19 Mai 2012
Girard ao nos desvelar o mecanismo do bode expiatório, oferece a possibilidade de fazer uma autocrítica institucional constante. Isso em termos eclesiásticos talvez seja a contribuição mais interessante, se é que estamos dispostos a fazê-lo, afirma o teólogo inglês.
“Como teólogo, penso que as contribuições de Girard são múltiplas. Uma das maiores é que ele permite uma nova maneira de conceitualizar nossos discursos sobre Deus, tirando qualquer violência dele”, reflete James Alison na entrevista exclusiva que concedeu por telefone à IHU On-Line. Ele analisa a possibilidade de uma fé para além do ressentimento. Em sua opinião, isso é possível “quando você está disposto a ocupar o lugar vitimário sem se pensar heroico, mas simplesmente estando lá sem ter necessidade de se contrastar com ninguém”. E frisa: “Nenhuma catequese ou evangelização que não estejam dispostas a ir ao encontro das pessoas podem ser consideradas algo diferente de uma maquiagem”.
Outro tema da conversa com Alison foi a questão do desejo rivalístico. James explica que o desejo não nasce em nós, mas nos outros. “Assim, nossos desejos são ‘emprestados’”. E pondera: “Nossa capacidade de desejo, como vem do outro, sempre traz consigo o risco de ser um desejo rivalístico”.
James Alison (foto) (Londres, 1959) é teólogo católico, sacerdote e escritor. Com estudos em Oxford, é doutor pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, de Belo Horizonte. É considerado um dos principais expositores da vertente teológica do pensamento de René Girard. Atualmente é Fellow, da Fundação Imitatio, instituição que apoia a divulgação da teoria mimética. Há mais de 15 anos é um dos raros padres e teólogos católicos assumidamente gays. Seu trabalho é respeitado em todo o mundo pelo caminho rigoroso e matizado que tem aberto nesse campo minado da vida eclesiástica. Seus sete livros já foram traduzidos para o espanhol, italiano, francês, holandês e russo. Em português podem ser lidos Uma fé além do ressentimento: fragmentos católicos numa chave gay (São Paulo: É Realizações, 2010 com introdução de João Batista Libânio, SJ) e O pecado original à luz da ressurreição (São Paulo: É Realizações, 2011). Seu trabalho mais recente é A vítima que perdoa – uma introdução para a fe cristá para adultos em doze sessões (www.forgivingvictim.com). A versão em língua inglesa será lançada em texto e vídeo ainda em 2012 com a possibilidade de versões em outros idiomas em andamento. James Alison reside em São Paulo, onde está iniciando uma pastoral católica gay e viaja pelo mundo inteiro dando conferências, palestras e retiros. Textos seus podem ser encontrados no site www.jamesalison.co.uk. Mais detalhes sobre a Fundação Imitatio encontram-se disponíveis no link endereço www.imitatio.org.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o dogma do pecado original sempre foi alvo de críticas?
James Alison – O pecado original tem sido alvo de dois tipos de críticas. A primeira delas é porque vem sendo associado, há muito tempo, com uma visão muito primitiva da antropologia ou das origens humanas em termos de paleontologia, ou seja, aquilo que já se sabe sobre as origens. À medida que as pessoas imaginam que a doutrina do pecado original tem a ver com Adão e Eva no Jardim do Éden (e tudo fica em torno dessa questão) parece que, na mente popular, a doutrina está vinculada a uma visão ultrapassada das origens humanas. Acrescento que, na verdade, trata-se de uma falsa caracterização da doutrina essa associação de Adão e Eva no Jardim. O segundo motivo é porque desde o Iluminismo o pensamento ocidental não tem gostado muito da ideia de que a nossa razão seria, digamos, viciada. O mundo da ilustração gosta de pensar que somos “inocentes”, e que o mal está nos outros, que nascemos inocentes e estruturas sociais ruins fazem com que a vida seja difícil. Procuram, assim, salvar a suposta inocência da humanidade e acham que a doutrina do pecado original é uma acusação provinda de um deus cruel e vingativo. Essa segunda crítica é muito menos ouvida ultimamente. Nos últimos 50 anos ouve-se falar no colapso da mente ilustrada como um crescente entendimento de como somos violentos desde os nossos começos. É muito menos difícil agora pensar os seres humanos como não inocentes do que era há umas cinco décadas atrás.
IHU On-Line – Em que aspectos o pecado original é a base indispensável de toda a doutrina da salvação?
James Alison – Não é a base indispensável, porque a base é de onde começa. O pecado original é uma das conclusões de toda a doutrina da salvação. A doutrina do pecado original é uma visão retrospectiva, ou seja, no centro da fé cristã está a vivência entre nós, da morte, da paixão e da ressurreição de Jesus. A partir da ressurreição como dom do Espírito Santo é que o grupo apostólico começa a poder olhar para trás, pensando que imaginávamos como era a vida e agora podemos encará-la de outra forma. Jesus abriu nossos olhos sobre que tipo de pessoa o ser humano é capaz de ser: um ser humano não fadado à morte, não necessariamente movido pelas violências que estão na base de toda a comunidade humana. A partir desse momento em que se olha retrospectivamente, percebe-se que desde o início da humanidade (e a palavra Adão é uma espécie de atalho para se refletir os começos de toda humanidade) a cultura humana tem sido, de alguma maneira, desenvolvida na morte. Agora estamos entendendo essa cultura como contingente, e não necessária. Não fomos feitos para isso, mas para outra coisa. A doutrina não é a base, mas a visão retrospectiva a partir da ressurreição, e algo necessário. É o sinal de quanta diferença fez Jesus.
IHU On-Line – Em que sentido a salvação conseguida por Cristo é a superação de toda religião sacrificial?
James Alison – Essa é a proposta de Girard, e eu a compartilho. Na base de toda a forma de cultura humana existe aquilo que ele chama de bode expiatório. Temos a tendência de criar uma unidade entre nós por contraste com um outro ruim, que é “jogado fora”, seja sacrificado, expelido ou banido, mas que, desde o começo, dos nossos antepassados mais próximos aos macacos, quando os antropoides estavam desenvolvendo uma capacidade de imitação cada vez maior, começou a haver as possibilidades de uma cultura humana com base neste mecanismo sacrificial de construir unidade e distinguir quem está dentro, e quem está fora. Segundo Girard, o que Jesus teria feito é voltar diretamente ao cerne de um assunto do passado, ocupando o lugar da vítima de maneira voluntária, não porque Deus precisa castigar alguém, mas para abrir os nossos olhos para nossa necessidade de castigar alguém. O típico de nossa vivência humana é imaginar que dependemos de um outro julgado ruim, perigoso, contaminante, vergonhoso para mantermos a nossa própria unidade e bondade no sentido de comunidade. Ao ocupar voluntariamente este lugar, Jesus estaria explodindo a partir de dentro o mecanismo de manutenção da ordem, da lei e bondade de toda cultura humana. Por isso poder-se-ia falar na morte de Jesus como sendo precisamente a superação de toda religião sacrificial. A partir disso, não faz mais sentido o sacrifício.
IHU On-Line – Como a hipótese mimética de René Girard ajuda a compreender esse dogma?
James Alison – Quero enfatizar a importância do que é uma visão retrospectiva no sentido daquilo que o pensamento de Girard nos permite fazer, e entender melhor essa visão restrospectiva. A partir da ressurreição, quando se percebe como os humanos podem ser, olhamos para trás e nos damos conta de que pensávamos algo como normal, e depois nos espantamos com isso. O que parecia destino era, na verdade, contingência. Não somos seres fadados à morte, mas à vida. Isso altera todas as relações entre nós.
IHU On-Line – A partir do pensamento de Girard, como é possível distinguir entre o desejo possessivo/rivalístico e o desejo pacífico/criador?
James Alison – O centro do pensamento de Girard é que desejamos segundo o desejo do outro. O desejo não nasce em nós, mas no outro. Isso nos incita a desejar. Assim, nossos desejos são “emprestados”. Isso significa que tipicamente nos achamos dentro de rivalidades antes mesmo de nos darmos conta de que isso está acontecendo. Para que haja um desejo, em primeiro lugar, este precisa ser pacífico. É o caso da criança desejante. Muito do que ela quer é incitado pelos próprios pais. É interessante notar o quanto o desejo tende a ser rivalístico inclusive nas crianças pequenas. Desde cedo, os pequenos podem ficar com raiva se percebem que outras crianças ao seu lado estão sendo atendidas primeiro. Não pensemos que somos inocentes durante muito tempo e que depois não o somos mais. Nossa capacidade de desejo, como vem do outro, sempre traz consigo o risco de ser um desejo rivalístico. Ninguém de nós consegue viver sem rivalidade, inclusive para construir nossa identidade por contraste com os outros. Em nosso caso, esse desejo possessivo ou rivalístico é o normal, tal como se apresenta em nossa vida. É o que mais há, e aquilo que todas agências de publicidade conhecem muito bem. Se você quer vender algo, você tem que dar a impressão à pessoa de que ela precisa daquilo. Quando uma modelo aparece vendendo alguma coisa, tem-se a impressão de que, se adquirirmos aquilo, seremos como ela. O difícil em todos os casos é voltarmos a descobrir aquilo que é possível dentro do nosso desejo, que é a possibilidade de uma emulação, uma imitação não rivalística. Quando recebemos o que vem do outro sem a necessidade de “agarrar” esse desejo. É o sentido saudável, e o que chamo de desejo pacífico. Girard fala em desejo mimético sobretudo para a versão mais negativa do desejo. Em princípio, existe o desejo apropriativo, que aparece “agarrando”. E há o desejo pacífico, aquele que é de imitação sem essa necessidade de “agarrar”.
IHU On-Line – O pensamento de Girard oferece subsídios para pensarmos uma fé para além do ressentimento?
James Alison – O que é interessante no pensamento de Girard é que ele aceita o desafio de Nietzsche, o pensador que acusou o cristianismo de ser ressentido e dependente desse sentimento. Alguns dos textos mais bonitos de Girard são, justamente, textos em que ele discute Nietzsche. Descobri que Girard, ao desmascarar o mecanismo do bode expiatório, da vitimização que há na base da sociedade, também nos oferece a possibilidade de pensar de forma não vitimária. Essa é a grande novidade para mim. Em vez de se pensar o herói ou vítima, que na verdade são a mesma pessoa, trata-se de reconhecer a cumplicidade dentro daqueles mecanismos sem ser levado por eles. Isso é a possibilidade da fé além do ressentimento. É dar-se conta de que se é partícipe de um mundo no qual a vitimização está por todas as partes. Mas estou disposto a aprender a amar mesmo dentro de toda essa confusão. Isso Nietzsche não entendeu no cristianismo, mesmo que chegou muito próximo disso, segundo Girard. Mesmo que Nietzsche tenha optado por Dionísio em lugar do Crucificado.
Uma fé além do ressentimento é quando você está disposto a ocupar o lugar vitimário sem se pensar heroico, mas simplesmente estando lá sem ter necessidade de se contrastar com ninguém. Em termos de vivência pessoal, isso é o mais fundamental: como deixar de se considerar vítima ou herói. Como perder o ressentimento e chegar a desenvolver o papel de irmão, ou irmã em vez de vítima ou herói, um processo de humanização. É o que busco elaborar.
IHU On-Line – O pensamento de Girard oferece subsídios para uma melhor compreensão da questão gay em nossa sociedade?
James Alison – Sim, oferece, mesmo que a questão gay não seja um dos interesses principais de sua obra. É possível vermos como Girard entende os mecanismos violentos de exclusão que os diferentes grupos humanos fazem com uma série de grupos considerados perigosos, contaminantes, diferentes. A partir disso, chegam a ser bem compreensíveis os mecanismos irracionais que levam à exclusão e tratamento indigno das pessoas gays e lésbicas em nossa sociedade precisamente porque chegam a ser portadores de acusações estereotipadas, como se estivessem causando o colapso da sociedade, da família e da moral.
Essas acusações são feitas contra alguém que é “dispensável”, que você quer convenientemente jogar fora, sem ter que olhar para as causas reais do que está acontecendo. Dizer que os gays estão provocando o colapso da família é uma declaração que só pode partir de uma pessoa que não quer prestar atenção nas dinâmicas reais das famílias modernas. Atribuem esse poder maléfico aos gays, que são um grupo muito pequeno para uma realidade social grande, que são as mudanças na maneira de ser família. Isso é ridículo, especialmente em se considerando que os próprios gays são membros de famílias. Chega-se a dizer que deixar os gays casarem irá provocar o colapso do matrimônio.
O que, na verdade, provoca o colapso do matrimônio é o comportamento dos heterossexuais em seus relacionamentos matrimoniais. Já é muito para nós, pessoas gays ou pessoas heterossexuais, arcar com os fracassos de nossos próprios relacionamentos! Para a mentalidade sacra, contudo, esses argumentos não importam. O que importa é poder desenhar o mal, e, uma vez que este fique desenhado, torna-se possível construir uma falsa bondade às costas da vítima. Esse é o mecanismo que Girard desvela. Nossas sociedades são, sim, sacrificiais, seguindo padrões arcaicos, nos pensando modernos e ilustrados.
IHU On-Line – Quais são as maiores contribuições de Girard para a filosofia e a teologia no século XXI?
James Alison – Suas maiores contribuições são um desafio de uma antropologia nova, entendendo a maneira como os “bichos” humanos, que se comportam de maneira imitativa, se comportam e como constroem suas sociedades, sem recorrer para ideias muito idealistas. Precisamos nos fixar num entendimento de mecanismos muito humanos na construção da sociedade. Isso é a insistência girardiana.
Como teólogo, penso que as contribuições de Girard são múltiplas. Uma das maiores é que ele permite uma nova maneira de conceitualizar nossos discursos sobre Deus, tirando qualquer violência dele.
Sabe-se que grande parte do discurso sobre Deus tem sido viciado pela atribuição de violência para poder entender a morte de Jesus de maneira salvífica. Várias teorias da salvação, expiação e redenção pensam assim. Então, pela primeira vez em muitos séculos, Girard nos permite entender de uma nova forma a maneira pela qual a morte de Jesus é salvífica sem que isso atribua qualquer tipo de violência a Deus. Essa é uma questão fundamental.
Outra área na qual Girard faz muita diferença na Teologia é na questão da leitura bíblica. Isso porque Girard é um leitor de textos a partir de sua intuição mimética. E é como leitor de textos que nos ajuda a ler o Antigo e Novo Testamento e mostrar, pela primeira vez em séculos, uma maneira de perceber como o Novo Testamento se aninha dentro do Antigo. Isso nos permite avançar além daquelas tendências do cristianismo que não prestam atenção ao Antigo Testamento porque é demasiado violento, ou aquela posição fundamentalista de deixar que o Novo Testamento seja totalmente dominado pelo Antigo.
IHU On-Line – Em que medida suas ideias podem ajudar a “arejar” a Igreja Católica?
James Alison – Na verdade, só o Espírito Santo poderia arejar a Igreja Católica, uma vez que ela ainda é muito resistente... Girard nos permite elaborar um novo paradigma da fé, entender de novo a fé cristã. Em vez da explicação da fé que recebíamos nos catecismos antigos, muito moralistas, chega a ser possível agora entender a fé de maneira orgânica, como boa nova, com o pensamento de Girard como catalizador. Esse é o dom fundamental que esse autor nos oferece.
É a possibilidade de uma nova evangelização que seja autenticamente boa nova, e não o moralismo antiquado disfarçado de alta tecnologia moderna, muito chique e atual, mas que ao ter seu véu retirado, mostra a mesma incapacidade de tratar com questões como a relativa aos gays, por exemplo. Nenhuma catequese ou evangelização que não estejam dispostas a ir ao encontro das pessoas podem ser consideradas algo diferente de uma maquiagem.
Em segundo lugar, destaco que ao nos desvelar o mecanismo do bode expiatório, Girard nos oferece a possibilidade de fazer uma autocrítica institucional constante. Isso em termos eclesiásticos talvez seja a contribuição mais interessante, se é que estamos dispostos a fazê-lo. A partir do Cristo ressuscitado, da vítima que está no nosso meio, começarmos a ser autocríticos com os posicionamentos vitimários de nossos mecanismos eclesiásticos. Mesmo fora do âmbito da igreja isso é algo de fundamental importância.
Na sociedade moderna nos damos conta do quanto pesam as instituições sobre nós. Como seres humanos dependemos fatalmente das instituições. Ao mesmo tempo, nos damos conta de que elas nos movem fora do nosso controle. É difícil tomarmos responsabilidade por nossa vida institucional. As vozes dissonantes são as de pessoas “jogadas fora”, que passam a protestar e se colocar contra essas instituições. Por isso a possibilidade de uma vivência autocrítica, que não tem necessidade de recorrer a estes jogos vitimários, seria um dom muito, muito grande para nós todos.
Por Márcia Junges
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Uma fé para além do ressentimento. Entrevista especial com James Alison - Instituto Humanitas Unisinos - IHU