07 Abril 2012
“Não posso fazer nada contra quem me feriu achando que o seu sofrimento trará satisfação e corrigirá o erro. A vingança nunca é um caminho. Justamente o perdão supõe a não vingança”, defende Julio Lancellotti
O que é preciso para que o perdão seja visto como a possibilidade de um novo recomeço, de um novo caminho a ser traçado para além do erro/falha cometido? A resposta a essa pergunta é dada, nesta entrevista, pelo padre Julio Lancellotti, que afirma: “que nunca o perdão seja humilhação, mas que seja dignificação. Que a pessoa se sinta tão digna diante de Deus, pois o amor de Deus é maior do que seu erro. Por pior que eu tenha feito, Deus ainda me ama, porque eu sou filho Dele. E isso não se destrói. Então, é preciso acolher com toda a bondade, delicadeza, mas com firmeza. A bondade não significa nunca frouxidão, mas a firmeza da dignidade humana. Ninguém perde a dignidade por um erro que cometeu. A pessoa deve continuar a ser tratada com dignidade. Muitas vezes na nossa sociedade os que erram, ou os que são considerados bodes expiatórios, os ‘errados’ no convívio social, são tratados com toda a crueldade, justificando a tortura, a ‘justiça com as próprias mãos’, a pena de morte. Nós vivemos em uma sociedade tão desigual que um senador que comete algum crime tem foro privilegiado. E um morador de rua que quebrar, danificar, ou roubar alguma coisa para comer é considerado um criminoso e todos acham que podem queimá-lo, matá-lo, destrui-lo. É preciso manter a dignidade humana, pois a pessoa precisa acreditar que é capaz de superar o erro, porque Deus nos ama. Seu amor sempre é maior”.
Na conversa realizada por telefone à IHU On-Line, Pe. Julio ainda reitera que “a memória do pecado e do erro não é uma memória da culpa, mas a memória da graça, que liberta. O importante é não lembrar de maneira mórbida, mas de uma maneira que construa uma forma nova de viver que não repita o que foi feito”.
Júlio Renato Lancellotti (foto) é formado em Pedagogia e Teologia. Foi professor primário, professor universitário, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e há mais de dez anos é o vigário episcopal do povo de rua. É pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em uma entrevista recente, o senhor afirmou que “perdoar não é esquecer. Perdoar é lembrar”. O senhor pode esclarecer essa afirmação, a partir da concepção cristã de perdão?
Julio Lancellotti – Muitas pessoas chegam para mim afirmando que precisam se confessar, porque aconteceu uma coisa que elas não esquecem. E como não esquecem, não perdoam. A partir da colocação de muitas pessoas, eu respondo que “você não esquece porque não está com amnésia, porque lembra os fatos da sua vida, principalmente os que marcaram muito”. O perdão não é não lembrar, ou a pessoa ter dificuldade em perdoar pelo fato de que lembra; mas é justamente lembrar e ter consciência do que aconteceu para não repetir, não fazer o mesmo. Como, por exemplo, olhando historicamente, não podemos esquecer o massacre que aconteceu com o povo judeu, não podemos esquecer o Holocausto. Precisamos lembrá-lo para que não se repita, para que nunca mais aconteça. Uma pessoa que é violentada, maltratada, torturada não vai esquecer. O perdão significa lembrar e não fazer igual, não repetir a maldade que foi feita, para não torná-la novamente presente na história.
IHU On-Line – Como define a concepção cristã de perdão a partir do legado e da postura de Jesus Cristo?
Julio Lancellotti – O perdão cristão é aquele que supera a vingança, que supera a raiz da maldade. Ele não é simplesmente irresponsabilidade, mas a responsabilidade. Por exemplo, se alguém vier confessar e me disser “padre, eu matei uma pessoa e um inocente foi preso no meu lugar”. Eu não posso dar a absovição para essa pessoa. Eu preciso dizer a ela: “você quer o perdão sacramental? Vá e se apresente no lugar dela como culpado”. O perdão supõe superar o mal que foi feito e, na medida do possível, reparar. Se uma pessoa vem e me diz: “padre, eu dei um desfalque na empresa, peguei dinheiro público, e antes de sair do país eu vim me confessar porque está me pesando na consciência”. Novamente, eu não posso dar a absolvição para essa pessoa. Ela tem que devolver o dinheiro. O perdão que Jesus Cristo sempre concedeu, sendo que muitas vezes diziam para ele “você não pode perdoar, quem perdoa é Deus” – e ele foi muito criticado pelas autoridades do seu tempo –, era um perdão que trazia a pessoa de volta à comunhão. Era um perdão que superava o aspecto social. Lembro aqui o exemplo do paralítico (Marcos 2, 1-12). Ele pergunta: “o que é mais fácil, dizer ‘os teus pecados estão perdoados’ ou ‘pegue a tua cama, levante e anda’? Então, para que saibais que o Filho do Homem tem o poder de perdoar os pecados, eu te digo ‘pega a tua cama, levante e anda’”. As autoridades não eram capazes de fazer nenhuma das duas coisas, porque acreditavam que era o pecado dele que o fazia excluído da religião, da comunhão, da comunidade humana. O perdão que Jesus traz é um perdão que cura, que liberta, que tira a exclusão, que faz a pessoa de novo “ser gente”.
IHU On-Line – Como interpreta a postura de Jesus, o seu silêncio, diante de Herodes Antipas, um pouco antes da crucificação?
Julio Lancellotti – Jesus não compactuou com nenhuma injustiça, nem com aqueles que o tratavam como louco. Herodes tratou Jesus como um louco. Ele queria que Jesus fizesse alguma coisa extraordinária, o que ele não fez. O perdão cristão não é uma inconsequência. Não significa dizer: “não faz mal que você fez isso, está tudo bem”. Não é verdade. O perdão cristão responsabiliza, corresponsabiliza, não é um perdão que passa a mão na cabeça e diz: “continue fazendo o que estava” ou “não faz mal roubar o dinheiro público, ou matar as crianças porque não tem dinheiro para comprar remédio”, como esses que aparecem na mídia e superfaturam e roubam o dinheiro da saúde. O perdão não é dizer para eles: “está bom, então, você pediu perdão, está perdoado, volte para sua casa e fique feliz”. O perdão supõe a reparação, a conversão. Inclusive o perdão sacramental supõe o propósito de não mais pecar. Sabemos que nossa natureza humana não permite fazer um propósito desses de forma definitiva. Mesmo assim, precisamos fazê-lo. O arrependimento tem que ter uma consequência. A memória do pecado e do erro não é uma memória da culpa, mas a memória da graça, que liberta. O importante é não lembrar de maneira mórbida, mas de uma maneira que construa uma forma nova de viver que não repita o que foi feito.
IHU On-Line – Em que sentido o perdão pode ser encarado como uma forma de justiça espiritual?
Julio Lancellotti – A questão da justiça espiritual não significa “fora da vida”, porque às vezes nós utilizamos esse conceito de tal forma. O espiritual é pelo espírito; pelo Espírito Santo e pelo discernimento. Então, não é uma justiça que está fora da história da vida humana. Há situações em que a Igreja, mesmo que conceda o perdão sacramental, não pode interferir na justiça. Quem errou terá que responder perante o tribunal. Mesmo que eu perdoe os que me fizeram mal, no sentido de que eu não faça para eles o mesmo que fizeram para mim, não supõe que eles não respondam na justiça. O perdão para fazer uma justiça espiritual significa a ação pelo espírito, pelo discernimento e pela capacidade de renovar e refazer a vida.
IHU On-Line – Em que medida, por meio do perdão, a bondade substitui a vingança?
Julio Lancellotti – Não podemos afirmar isso. A vingança tem que estar sempre fora. Nada a substitui. A vingança é o elemento fundamental no perdão, no sentido de não fazer o mesmo. Deus não se vinga, ninguém tem que se vingar. Mas não podemos fugir das consequências. A bondade é estar com a pessoa que erra, que manifesta o seu pecado, para que ela possa ter força e coragem, pois diante de Deus ela se refaz, se renova, e continua sendo um ser humano e filho de Deus. Não posso fazer nada contra quem me feriu achando que o seu sofrimento trará satisfação e corrigirá o erro. A vingança nunca é um caminho. Justamente o perdão supõe a não vingança.
IHU On-Line – O que é preciso para que o perdão seja visto como a possibilidade de um novo recomeço, de um novo caminho a ser traçado para além do erro/falha cometido?
Julio Lancellotti – Que nunca o perdão seja humilhação, mas que seja dignificação. Que a pessoa se sinta tão digna diante de Deus, pois o amor de Deus é maior do que seu erro. Por pior que eu tenha feito, Deus ainda me ama, porque eu sou filho Dele. E isso não se destrói. Então, é preciso acolher com toda a bondade, delicadeza, mas com firmeza. A bondade não significa nunca frouxidão, mas a firmeza da dignidade humana. Ninguém perde a dignidade por um erro que cometeu. A pessoa deve continuar a ser tratada com dignidade. Muitas vezes na nossa sociedade os que erram, ou os que são considerados bodes expiatórios, os “errados” no convívio social, são tratados com toda a crueldade, justificando a tortura, a “justiça com as próprias mãos”, a pena de morte. Nós vivemos em uma sociedade tão desigual que um senador que comete algum crime tem foro privilegiado. E um morador de rua que quebrar, danificar, ou roubar alguma coisa para comer é considerado um criminoso e todos acham que podem queimá-lo, matá-lo, destrui-lo. É preciso manter a dignidade humana, pois a pessoa precisa acreditar que é capaz de superar o erro, porque Deus nos ama. Seu amor sempre é maior.
IHU On-Line – O que o trabalho e o contato com os moradores de rua mais lhe ensinam? O que o senhor tem aprendido com eles sobre o perdão?
Julio Lancellotti – Aprendo muito com eles. Aprendo que são capazes de perdoar e têm uma capacidade incrível de serem condescendentes. Eles serão aqueles que terão que conceder o perdão à sociedade que os marginaliza, os exclui e os destrói, na hora em que ela for capaz de partilhar com eles o pão, a mesa, a casa. Eles são o sinal de que somos uma sociedade que ainda não foi capaz de se reconciliar com os mais sofridos.
IHU On-Line – Como raiva e perdão se contrapõem e se relacionam?
Julio Lancellotti – O perdão tem que nos ajudar a perceber que raiva todos nós sentimos. O problema é o que fazemos com nossa raiva. Raiva todo mundo sente porque é humano, ninguém pode dizer que nunca sentiu raiva. O que não posso é despejar a minha raiva em cima de outros, principalmente em cima dos mais fracos, dos indefesos. Normalmente acontece muito isso. Sentimos raiva de alguém que é mais poderoso, mas descontamos essa raiva, despejando-a em cima de quem é mais fraco.
IHU On-Line – É possível perdoar alguém mesmo sentindo raiva por essa pessoa?
Julio Lancellotti – Se eu opto por, mesmo tendo raiva daquela pessoa, não fazer com ela o mesmo que ela fez para mim, isso é uma forma de perdão muito grande. Eu posso sentir raiva e não fazer igual. Essa é uma capacidade humana de ter a convicção clara, plena, de não usar a arma que me mata, a palavra que me destrói, as artimanhas que usam contra mim, nem da força religiosa, política ou simbólica.
IHU On-Line – Perdoar é uma forma de sublimação da raiva?
Julio Lancellotti – Não. Perdoar é uma capacidade de superação, de lidar com o erro de forma muito humana, a partir de convicções muito claras. Mesmo que a arma de quem me ofendeu esteja agora na minha mão, eu não vou usá-la.
IHU On-Line – Em que casos o perdão pode ser incondicional ou condicionado?
Julio Lancellotti – Em termos do sacramento da reconciliação, da Igreja, o perdão é condicionado ao arrependimento e ao propósito. Isso sempre acontece. O perdão também se torna condicionado quando a vítima da ofensa não tem capacidade, não consegue perdoar, pois o dano é tão grande que não há como fazê-lo. Como uma criança violentada pode perdoar seu violentador? Está além da capacidade da pessoa. Não se pode pedir a uma velhinha que foi torturada que perdoe. É impossível. Por isso, nesses casos deve-se pedir perdão à comunidade, à sociedade. Nosso perdão sempre é imperfeito. Só o perdão de Deus tem perfeição, é incondicional.
IHU On-Line – O que guarda do convívio com D. Luciano Mendes de Almeida? Que imagem, que lembrança o senhor guarda dele e do trabalho que fazia com moradores de rua também?
Julio Lancellotti – Dom Luciano é a bondade exigente, a ternura que transforma, o sorriso que acolhe, a mão que sempre partilha. É aquele que nunca reteve nada para si, que abriu mão do poder, de prerrogativas, e que se identificou com os fracos. É uma ternura e uma bondade que nunca quis se valer de ser um Mendes de Almeida, de ser um bispo, um arcebispo, de ser o presidente da CNBB ou seu secretário-geral, de ser uma autoridade. Ele sempre quis ser um irmão servidor. Refleti muito quando D. Luciano estava doente, sobre a parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37). Ele é o samaritano que vai procurar o que está ferido, mas depois ele vai procurar o que feriu, para que este não fizesse mais aquilo.
IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescentar mais algum comentário?
Julio Lancellotti – O que precisamos é refletir sobre como os injustiçados desse mundo vão nos perdoar. E, caso eles tenham a capacidade de nos perdoar, como poderemos viver a reconciliação, fazendo com que todos, principalmente os mais pobres, tenham condição de vida e se sintam nossos irmãos. Essa é a nossa missão e nosso desafio para viver a Páscoa.
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Perdão, um ato de dignificação. Entrevista especial com Julio Lancellotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU