04 Mai 2013
A pós-modernidade exalta a autonomia e atribui caráter absoluto ao sujeito, que transfere essa prerrogativa à razão. Contudo, pondera Frei Carlos Josaphat, é ingênuo “jogar pedras” nesse mundo. É preciso atentar ao Concílio Vaticano II, que conferiu valor à autonomia em diferentes aspectos.
“O ‘Reino de Deus’, sobretudo aproximado da expressão ética do ‘Reino dos fins’ dá uma atualidade intensa, quase se diria incandescente, ao desafio ético na Igreja e na sociedade, envolvidas no contexto provocante da pós-modernidade”. A reflexão é do Frei Carlos Josaphat, na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail. E acrescenta: “a volta evangélica à contemplação e ao culto de Deus Amor foi a opção do Concílio Vaticano II para propor e viabilizar o paradigma de uma Igreja da comunhão, da participação, do diálogo, da colegialidade, do ecumenismo entre cristãos e com todas as religiões. É uma Igreja de serviço à humanidade e de compromisso com uma civilização de solidariedade e de paz. Na sua autonomia e na sua consciência, fiéis e pastores, por ocasião do jubileu conciliar, hão de se sentir suave e irresistivelmente intimados a assumir o Vaticano II como o carisma comunitário levando toda a Igreja ao encontro com a humanidade pós-moderna”.
Segundo Frei Josaphat, “a predominância do sistema econômico atrelando a si os outros sistemas não submete diretamente o mundo na imoralidade, mas tende a sujeitá-lo à amoralidade. Longe dos ‘Reinos de fins’ (Kant), de uma motivação de amor gratuito, desinteressado, de dom e de serviço (na perspectiva do Evangelho), o economismo sistêmico estabelece e torna bem aceito o imperialismo do interesse, do egoísmo e mesmo da egolatria individual, corporativa e social”. Porém, o religioso ressalta que se trata de um “exagero e engano identificar a pós-modernidade com a corrupção do mundo globalizado. Há uma aliança que será necessária e mesmo urgente desfazer”.
Frei Carlos Josaphat, da ordem dos dominicanos, é professor da Escola Dominicana de Teologia – EDT, de São Paulo, desde 1994, do Instituto Teológico de São Paulo – Itesp, da Pontifícia Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade de Minas Gerais, dentre outras. Além de diversas obras publicadas na Europa, é autor de inúmeras obras no Brasil, das quais destacamos as mais recentes, como Evangelho e revolução social (São Paulo: Loyola, 2002, reedição de aniversário dos 40 anos da obra), Evangelho e diálogo inter-religioso (São Paulo: Loyola, 2003), Falar de Deus e com Deus hoje (São Paulo: Paulus, 2004), Ética e mídia: Liberdade, responsabilidade e sistema (São Paulo: Paulinas, 2006), Frei Bartolomeu de Las Casas: Espiritualidade contemplativa e militante (São Paulo: Paulinas, 2008) e Ética mundial: Esperança da humanidade globalizada (Petrópolis: Vozes, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se imbricam autonomia e liberdade na pós-modernidade?
Carlos Josaphat – A dimensão ética da pós-modernidade fica por vezes na penumbra. Ou é objeto de condenações generalizadas. É oportuno refletir de maneira imparcial sobre o tema. A um primeiro olhar, a pós-modernidade se afirma qual ponta de um processo de ruptura com a tradição e mesmo com toda normatividade objetiva, vendo nelas formas asfixiantes impostas ao indivíduo. Ela retoma e coroa o movimento de emancipação, inaugurado na Renascença e reforçado pelas vagas sucessivas de modernidade. E culmina paradoxalmente em um absoluto normativo, que é a exigência radical de relatividade. A linguagem mais típica dessa atitude da pura e total liberdade aponta então para um horizonte infinito e transcendente. O sujeito que proclama: “sou o único senhor de mim mesmo. E, de meu corpo, do meu sexo, de meu visual, faço o que me parece certo, ou melhor. Ou simplesmente o que eu quero como afirmação do meu livre querer”. O mundo há de ser o universo da liberdade.
Assim, em termos éticos, apos Kant , Nietzsche , Heidegger , e mais em companhia de Sartre , se evocam em formas concretas, sem que sejam nomeados os valores de liberdade, autonomia e autenticidade, sempre destacados em suas dimensões subjetivas. A autenticidade emerge como o valor dos valores, a plena realização da subjetividade.
É a sinceridade total, o primeiro e único mandamento apregoado pela guarda avançada da pós-modernidade. Caracteriza-se qual estrita e absoluta fidelidade à experiência de felicidade, gozada, aprovada e apregoada pelo sujeito aqui e agora. Ele será plenamente autônomo, buscando, encontrando e seguindo as indicações de sua própria experiência e de eventuais experiências similares. Esses encontros de atitudes de subjetividade levam a certa forma coletiva de objetividade, como se vê, por exemplo, no movimento amplo e crescente de prática e defesa da homossexualidade, nestes últimos decênios.
É uma autonomia radical, na medida em que o sujeito cria as normas, simplesmente trilhando o seu caminho. Por isso, quando se tenta uma análise desse comportamento vivido, melhor se diria que as normas e os valores, que elas implicam, não vêm em geral formuladas, mas estão contidas no próprio caminho escolhido e seguido pelo próprio sujeito. Na base da autenticidade e da autonomia está igualmente postulada a liberdade total e absoluta.
Jogo de consciências
Como Sartre bem mostrou (no seu opúsculo mais acessível O existencialismo é um humanismo, 1946), esse apelo exclusivo ao individualismo não leva ao solipsismo, pois haverá numerosos encontros de parceiros, pela coincidência de suas apostas nesses mesmos valores. Em todos os setores da sociedade tecnológica surgem movimentos corporativos que bem se entendem, ao menos na necessidade de enfrentar o mundo que aí está, entravado de redes e mais redes de legalismo a abater.
A situação atual ainda guarda algo de semelhante ao mundo sartriano da “guerra suja”, da resistência aos ocupantes e aos resquícios de totalitarismo que era necessário combater no imediato após guerra. Na falta de um governo democrático e de outros meios pacíficos, os partidários da resistência chegavam a optar pela coragem de liquidar membros ou esquadrões da polícia política ou do exército nazista.
Esses casos extremos têm hoje similares mais amplos, mais destrutivos e mortíferos, ativados e motivados por consciências fechadas à consideração de valores objetivos, exaltando a grandeza dos próprios riscos e dos seus parceiros de valentia. As formas dessas façanhas de violência, tornadas operacionais por esses protagonistas, constituem os únicos valores (subjetivos) no jogo individual e corporativo de suas consciências.
IHU On-Line – Em que medida a singularidade das consciências e a especificidade das tradições culturais podem convergir para um agir autônomo em termos kantianos?
Carlos Josaphat – A questão aborda o aspecto positivo, certo projeto de reconciliação, levando em conta e confrontando dados tradicionais, eventualmente cristãos, com qualidades e aspectos éticos presentes nas consciências do conjunto da pós-modernidade. Com efeito, pode-se e deve-se começar por reconhecer algo bastante autêntico na atitude primordial que vislumbramos na pós-modernidade, apreendida como tendência histórica geral. É o primado do sujeito, considerado e enaltecido em sua autonomia, em sua consciência e sua liberdade. A reivindicação de uma dignidade humana, adulta pela autonomia da pessoa se afirmara como atitude do maior valor ético, na aurora da modernidade, no grande movimento crítico e criativo que era ou se denominava Renascença.
A tradição moral e religiosa que se impugnava como contrária à Dignitas hominis, à “dignidade da pessoa humana” se considerava como cristã, ensinada e garantida pela Igreja e se dando mesmo como evangélica. Na realidade, essa tradição era ressentida por boa parte da população e denunciada com vigor e inteligência pelas novas elites culturais. Pois estas se sentiam tocadas e machucadas pelo sistema legal e repressivo, essa ponta aguçada do ortodoxismo religioso e da ordem moral e cívica, um e outra impostos pelo poder absoluto, religioso e civil, que desde séculos andavam de mãos dadas.
Abatido esse poder absoluto, com suas redes inquisitoriais, torna-se necessário e mesmo urgente que os valores subjetivos da liberdade e da autonomia possam penetrar e iluminar as inteligências e guiar as consciências, sem resvalar em outros modelos de dominação ou manipulação que passarão a parasitar a sociedade pós-moderna. Bem se poderia dizer que a ética pessoal e social carece hoje de uma estratégia de liberdade e de inteligência, para discernir e enfrentar a sujeição das mentalidades a formas inferiores de predomínio do imaginário, do egocentrismo passional e tecnologicamente equipado. Pois mil e uma modalidades de sensualidade, de ambições e especulações financeiras, de endeusamento estético do corpo e do sexo, universalizam hoje o que fora apenas inaugurado na Renascença, de mistura com o retorno nada desprezível à cultura greco-romana.
Comunhão de consciências
Mas igualmente hoje a humanidade e as religiões estão maduras para reconhecer: no centro das vagas, já da modernidade e agora da pós-modernidade, há todo um núcleo ético, um feixe ou uma sinergia de valores humanos prezados e enaltecidos na pós-modernidade, embora por ela vividos e defendidos em modelos falhos ou parciais. O que tem ocasionado conflitos de valores, desprovidos da capacidade de convergir e conviver, porque tradicionalmente mal definidos senão distorcidos nas controvérsias. Esta aí o cerne da viabilidade da questão: como “a singularidade das consciências e a especificidade das tradições culturais podem convergir para um agir autônomo em termos kantianos?”
Procurando evitar o risco de simplificar problemas extremamente complexos, convém tentar por em relevo os valores a preservar e os discernimentos indispensáveis, neste momento de imensas ambiguidades.
Com efeito, o essencial “das tradições deveras culturais” vem condensado com felicidade em correntes éticas renovadoras, assumidas no ensino claro e sucinto de Vaticano II . Suas recomendações vêm acompanhadas da insistência de libertar essas “tradições” do caráter heteronômico, que reveste também formalidades pretensamente tradicionais. Isso porque comportam um lado de imposição autoritária, de legalismo jurídico e religioso parasitando sua transmissão pela família, pela educação, pela sociedade, pela Igreja. Por outro lado, há de haver a comunhão das consciências, coesão livre e racional das pessoas, assegurando a dimensão humana da sociedade, bem como a fraternidade profunda e evangélica, que constitui a comunhão da Igreja. Mas as consciências hão de guardar sua “singularidade”, brotando cada uma delas do íntimo do cidadão e do cristo.
IHU On-Line – Quais são os grandes impasses éticos que desafiam não apenas a consciência cristã, mas também a consciência de toda humanidade?
Carlos Josaphat – Nada de mais inoperante, senão ingênuo, do que jogar pedra no mundo moderno ou pós-moderno, denunciando protagonistas ou correntes de inconformados, exorcizando umas tantas quadrilhas que aí estariam empenhadas em corromper a humanidade e disseminar erros e vícios em antagonismo com os valores humanos e evangélicos. Sobretudo depois da derrocada do comunismo, vêm-se ainda com mais clareza o sentido e os rumos seguidos em velocidade vertiginosa pela humanidade atual.
A sociedade tecnológica que puxa essa marcha com grande eficiência se pode entender, à primeira vista, como imenso sistema formado de grandes, médios e pequenos sistemas, tendo na frente o sistema econômico e o comunicacional. Estes inspiram e guiam os demais, os sistemas políticos, jurídicos, educacionais, culturais, artísticos, esportivos. O sistema, na acepção lançada por Ludwig von Bertalanffy desde 1950, aqui aprimorada para servir a análise ética, nada tem de pejorativo ou negativo. Ensina a forma, aperfeiçoada ao extremo, de organização da sociedade moderna para levar adiante todos os setores do progresso da ciência e da técnica, favorecendo e ativando os interesses que motivam e atuam cada um e o conjunto desses setores.
Hegel proclamava que todo real é racional. A natureza é constituída e evolui dentro de uma “lógica viva” (expressão do biologista Jacques Monod). A técnica busca fazer marchar o mundo dentro da lógica da economia. Que se deixe que o sistema e os modelos concretos, sempre progressivos, prossigam em sua lógica do lucro, da concorrência, da dominação do mercado. O sistema visa formar quadros administrativos empenhados em se tornar mais e mais operacionais, articulando todo um conjunto de recursos e técnicas bem organizados para obter objetivos cada vez mais bem determinados e contando com a tecnologia apropriada para avançar sempre na magia de produzir mercadorias e mobilizar consumidores. Este é o sistema econômico, que enquadra, anima e impele os outros sistemas. Estes se devem constituir e marchar adotando o mesmo paradigma de otimização das atividades e dos resultados.
Economismo sistêmico
A predominância do sistema econômico atrelando a si os outros sistemas não submete diretamente o mundo na imoralidade, mas tende a sujeitá-lo à amoralidade. Longe dos “Reinos de fins” (Kant), de uma motivação de amor gratuito, desinteressado, de dom e de serviço (na perspectiva do Evangelho), o economismo sistêmico estabelece e torna bem aceito o imperialismo do interesse, do egoísmo e mesmo da egolatria individual, corporativa e social.
Persistem espaços de relações curtas entre indivíduos, famílias, pequenos grupos. Neles, motivações e atitudes éticas, de bondade, de responsabilidade, de solidariedade, se podem desenvolver. Mas dominam os monstros frios, as grandes empresas, industriais, comerciais, bancárias, que por si mesmas são acumuladoras de poder e de mercado e de toda forma de governo. Nada disso é diabólico. É humano, muitíssimo humano.
É a implantação e a dominação do que Aristóteles e o Evangelho denominam e condenam como a “pleonexia” (Lc 12, 15, por exemplo), a ganância do “sempre mais”. Essa ganância suavemente avassaladora, totalitária toma conta dos apetites de prazer, do luxo da aparência, da moda, do prestígio, do acúmulo das vantagens e prerrogativas de prevalecer sobre os outros. Aí sim, a corrupção serpenteia pelo mundo, inundando a sociedade, a começar pela política, sem deixar de fora as entidades religiosas.
Semelhante orientação que se denuncia como o triunfo do economismo e do consumismo, isto é, a grande máquina montada para produzir coisas e serviços e para criar artificialmente os consumidores, vai ao encontro do que ficou descrito acima como sendo o individualismo ativo, superativo, que caracteriza a pós-modernidade. Seria exagero e engano identificar a pós-modernidade com a corrupção do mundo globalizado. Há uma aliança que será necessária e mesmo urgente desfazer.
IHU On-Line – Em que medida uma fé adulta e consciente constrói pontes com a autonomia dos sujeitos em nosso tempo?
Carlos Josaphat – A questão pode ser encarada sob duplo aspecto: o do ideal, do mundo dos valores, em sua compreensão doutrinal, e o da realidade, das situações a enfrentar. Em si a fé adulta e consciente favorece o encontro com as pessoas, abertas aos valores éticos da autonomia, nos diferentes contextos históricos, enfrentando, no entanto, dificuldades especiais nos dias de hoje. A fé implica atitude de liberdade de quem a pratica, e naqueles e naquelas a quem ela se dirige. No entanto, as autoridades da cristandade, sobretudo em seu centro, priorizam o anúncio e a ortodoxia da fé sem dar o valor correspondente à qualidade de informação e de autonomia em que ela deve ser recebida.
Há, portanto, no cristianismo atual, muitos movimentos e numerosas comunidades de atividade pastoral, missionária, social, as quais se encontram em diálogo com outros movimentos, sociedades e personalidades não cristãs, mas empenhadas em promover os valores e os direitos humanos e em atender às necessidades mais urgentes da população.
Um exemplo bem positivo dessa atitude vem a ser a Campanha da Fraternidade, na medida em que aborda questões de interesse de todo o povo e em relação com a qualidade democrática que deve ter a política.
Ao contrário, as formas de comunicação e a linguagem utilizadas pelo Magistério da Igreja em nosso país, mas, sobretudo, nos documentos emanando do centro da Igreja e endereçados ao mundo inteiro, não visam o diálogo, com pessoas e grupos. Chegam a fornecer informações gerais, marcadas por um tom de autoridade, contribuindo assim para certo isolamento dos fiéis e líderes católicos, dificultando o diálogo, com a faixa mais aberta da sociedade. O que significa um desafio para os católicos dotados de uma fé esclarecida, personalizada, colocada em relação com os problemas de hoje. Não conseguem manter um intercambio profundo e constante com o conjunto da sociedade, sobretudo com o que se pode considerar a ponta do mundo civilizado, os cidadãos e cidadãs, de maior autonomia, animadores ou desejosos de uma ação social mais significativa.
Ética mundial
A necessária estratégia ética nada pode ter de imposição, de recurso ao poder político ou à pressão das forças religiosas. Simplificando, dir-se-ia que o futuro ético da humanidade, o futuro que está nas mãos das religiões e das forças culturais, vem a ser o grande projeto mundial de educação integral, a se efetivar realmente nos sistemas familiares, institucionais e comunicacionais em todos os recantos da terra. É o que vem sendo postulado nos grandes momentos do despertar da consciência da humanidade, em suas atitudes lúcidas de percepção e de confronto com as aspirações e com os desafios da modernidade e da pós-modernidade.
Uns simples exemplos são aqui evocados, os quais, no entanto, são significativos em razão das instâncias de que emergem e da viabilidade de sua convergência por vezes já esboçada. Que se retome e analise a Declaração Universal dos Direitos humanos pela ONU, de 1948. Merece especial atenção o seu prólogo, que aponta para as condições de viabilidade dessa conversão da humanidade no sentido de uma ética mundial. Que se ajuntem a leitura e a consideração ponderada da mensagem fundadora de Vaticano II, condensada na ética fundamental esboçada no limiar da Constituição Gaudium et Spes. Pode parecer surpreendente. Mas a história tem dessas ofertas inesperadas, Para se construir um plano autêntico e viável de educação ética da humanidade, temos o bom começo. Basta acolher e realizar o projeto abrangente e profundo, sem dúvida, único na história da cultura, a pedagogia da liberdade e da autonomia de Paulo Freire.
Como acontece a toda mensagem profética, a pedagogia desse Mestre se revela de uma atualidade mais urgente com o avanço da modernidade que ele visava enfrentar, decifrando-a em seus elementos positivos e negativos de humanidade. Há importantes elementos de convergência profunda neste acordar da consciência da humanidade, na cartilha de ética política da ONU, hoje em parte doutrinalmente prolongada pela Unesco, na Suma teologal e humana do Vaticano II, também apenas em parte acolhido pela Igreja, e na mensagem e no projeto pedagógico de Paulo Freire, que oferecem um caminho de viabilidade para um destino ético e cultural da humanidade.
IHU On-Line – Qual é a concepção do Concílio Vaticano II sobre consciência e autonomia, e como estas estão relacionadas com a fé cristã?
Carlos Josaphat – O Vaticano II elaborou um novo paradigma da ética e o aplicou às questões mais relevantes e aos problemas mais delicados, herdados de um passado de conflitos mal resolvidos e hoje relacionados com desafios atuais, imensamente acrescidos. O Concílio pede criatividade para tornar viáveis as soluções que não se podem adiar com o risco de suicídio da civilização, senão da humanidade. Nesse paradigma conciliar da derradeira esperança se integraram e harmonizaram os valores cristãos, mais ou menos articulados até então à prática e à doutrina da cristandade. O Vaticano II propõe a total abrangência dos valores em sua dimensão humana e sua inspiração evangélica.
A consciência recebe um relevo todo especial na ética fundamental que o Concílio propõe logo no limiar da Constituição Gaudium et Spes (cf. Constituição citada, n.16). A tradicional teologia moral, destinada a servir de guia aos confessores na administração do sacramento da penitência, era fundamentalmente marcada por um aspecto legalista. A consciência era encarada como a instância de discernimento do lícito e do interdito. Ativavam-se considerações sobre os mandamentos e os pecados, sobre as formas e os graus de culpabilidade e os caminhos de uma nova vida.
O Vaticano II alarga e aprofunda a visão humana e evangélica da consciência, com o intento de fazer dela o instrumento apropriado, não apenas da orientação da vida cristã, mas muito especialmente um ponto de encontro entre os diferentes protagonistas da ética cristã ou simplesmente humana. Era uma grande novidade esse pequeno tratado da consciência para o qual colaboraram mestres eminentes da teologia moral, em boa hora chamados para assessorar os Padres conciliares.
Ética da autonomia
O tema da autonomia constitui uma novidade total em relação ao ensino eclesiástico anterior e posterior ao Concílio. Estava, sem dúvida implicado, nas noções e práticas da moral católica pré-conciliar. Foi muito desenvolvida, não sob o ângulo ético, mas apologético nas controvérsias eclesiológicas, desde o século XIV ao século XIX. Nelas, as autoridades e os teólogos defensores da Igreja insistiam em sua autonomia e mesmo em sua superioridade nas relações com as nações com que estava em litígio.
Essa compreensão parcial, até então apenas conotada em sua dimensão ética e por vezes obscurecida no contexto e no teor, seja de uma moral penitencial, seja de uma eclesiologia polêmica, agora, na Constituição Gaudium et spes, vem superada pela elaboração ampla e profunda de uma ética dos valores. A Igreja se vê enriquecida com uma ética da autonomia, desdobrando-se qual ética da consciência, da inteligência e da liberdade, da responsabilidade e da solidariedade. É uma ética pessoal e social, de conteúdo essencialmente humano, e toda ela elevada pela inspiração evangélica.
Ela abrangerá os domínios dos modernos sistemas familiares, culturais, econômicos, políticos, jurídicos e comunicacionais, atendendo às relações internacionais e aos espinhosos problemas da guerra e da paz, e mesmo de uma organização e de um governo mundiais. Tal é a vasta e bem elaborada ética especial contida nos cinco últimos capítulos que encerram a Constituição Gaudium et spes e todo o labor do Concílio.
Ética cristã e ética secular
Essa visão abrangente da ética fundamental e especial de Vaticano II está na base da doutrina original que ele se empenhou em confiar à Igreja e por ela à humanidade. O tema é abordado em várias passagens da Constituição Gaudium et spes e já na Constituição Lumen gentium. Três aspectos relevantes são esclarecidos:
– A dimensão de base que vem a ser a autonomia do sujeito ético, na qual a ética emerge como a convergência dos valores da consciência, da responsabilidade e da solidariedade.
– A dimensão teológica: a autonomia vem de Deus e se exerce em relação a Deus, o que traduz uma compreensão evangélica da graça que não suprime nem diminui, mas mantem ativa e visa aperfeiçoar a liberdade da criatura.
– A autonomia em sua dimensão objetiva, caracterizando a consistência e a originalidade dos domínios abordados pelo sujeito ético: a autonomia da política, da economia, da sexualidade, das realidades terrestres e do mundo profano. Assim a ética cristã reconhece e assume uma ética humana secular, exigindo um saber científico e técnico, sobretudo em domínios delicados de ecologia, de bioética, de biotecnologia.
IHU On-Line – Qual é a atualidade das concepções do Concílio Vaticano II 50 anos depois de seu advento?
Carlos Josaphat – Sem pretender definir dogmas, menos ainda condenar heresias, como os dois Concílios anteriores, o Vaticano II propõe uma visão doutrinal autêntica e indicações práticas, muitas delas em relação com uma análise da atualidade da Igreja ou do mundo. Pode-se assim distinguir um paradigma doutrinal: uma visão teológica, eclesiológica, antropológica, ética, de valor perene. E por outro lado destacar modelos de atitudes e comportamentos, levando em conta as situações consideradas pelo Concílio como características dos tempos atuais.
No entanto não se vê que haja decisões ligadas particularmente à época do Concílio e que tenham perdido sua atualidade. Assim, muito foi prescrito ou recomendado, e não foi aplicado quanto à necessidade da reforma da Cúria Romana, da colegialidade episcopal no conjunto da Igreja, da formação dos fiéis para a prática da liturgia, do ecumenismo, da participação dos fiéis na evangelização. O que não foi aplicado, não perdeu a atualidade, mas se tornou mais urgente. Este parece um dos significados da renúncia de Bento XVI. Ele se viu e se declarou “fragilizado”, quando as exigências de reforma se tornaram mais prementes.
Sob o ângulo político e social, o mundo dos anos do pós-guerra era bem marcado pelo antagonismo geral dos dois blocos, capitalista e comunista, pelo acúmulo de produção de armas e multiplicação de guerras locais. O Vaticano II tem em vista essa situação dramática. Mas sua mensagem, as fortes determinações que estabelece não são menos atuais com a concentração do mundo em só bloco, economista e consumista. São tanto ou mais atuais hoje do que em 1965, quando se encerrou esse Concílio.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios vividos pela Igreja hoje, em termos de
autonomia e consciência de seus fiéis e clero?
Carlos Josaphat – Esses desafios cresceram pelo fato de o Concílio ter contribuído para abrir os olhos e aguçar as aspirações dos fiéis, ao passo que as autoridades pós-conciliares buscaram antes acalmar os desassossegos do que incentivar em toda a Igreja a busca e a prática de soluções. Vários problemas da maior relevância receberam uma resposta vinda do alto, do centro da Igreja, sem que os fiéis tenham sido informados nem mesmo dos processos seguidos. Os problemas continuando sem solução se agravam com as mudanças dentro e fora da Igreja. Muitos deles passam a ser considerados como tabus. São objetos de intervenções da autoridade suprema da Igreja que edita um preceito ou um interdito, sem suscitar ou preparar uma resposta de convicção, que interiorize o mandamento legal, nos fiéis para isso mais amadurecidos em sua autonomia e sua consciência mais bem informada e formada, depois do advento do Concílio.
Ficou acima assinalado que o Vaticano II pôs em grande relevo o valor da autonomia em seus diferentes aspectos. Era uma novidade total no magistério da Igreja. Na etapa pós-conciliar, a noção de autonomia se eclipsou no magistério oficial da Igreja. O Catecismo da Igreja Católica, tentando sintetizar e atualizar a ética conciliar, nem menciona o termo autonomia nem desenvolve a doutrina correspondente. Por ocasião da sugestão de introduzir o tema na parte do Catecismo que corresponde à ética fundamental do Concílio, foi explicado a teólogos interessados que a exclusão vinha de uma orientação do “alto”.
Esse pormenor introduz a uma das fontes dos desafios. É certa alergia reinante em relação a um paradigma de moral que valorize o sujeito ético no que ele é e em suas qualidades de base. Parece mais seguro que o fiel seja caracterizado como quem obedece, dobrando-se em uma heteronomia sacralizada. Essa situação de escravidão, e não de filiação divina, dentro de uma aliança fundada na intimidade da graça, foi ocasionada por um longo processo de identificação do poder absoluto com o poder divino na Igreja. Esse processo falho só foi posto em plena luz no Concílio Vaticano II. Ele definiu a Igreja como o mistério de amor e de comunhão à semelhança e em união com Deus, Amor universal.
Príncipes, hierarcas e nobiliarcas da igreja
Dessa situação desastrosa, ampla e profundamente respeitada, deriva uma dezena de desafios, sejam eles incrustados no sistema de governo e nos ministérios da Igreja, ou venham difundidos nas reações e no dia a dia dos fiéis. Não cabe aqui discriminar e analisar esse feixe de desafios. Eles fazem corpo com o modelo clerical dos ministros ordenados, incluindo um dever de celibato ligado necessariamente ao sacerdócio na Igreja ocidental. Acrescente-se a incapacidade de rever um passado marcado de preconceitos no que toca o sacerdócio das mulheres. É também muito profunda a crise de todo um sistema penitencial pouco animado pela misericórdia e sem condições de oferecer modelos operacionais de reconciliação para a humanidade dilacerada.
Seria necessário ter a coragem ou o humor de tomar certa distância e olhar para a hierarquia, para o sistema de vida e de promoção da carreira eclesiástica, tendo sempre nas mãos o Evangelho na sua simplicidade, na ética, na espiritualidade e no amor gratuito que ele proclama. O sistema atual de príncipes da Igreja, de hierarcas ou nobiliarcas tinha talvez seu sentido no regime feudal, embora já escandalizasse uma boa parte do pobre povo marginalizado. É claro que a pós-modernidade tem certo gosto pela teatralidade, pelo espetáculo em toda parte, inclusive no sagrado. Mas não dá para tomar a sério o que se aprecia e se vende como turismo religioso, mais ou menos lucrativo.
O Papa Francisco vem convidando a Igreja a fazer confiança, a apostar totalmente no Evangelho. O essencial dessa atitude está não em jogar pedra e denunciar esses apegos a um passado que não é portador de verdadeiras tradições, quando nos transmite modas medievais. A exigência radical e crucial (em referência a Cruz de Cristo) está em que todos, clérigos e leigos, assumam a autonomia, as indicações éticas de uma consciência racional e evangélica, no amor responsável, na inteligência a serviço do amor para iniciar o longo processo de conversão, de aggiornamento evangélico da Igreja.
IHU On-Line – Em que aspectos a autonomia e a consciência podem oferecer subsídios para um agir moral que esteja comprometido com o Reino de Deus, em termos teológicos, e com o Reino dos Fins, em termos filosóficos (kantianos)?
Carlos Josaphat – A questão anterior já inspirou certa antecipação da resposta a essa nova formulação dos desafios ou do desafio global para uma ética da autonomia e da consciência. Em uma primeira aproximação, bem se poderia sintetizar o modelo ético ou os modelos éticos com que a tradição se afirma na Igreja dos tempos modernos se apresenta como sistema objetivo e rigoroso. Elaboram-se códigos de mandamentos e dos pecados que lhes são opostos, bem como se sugerem formas da penitência que deve animar a vida cristã. Em contraste com esse modelo, e por vezes criticando-o, a atitude que caracteriza a modernidade e mais ainda a pós-modernidade enaltece o sujeito que busca em si a autenticidade, em uma ética dos valores subjetivos: de razão, expressão corrente da consciência tradicional, de liberdade e de autonomia. A interrogação vem espontânea: não seria viável uma ética moderna integral, em que, com lucidez e firmeza façam aliança os dois aspectos, dissociados, na história cultural do Ocidente, a subjetividade e a objetividade?
O “Reino de Deus”, sobretudo aproximado da expressão ética do “Reino dos fins” dá uma atualidade intensa, quase se diria incandescente, ao desafio ético na Igreja e na sociedade, envolvidas no contexto provocante da pós-modernidade. No que ela tem de mais original a pós-modernidade leva ao extremo as tendências da modernidade desde a Renascença. A exaltação exclusiva da autonomia coincide com a atribuição do absoluto ao sujeito que transfere essa prerrogativa à sua razão, à sua livre escolha e à sua existência transfigurada pelas suas experiências de felicidade e autenticidade. Nesta sua realização histórica esse modelo ético esvazia a exigência de opção primordial pelos fins, ou da busca total e exclusiva do Reino de Deus.
Paradigma do Reino
Reconhecendo como valores eminentes a consciência, a inteligência, a liberdade sintetizadas na sinergia da autonomia, a mensagem evangélica, desprendida também de suas limitações históricas, não poderia hoje propor e proporcionar um novo paradigma, original pela sua maior valorização da autonomia, e pela maior insistência na afirmação da densidade histórica do Reino, sem atenuar-lhe a transcendência para além da história? Assim, o paradigma do Reino poderia hoje se realizar em uma perfeição superior aos modelos efetuados pela cristandade, menos sensível no passado ao valor primordial da autonomia e de uma subjetividade adequada.
O imperativo bíblico do “amarás” de maneira total e perfeita assumiria a ética da liberdade, da inteligência, da vontade boa que aceita identificar-se com o bem humano, absoluto e universal. Longe de excluir o que a pós-modernidade mais preza: a afetividade erótica, o prazer intenso e partilhado, a conjunção harmoniosa do útil e do agradável, – a ética do Reino de Deus não poderia acolher e abençoar como centro de sua mensagem o sabor e a alegria de viver e de conviver?
A oportunidade aí está: superando o primeiro atrativo do egocentrismo como fonte de felicidade e de autenticidade, a pós-modernidade poderá abrir a porta à esperança cristã, à ética e à espiritualidade do Reino, que exalta e harmoniza a santidade e a felicidade, de que o mesmo Deus é o modelo e a Fonte para as suas criaturas que creem e apostam no seu Amor.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Carlos Josaphat – Creio da maior relevância para a Igreja e para humanidade celebrar com todo realismo os cinco anos do jubileu conciliar. Ano da fé, comemoração do Catecismo da Igreja Católica devem ser meios de valorizar o conjunto do Concilio e a coragem de por às claras o que não foi aplicado. Bem se sabe que decisões do Concílio de Trento (1545-1563), por dezenas e dezenas de anos, ficaram sem se aplicar, sobretudo no que dizia respeito às autoridades e prerrogativas eclesiásticas. Essa recordação nada tem de escusa, mas há de ser apelo à responsabilidade, uma vez que semelhantes omissões têm hoje efeitos mais graves em um mundo em evolução acelerada.
O Vaticano II não se caracteriza pelo elenco de umas tantas medidas na vida dos fiéis ou das comunidades. Ele exige a conversão da Igreja. Começa por uma nova visão da Igreja, da humanidade, de todos os problemas éticos e espirituais. Propõe uma eclesiologia teocêntrica. Neste paradigma teologal, predomina a compreensão evangélica de Deus, de Deus Amor universal que se deu inaugurando a total doação da humanidade ao seu Criador. A visão de um Deus poderoso inspirou e fortaleceu o modelo de uma igreja do poder absoluto sacralizado.
A volta evangélica à contemplação e ao culto de Deus Amor foi a opção do Concílio Vaticano II para propor e viabilizar o paradigma de uma Igreja da comunhão, da participação, do diálogo, da colegialidade, do ecumenismo entre cristãos e com todas as religiões. É uma Igreja de serviço à humanidade e de compromisso com uma civilização de solidariedade e de paz. Na sua autonomia e na sua consciência, fiéis e pastores, por ocasião do jubileu conciliar, hão de se sentir suave e irresistivelmente intimados a assumir o Vaticano II como o carisma comunitário levando toda a Igreja ao encontro com a humanidade pós-moderna.
Nota: A fonte das imagens que ilustram a entrevista é, respectivamente, http://bit.ly/126onLN e http://migre.me/eoEct
Por Márcia Junges
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A atualidade “incandescente” do Reino de Deus e do Reino dos Fins. Entrevista especial com Frei Carlos Josaphat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU