20 Dezembro 2012
“Na maior parte das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs, o atendimento não é padronizado e tampouco ofertado de forma ininterrupta, nas 24 horas, nem aos sábados, domingos e feriados”, informa a assistente social.
Confira a entrevista.
As inovações no combate à violência contra a mulher, produzidas pela Lei Maria da Penha, são “inegáveis no campo político e jurídico, mas sua efetiva aplicação implica em mudanças institucionais nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs e na criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”, assinala Márcia Tavares, assistente social, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação dela, os limites da legislação não decorrem de uma questão de “contradição” da Lei, “mas do Estado brasileiro que, embora assine um pacto de enfrentamento à violência contra as mulheres e crie uma política, ainda não oferece as condições para a sua aplicabilidade”. Membro do Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha – OBSERVE/NEIM, da Universidade Federal da Bahia, Márcia Tavares tem acompanhado a Lei Maria da Penha desde a sua promulgação, há seis anos, e enfatiza também os limites das mulheres diante do conhecimento da lei. Segundo ela, pesquisas revelam que “as mulheres já ouviram falar da Lei Maria da Penha, ou seja, muitas sabem da sua existência, mas desconhecem os direitos que ela lhes assegura”.
Márcia Tavares é graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe, mestre em Sociologia pela mesma instituição e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. É professora-adjunta I do Curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares Mulheres, Gênero e Feminismo – PPGNEIM/UFBA, e vice-coordenadora nacional de pesquisa do Observatório Lei Maria da Penha – Observe.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os principais efeitos da lei Maria da Penha – LMP, seis anos depois de sua promulgação?
Márcia Tavares – Há maior visibilidade em torno da violência contra as mulheres e “já se mete a colher em briga de marido e mulher”. Ou seja, o Estado brasileiro assina um pacto de enfrentamento à violência contra as mulheres, e o Plano Nacional de Políticas para as mulheres coloca como uma das suas metas a consolidação do Observatório da LMP. A Lei Maria da Penha inova ao criar mecanismos específicos para coibir a violência doméstica e familiar, como, por exemplo, a instituição dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar, com competência cível e criminal, mas também inova ao incorporar a perspectiva de gênero na abordagem da desigualdade e violência contra as mulheres, ao apresentar um conceito de família mais amplo, que contempla os diversos arranjos familiares, inclusive respeitando a livre orientação sexual, e que estimula a criação de bancos de dados, de forma que possamos compor uma estatística real da violência contra as mulheres. No entanto, entre intenções e ações, ainda há muito a ser feito.
IHU On-Line – Qual a postura das mulheres diante da Lei Maria da Penha?
Márcia Tavares – As pesquisas do Observatório nos revelam que as mulheres já ouviram falar da Lei Maria da Penha, ou seja, muitas sabem da sua existência, mas desconhecem os direitos que ela lhes assegura. Em uma de nossas idas a uma Delegacia Especial de Atendimento à Mulher - DEAM de Salvador, presenciamos uma mulher que procurava por Dona Maria da Penha, ou seja, não fazia distinção entre a lei e Maria da Penha, uma mulher que esperava encontrar ali para ajudá-la. O desconhecimento da lei também faz com que as mulheres somente associem violência com agressão física, cujas marcas são visíveis.
IHU On-Line – Alguns pesquisadores dizem que as estatísticas de violência contra as mulheres soam como um alerta de que a lei não está sendo aplicada como deveria. Que avaliação faz da aplicabilidade da lei?
Márcia Tavares – Essa questão envolve dois aspectos que devem ser considerados: o aumento das denúncias pode ser devido à maior publicização da Lei, ou seja, as mulheres denunciam, pois acreditam que ao fazê-lo a violência terá fim. Por outro lado, não podemos desconsiderar a assertiva dos pesquisadores com relação a não aplicação desta lei, já que encontramos mulheres que passaram por várias situações de violência, que é recorrente em suas vidas, o que exige estudos cuidadosos a fim de identificarmos o tempo que as mulheres levam para terem acesso à justiça. Isso porque encontramos mulheres que denunciaram seus agressores e esperavam pelo agendamento das audiências por cerca de três a seis meses e até mesmo uma que aguardava havia um ano a medida protetiva.
IHU On-Line – Outra crítica é feita ao Judiciário, que demora para julgar os casos de violência contra a mulher. Quais as razões dessa ineficiência?
Márcia Tavares – As principais razões são a morosidade no atendimento, o número insuficiente de recursos humanos para realizar esse atendimento. No entanto, há outros motivos preocupantes, como a infraestrutura precária das DEAMs, cujas instalações físicas são inadequadas, de difícil acesso para o usuário, além de não oferecerem privacidade no atendimento. Outra questão diz respeito ao pouco ou nenhum conhecimento do corpo funcional sobre a questão de gênero e a violência doméstica e familiar contra as mulheres, suas orientações sendo baseadas no senso comum.
IHU On-Line – Quais as maiores contradições da Lei Maria da Penha?
Márcia Tavares – As inovações produzidas por esse instrumento legal são inegáveis no campo político e jurídico, mas sua efetiva aplicação implica em mudanças institucionais nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs e na criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, assim como a capacitação da equipe de profissionais das DEAMs e Juizados Especiais, a implementação de uma rede serviços para os quais as mulheres em situação de violência doméstica e familiar e seus agressores possam ser encaminhados, e inclusão dessas mulheres em programas assistenciais entre outras medidas. Então, não é uma questão de contradição da lei, mas do Estado brasileiro que, embora assine um pacto de enfrentamento à violência contra as mulheres e crie uma política, ainda não oferece as condições para a sua aplicabilidade, basta observarmos mais atentamente a involução no tocante aos recursos para o programa Prevenção e Enfrentamento à violência contras as mulheres de 2001 a 2010. (Caso se queira acessar, basta entrar no site do CFEMEA e procurar a revista sobre o PPA 2012-2015.)
IHU On-Line – O Observatório Lei Maria da Penha monitora a aplicação da lei em todo o Brasil. É possível traçar um panorama da aplicabilidade da lei nos estados brasileiros?
Márcia Tavares – Na maior parte das DEAMs, o atendimento não é padronizado e tampouco ofertado de forma ininterrupta, nas 24 horas, nem aos sábados, domingos e feriados. Há uma ausência de sistematização de dados; outros registros não são informatizados e mesmo quando as equipes respondem os formulários da SENASP, esses dados não são socializados. Inexistem registros ou qualquer protocolo indicativo de encaminhamento das mulheres a serviços da rede; a articulação com a rede de serviços é frágil e não há acompanhamento do caminho percorrido pelas mulheres. Estes são alguns dos aspectos identificados.
IHU On-Line – O serviço Ligue 180, criado na mesma época da promulgação da lei, recebeu quase três milhões de ligações nos últimos seis anos, sendo 330 mil denúncias de violência. Como interpreta esses dados?
Márcia Tavares – Não pesquisamos o Ligue 180, mas posso supor que a divulgação desse serviço, associada ao anonimato, torna mais confortável a situação para as mulheres desabafarem sobre a violência e, assim, buscar aconselhamento, orientação e encaminhamento para serviços públicos.
IHU On-Line – O que impede o avanço rumo à eliminação da violência contra a mulher?
Márcia Tavares – Se as mudanças produzidas pela Lei Maria da Penha no campo jurídico e político são incontestáveis, ainda há um longo caminho a percorrer no que se refere à mudança cultural: os valores patriarcais continuam enraizados nas mentalidades sociais, inclusive entre as (os) juízas (es), que demonstram pouco empenho para instituir, em caráter de urgência, as medidas de prevenção, proteção e de assistência integral à mulher em situação de violência, direitos assegurados na Lei, sem necessidade de um processo civil ou judicial. Isso acontece porque os valores patriarcais situam a questão da violência no âmbito privado e naturalizam a desigualdade de poder existente no seio familiar. Em resumo, a violência é classificada como um problema menor que pode ser resolvido em casa ou com o apoio de psicólogos e assistentes sociais, de modo a não comprometer o bom andamento dos tribunais. Essa interpretação termina causando a impunidade dos agressores.
IHU On-Line – Quais são os maiores avanços no sentido de evitar a violência contra a mulher?
Márcia Tavares – A criação da Lei Maria da Penha e a criminalização da violência contra as mulheres, a luta incessante dos movimentos feministas e de mulheres, o que tem conferido visibilidade à questão e demandado a criação de políticas públicas de enfrentamento a essa violência.
IHU On-Line – Por outro lado, quais os desafios ainda postos diante dessa questão?
Márcia Tavares – Ampliar o espaço de discussão e publicização da violência contra as mulheres e da própria LMP, imprimir qualidade aos serviços públicos, consolidar a articulação desses serviços com a rede de atendimento e proteção às mulheres, socializar os resultados de pesquisas em diferentes espaços e na mídia impressa e televisiva, promover a capacitação dos aplicadores da lei, garantir que o monitoramento da sua aplicação continue a ser realizado, de modo a identificar tanto as dificuldades e os obstáculos que ainda persistem quanto os avanços que vêm sendo alcançados, entre outras medidas.
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Lei Maria da Penha: um mecanismo para coibir a violência doméstica. Entrevista especial Márcia Tavares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU