gottheit). Nessa perspectiva, Heidegger nos indica que o âmbito do numinoso é o mais recuado dos três e que os dois anteriores servem como degraus de escada de acesso.
Para Eckhart, Gottheit é um entendimento do divino extremamente ousado para um místico medieval, pois significa a origem, o fundo sem fundo donde brota Gott, o Deus cristão, pai, criador, que se relaciona com as criaturas e recebendo diversos nomes segundo a experiência histórica que o homem tem do divino. Com essa dupla concepção, Eckhart se permite ir além da representação cristã do Deus criador, própria de sua tarefa de pregador, em proveito de uma relação mais direta, íntima e pessoal com a deidade, tal como deseja todo místico.
Se pensar e poetar representam as linguagens do pensador e do poeta, a linguagem do místico recebe uma indicação advinda de seu próprio nome. Com efeito, mystikós é um adjetivo nascido da palavra mystérion e que, por sua vez, vem do verbo myo, que possui os significados de cerrar-se, de estar como a boca ou os olhos cerrados, estar silencioso. Silenciar diante do mistério é, por conseguinte, a linguagem do místico à medida que está com a boca e os olhos cerrados, cujo propósito é o de proteger e guardar o silêncio diante do mysterium magnum do numinoso. Ali onde o místico só pode chegar após a experiência do desprendimento (Abgeschiedenheit) das imagens consoladoras de um eu voluntarioso e da desdivinização (Entgötterung) enquanto o abandono das representações tranquilizadoras de Deus para que, dessa forma, possa aceitar a prova do deserto e da noite escura.
IHU On-Line - Existe uma passagem direta ou uma sequência natural nesse alinhamento constituído pelo pensamento, pela poesia e pela mística?
José Carlos Michelazzo - Aqui uma pergunta se impõe: por que Heidegger não tematiza o terceiro âmbito que se ocuparia com o divino, nem indica a sua figura humana exemplar? Um primeiro motivo, talvez, fosse o risco de ser tomado por um pensador religioso. Outra hipótese, a mais provável, talvez fosse o fato de Heidegger saber ou ao menos suspeitar que a “porta” para o âmbito do numinoso não dá passagem; na verdade, a porta se abre para outro abismo. Um abismo, entretanto, diferente daquele anterior, apontado por ele mesmo ao dizer que entre a ciência e o pensamento não há passagem e apenas através de um salto poderia ser realizada a transposição entre a primeira e o segundo. Aqui vemos uma situação análoga, o aparecimento de uma nova ruptura entre o “pensamento” da construção existencial e o “não pensamento” da experiência numinosa, mas com uma diferença, esse segundo salto não é para transpor o abismo, pois o numinoso não fica do outro lado, mas no seu próprio interior, e a única forma de chegar até ele é saltando dentro do abismo. E para onde este salto nos conduz não é só em direção das profundezas do abismo, mas também para uma região totalmente diversa daquela em que se habitam o pensador e o poeta.
Que região é essa? É a região do numinoso, denominada de Deidade por Eckhart e de Vacuidade pelo Budismo Zen. Entretanto, para saltar dentro do segundo abismo, é necessária uma experiência-limite de ruptura por meio da qual se dá a completa dissolução de nossa identidade racional e antropocêntrica comandada por um eu pessoal e empírico separado do real (dualidade) e interpretado como centro do mundo (antropocentralidade). Uma dissolução que também inclui os resquícios de dualidade e de antropocentralidade que subsistem na linguagem discursiva que sustenta o pensamento que diz o ser e a poesia que nomeia o sagrado, tal como interpretados por Heidegger. Em última instância, uma dissolução de qualquer forma de cristalização por entendê-las como ilusórias — seja na tradição ocidental em que as criaturas separadas de Deus são um puro nada (Eckhart); seja na tradição do Zen budismo em que todos os fenômenos são vistos como transitórios e vazios (Dōgen).
IHU On-Line - Em que medida é possível tecer aproximações entre Shizuteru Ueda, filósofo japonês da terceira geração da Escola de Kyoto, e o pensamento de Mestre Eckhart?
José Carlos Michelazzo - Ueda é considerado um grande ou um dos maiores estudiosos orientais do pensamento de Eckhart. Na verdade, todos os grandes representantes da Escola de Kyoto acreditam que o maior interlocutor ocidental com o Zen budismo, mais ainda que Heidegger, é a mística de Eckhart, que era tido por Daisetzu Suzuki como “o mais oriental dos cristãos”. Ueda entende que a fórmula “é preciso morrer para despertar para a vida” é o fundamento de toda existência religiosa. Todavia, Eckhart radicaliza esta atitude recorrendo ao motivo do nascimento de Deus na alma, que pertence à grande tradição da mística cristã. Deus gera seu filho na alma do homem que renunciou a si mesmo e que morreu para egoidade (Ich-heit). Essa alma desprendida se deixa renascer através da vida de Deus, como vida de Deus. O ressuscitar é ao mesmo tempo o acontecimento da encarnação, em que Deus se torna homem; no respectivo homem assim como neste homem. No renascer como filho único de Deus, cada homem particular se torna igual a Cristo, alcança a redenção direta e vive em uma unidade viva e concreta com o Deus vivo. Para Ueda, essa perspectiva de Eckhart — que rompe com a ortodoxia cristã que interpreta a figura de Cristo como mediador da redenção — tem consideráveis elementos em comum com aspectos fundamentais do Budismo Mahayana, segundo o qual o homem que se tornou consciente de seu verdadeiro si-mesmo e o seu despertar búdico dizem de um mesmo acontecimento.
IHU On-Line - Qual a importância da mística para as religiões e para a filosofia hoje?
José Carlos Michelazzo - No que tange à importância da mística para a religião, talvez seja oportuno deixar a palavra com Keiji Nishitani, outro grande expoente da Escola de Kyoto, cuja questão central de sua obra é o problema do niilismo moderno. Para o filósofo japonês, o longo período de dominação da tradição racionalista grega e cristã da civilização ocidental redundou, por um lado, em uma concentração de um poder tecnológico incalculável nas mãos do homem e, por outro, conduziu-o para o niilismo, cujos sintomas principais são o colapso da tradição, o fim da filosofia e a perda de um centro religioso. E o diagnóstico de Nishitani é surpreendente: “eu estou convencido de que o problema do niilismo está na base da mútua aversão entre religião e ciência”. Vejamos como ele se explica.
Para o filósofo, essa condição de mútua aversão entre ciência e religião tradicional — e que, na época atual, é de subserviência da segunda em relação à primeira — mostra que ambas têm algo em comum e que, em última instância, as duas têm raízes comuns, tratando-se, apenas, de uma espécie de luta recíproca para deter o poder, com vistas a uma vontade de domínio. Tal vontade de domínio nasce da visão dualista — presente no pensamento ocidental desde a época da antiguidade grega, mas consolidada no início de sua modernidade com Descartes — que sustenta a visão tanto da ciência quanto da religião: no caso da ciência, o mundo (res extensa) é separado do homem (res cogitans); no caso da religião, a realidade suprema (Deus) é separada do homem (criatura). Em ambos aparece um empenho do homem em conquistar a outra parte: seja no esforço do homem para submeter o real à sua vontade (ciência); seja na tentativa do homem em encontrar a salvação por meio de uma dependência de Deus e da vontade divina (religião). E em ambos também o homem padece de uma solidão cósmica, prisioneiro de seu próprio egocentrismo.
Segundo Nishitani, desde o século XIX diversas tendências filosóficas encabeçadas por Kierkegaard, Nietzsche, Husserl e Heidegger têm questionado radicalmente esse modo tradicional do homem de se relacionar com o mundo. Entretanto, é na distinção eckhartiana entre Deus e Deidade que Nishitani vê um modelo de ultrapassagem do clássico dualismo entre teísmo e ateísmo, pois para o místico renano a essência de Deus é livre de toda forma e de toda imagem para se tornar “nada”, que ele denomina de deserto da Deidade. A originalidade dessa doutrina está no entendimento de que a essência de Deus está em um ponto para além do Deus pessoal que está acima e em oposição às coisas criadas. Por conseguinte, somente superando o dualismo entre o si-mesmo e o todo do real que a milenar e mútua aversão entre religião e ciência poderá ser dissolvida e o homem romperá com sua solidão cósmica para ser o que ele verdadeiramente é, ser uno com o todo.
No que tange à filosofia, acreditamos que já nos referimos o suficiente sobre a importância de mística em relação às questões filosóficas. Safranski, um dos biógrafos de Heidegger, diz que a grande paixão do filósofo da Floresta Negra não era responder, mas perguntar. E a isso que o filósofo perguntou sem obter resposta, ao longo de mais de seis décadas de pensamento, ele chamou “ser”. Com o seu Seinsdenken, o pensamento do ser, Heidegger desconstrói a certeza do Cogito, atracado a um ego cognoscente, explorador e predador do mundo, tomado como algo exterior. Desconstruir, no entanto, não é mero destruir, e sim abrir espaço para resgatar uma essência de homem mais originária que seja capaz de estabelecer uma relação de escuta com um centro totalmente outro que ele mesmo, que o coloca numa outra disposição, que é a do cuidado e da responsabilidade para consigo mesmo e demais entes. Ora, essa relação de escuta a algo totalmente outro surge das nascentes do pensamento místico. Para este algo totalmente outro, entende Heidegger, só é possível indagar sem esperar pela resposta, uma vez que fala da impossibilidade de qualquer apreensão ou determinação do nomen ineffabile da essência de tudo que é, recolhida e protegida no mysterium magnum.
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Realidade e mística, uma leitura a partir da Filosofia. Entrevista especial com José Carlos Michelazzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU