06 Setembro 2012
“Se quisermos conservar o Pantanal, deveremos solicitar que os órgãos gestores federais e estaduais tomem uma atitude. Infelizmente, só conseguimos algum resultado através da Justiça”, lamenta a bióloga.
Confira a entrevista.
Das 135 hidrelétricas e Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs previstas para serem construídas no Pantanal nos próximos anos, 44 já estão em operação e são criticadas por pesquisadores e cientistas que estudam o ciclo hidrológico do bioma. Entre eles, destaca-se a bióloga Débora Calheiros (foto abaixo), da Embrapa Pantanal, que desde 2008 faz parte de um grupo de cientistas que questionam os empreendimentos na região pantaneira. Segundo ela, “o maior problema dessas hidrelétricas é a falta de avaliação dos efeitos sinérgicos, ou seja, a somatória de todos os efeitos no processo de dinâmica das águas de cada rio barrado, e no sistema como um todo”. Atualmente os licenciamentos federal e estadual são feitos isoladamente e não consideram a totalidade da bacia hidrográfica, “tal como determina a resolução do Conama de 1985”, esclarece na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.
Além das implicações ambientais, os empreendimentos hidrelétricos também geram uma série de implicações sociais, culturais e econômicas para as populações ribeirinhas que residem no entorno, porque não consideram as atividades tradicionais do Pantanal, como a pesca e a pecuária. “Isso não é considerado, porque as barragens são construídas sem controle e sem planejamento. Elas estão se proliferando de forma aleatória, porque formam um empreendimento interessante do ponto de vista econômico, pois têm baixo risco e alto retorno lucrativo”, assinala.
As sete maiores hidrelétricas do Pantanal já respondem por “70% do potencial hidrelétrico da bacia do Alto Paraguai”, valor considerado elevado, pois “nenhuma bacia pode ser explorada em 100º% do seu potencial hidrelétrico, porque isso representa um risco ambiental para os rios”, escreve.
Débora Calheiros é graduada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP, mestre em Engenharia Civil na área de Hidráulica e Saneamento pela mesma universidade, onde também cursou doutorado em Ciências (Energia Nuclear na Agricultura). É pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, no Pantanal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como vê a ação dos Ministérios Públicos Federal e do Estado do Mato Grosso do Sul, de entrarem com uma ação civil pública para impedir a construção de hidrelétricas na bacia do Alto Paraguai?
Débora Calheiros – É uma ação importante. Os Ministérios Público Federal e Estadual foram os únicos órgãos que responderam prontamente ao questionamento de pesquisadores e cientistas, que estudam a região pantaneira, em relação à construção de Usinas Hidrelétricas – UHS e Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs nos rios do Pantanal.
Há quatro anos estamos discutindo a proliferação de hidrelétricas e PCHs na Bacia do Alto Paraguai, que hoje totalizam 135 empreendimentos, dos quais 44 já estão em operação. Em 2008, realizamos um workshop em Cuiabá, onde técnicos, pesquisadores, cientistas da área ambiental e representantes da sociedade civil da região discutiram a questão das hidrelétricas. A partir dos apontamentos apresentados no evento, elaboramos uma série de recomendações para evitar problemas sérios na dinâmica das águas do Pantanal, porque o que caracteriza o bioma é justamente o ciclo de cheias e secas dos rios. Enviamos essas recomendações para a Agência Nacional de Águas – ANA, para o Ministério do Meio Ambiente, para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, para a Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente e para os demais órgãos envolvidos, como a Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, o Ministério de Minas e Energia, Ibama, Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama, mas só obtivemos resposta do Ministério Público Federal, do Ministério Público Estadual do Mato Grosso do Sul, do Comitê Nacional de Zonas Úmidas, que é o representante da Convenção de Ramsar no Brasil – uma convenção internacional de áreas úmidas da qual o Brasil é signatário.
Também solicitamos ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos a suspensão dos projetos no Pantanal até que se faça um estudo da interferência de cada empreendimento no conjunto, porque cada empreendimento é licenciado separadamente. O Conselho começou a discutir a questão das hidrelétricas, mas não houve avanços.
IHU On-Line – Como é feito o licenciamento para a liberação de novas hidrelétricas ou PCHs? Quais são os principais equívocos deste processo?
Débora Calheiros – Existem os licenciamentos federal e estadual, porque o Pantanal tem rios federais e estaduais. Em todos esses casos, é feito apenas o estudo ambiental do empreendimento isoladamente, sem considerar a bacia hidrográfica de forma geral, como determina a resolução do Conama de 1985. É exatamente neste ponto que os Ministérios Público Federal e Estadual estão se baseando para questionar os empreendimentos.
Então, o problema dessas hidrelétricas é justamente a falta de avaliação dos efeitos sinérgicos, ou seja, a somatória de todos os efeitos no processo de dinâmica das águas de cada rio barrado, e no sistema como um todo. Os empreendimentos também não consideram as atividades econômicas tradicionais do Pantanal, como a pesca, uma atividade extremamente importante para a região em termos socioeconômicos, e tampouco a pecuária tradicional, que também depende do ciclo das águas por conta da renovação das pastagens. Todas as atividades econômicas tradicionais do Pantanal são extremamente dependentes da qualidade ambiental e da dinâmica das águas. Entretanto, isso não é considerado, porque as barragens são construídas sem controle e sem planejamento. Elas estão se proliferando de forma aleatória, porque formam um empreendimento interessante do ponto de vista econômico, pois têm baixo risco e alto retorno lucrativo.
IHU On-Line – Os estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul têm a mesma posição em relação à construção de novas hidrelétricas no Pantanal?
Débora Calheiros – Infelizmente sim. A recomendação dos Ministérios Público Federal e Estadual determinando a paralisação dos empreendimentos no Pantanal foi publicada em junho do ano passado, para que fosse feita uma avaliação conjunta. Mas tanto o Ibama, que licencia empreendimentos em nível federal, como os órgãos estaduais responderam de forma negativa. Estranhamos essas manifestações, porque nos baseamos na Constituição Federal, que considera o Pantanal um patrimônio nacional, precisando ter outro tipo de desenvolvimento e forma de gestão.
IHU On-Line – Como estão distribuídas as 44 hidrelétricas e PCHs no Pantanal?
Débora Calheiros – Segundo o Ministério Público Federal, existem 44 empreendimentos em operação: sete hidrelétricas, e o restante são PCHs. As sete maiores hidrelétricas respondem, segundo a Empresa de Pesquisa Energética – ETE, que está ligada ao Ministério de Minas e Energia, por 70% do potencial hidrelétrico da Bacia do Alto Paraguai. Então, 70% do potencial hidrelétrico do Pantanal já está sendo utilizado. As PCHs, então, serviriam para complementar os outros 30% restantes. Entretanto, nenhuma bacia pode ser explorada em 100º% do seu potencial hidrelétrico, porque isso representa um risco ambiental para os rios. Esse é o grande dilema, porque 70% já é um nível alto de exploração hidrelétrica, comparado à Bacia do Paraná, que é a mais explorada do Brasil em termos energéticos.
A maioria das hidrelétricas e das PCHs estão concentradas no Pantanal Norte, no Mato Grosso, porque o desnível entre o planalto e a planície é maior e, portanto, tem maior potencial hidrelétrico. Esse também é um problema, porque é justamente do Pantanal Norte que vem 75% da água do Pantanal.
IHU On-Line – Quais as justificativas para construir novas PCHs e hidrelétricas no Pantanal? Quais os argumentos para que esse projeto seja viabilizado?
Débora Calheiros – A presidente Dilma diz que a energia é prioridade no Brasil, e as hidrelétricas e PCHs são consideradas energia limpa porque não emitem gás carbônico. Porém, há controvérsias, especialmente por causa dos impactos que causam aos rios. Apenas uma barragem causa impacto em termos de qualidade e quantidade da água.
Os pesquisadores favoráveis às PCHs argumentam que por elas serem fio d’águas, ou seja, pelo fato de não terem um reservatório grande, não irão interferir no fluxo das águas. Mas isso é uma falácia, porque quando se têm várias PCHs, cada uma alterando um pouco o fluxo das águas, há uma alteração na hidrodinâmica dos rios comparada aos impactos causados pela instalação de uma grande hidrelétrica. Em alguns rios, estão previstas a construção de 17 PCHs.
As hidrelétricas estão conectadas pelo Sistema Interligado Nacional. Portanto, cada hidrelétrica solta ou prende a água de acordo com a necessidade de energia do país. Então, se São Paulo precisar de energia e se estiver sobrando energia em alguma hidrelétrica do Mato Grosso, a hidrelétrica irá pulsar as águas de acordo com a necessidade de energia de São Paulo, e não com a hidrodinâmica natural do sistema naquele período do ano. Assim, cada hidrelétrica que tem esse funcionamento totalmente desvinculado do período natural do sistema irá alterar todo o ciclo hidrológico, porque funcionará de modo a responder à necessidade energética do país. Por causa desse sistema, já verificamos a queda da produção pesqueira no Pantanal em rios como o Jauru, no Mato Grosso, onde os pescadores estão à míngua, sem assistência do poder público.
IHU On-Line – A construção dessas hidrelétricas está relacionada com o desenvolvimento de empreendimentos locais?
Débora Calheiros – Não. Elas serão construídas para aproveitamento hidrelétrico, porque atualmente a geração de energia tem um mercado ativo no Brasil. Portanto, como dizem os governantes, os locais que têm potencial hidrelétrico nesse país serão explorados. A Lei de Recursos Hídricos determina claramente que a água é um recurso de usos múltiplos, mas, no Pantanal, o uso mais exigente da água é para a pesca, que garante a sobrevivência dos ribeirinhos e das pessoas mais pobres, que dependem diretamente do ambiente, e não de hidrelétricas.
A pesca é fundamental no Pantanal, mas com a construção das PCHs e hidrelétricas, muitos peixes poderão ser extintos. Os principais peixes de valor econômico, como o pintado, o dourado, o cachara, o curimba, o pacu, são migratórios e serão os primeiros a desaparecer. Vão sobrar só peixes pequenos, que não têm migração de longa distância.
IHU On-Line – As bacias hidrográficas ficarão comprometidas se todas as hidrelétricas previstas forem construídas?
Débora Calheiros – A Bacia do Alto Paraguai já fornece energia para o país, portanto, ela já contribui nesse sentido. A construção de novas hidrelétricas colocará em risco a conservação do Pantanal, que já está prejudicada porque os rios principais estão barrados. A Bacia do Cuiabá, que é a principal do sistema, já tem cinco ou seis grandes hidrelétricas, e já teve seu pulso de inundação alterado. Além disso, ela já está num nível de comprometimento alto não só por causa das barragens, mas também por causa do desmatamento e do uso de agrotóxicos. O desmatamento já está em torno de 60% a 80% na parte alta, e na planície está se expandindo e chega a 15%. Se quisermos conservar o Pantanal, deveremos solicitar que os órgãos gestores federais e estaduais tomem uma atitude. Infelizmente, só conseguimos algum resultado através da Justiça.
IHU On-Line – Você e outros pesquisadores estiveram em Brasília, em uma reunião no Ministério do Meio Ambiente, onde apontaram as implicações das hidrelétricas no Pantanal. Como foi esse encontro?
Débora Calheiros – Havíamos solicitado essa audiência no Ministério do Meio Ambiente há mais de um ano. Finalmente, na semana passada tivemos uma reunião com a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, sobre a questão das hidrelétricas e PCHs. Nós fomos como Rede Pantanal, ou seja, estiveram presentes representantes de 45 ONGs do Brasil, Bolívia e Paraguai, e entregamos a ela um dossiê baseado em pesquisas científicas, requisitando uma decisão do Ministério em relação às hidrelétricas que pretendem construir no Pantanal. Ela se prontificou em realizar um trabalho conjunto entre Agência Nacional de Águas, o Conama e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, para decidir sobre essa questão do Pantanal.
Também estamos tentando votar uma minuta de resolução sobre a suspensão dos licenciamentos no Conselho Nacional dos Recursos Hídricos, mas há muita resistência, porque uma decisão do Conselho Nacional de Recursos Hídricos é uma decisão de lei normativa.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Débora Calheiros – Gostaria de mencionar que seguimos os objetivos ecossistêmicos do milênio, composto por uma junção das pesquisas de mais de mil cientistas do mundo inteiro. Os objetivos ecossistêmicos do milênio partem do princípio de que temos de explorar os recursos naturais de um ecossistema num nível que não abale a conservação do próprio ecossistema. Isso é básico para os pesquisadores de ecologia, mas não o é para o pessoal da área econômica, que só pensa na questão desenvolvimentista, sem considerar as questões ambientais.
Portanto, antes de construir novas hidrelétricas no Pantanal, temos de considerar o Plano Nacional de Recursos Hídricos, os planos estaduais de recursos hídricos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e a relação do Pantanal com a Bolívia e o Paraguai, porque, se alterarmos o ecossistema na parte alta das bacias hidrográficas, esses dois países também serão prejudicados.
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Hidrelétricas comprometem conservação do Pantanal. Entrevista especial com Débora Calheiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU