23 Março 2012
“A juventude quer vivência grupal. Nunca houve tanta busca dessa vivência como nos dias de hoje. Por outro lado, a essência da Igreja é ser comunidade (ecclesia). Não se entende uma Igreja que não seja e não promova a comunidade, o grupo. Por isso a juventude espera acolhida”, diz padre jesuíta.
Confira a entrevista.
A Igreja precisa possibilitar e incentivar a construção da autonomia. É a partir dessa percepção que Pe. Hilário Dick (foto) critica as práticas da Igreja e sua relação com a juventude. Para ele, a Jornada Mundial da Juventude – JMJ, evento católico que reúne o maior número de jovens em todo o mundo desde 1980, tem uma pedagogia que não conduz “à transformação social” e tampouco possibilita o protagonismo juvenil na Igreja. “Não se nega que um e outro jovem mude de valores, se ‘converta’, que descubra Jesus Cristo etc., mas poucos são os dados que fazem que o jovem descubra mais a realidade social ou, até mesmo, a própria realidade juvenil em termos mais amplos”. E complementa: “A maior prova disso está na observação de quem é o protagonista das Jornadas: quem fala? Quem decide? Quem ocupa o palco? De forma um tanto dura podemos dizer que a juventude das JMJ é uma massa de manobra da Igreja-Instituição”, provoca, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Em contato com a juventude há mais de 40 anos, ele assegura que, apesar das limitações, “a Igreja e a juventude se encontram: a Igreja naquilo que ela deveria ser e a juventude naquilo que ela sonha com uma instituição como a Igreja”. E explica: “A juventude quer vivência grupal. Nunca houve tanta busca dessa vivência como nos dias de hoje. É falso dizer que a juventude não quer viver em grupo. Por outro lado, a essência da Igreja é ser comunidade (ecclesia). Não se entende uma Igreja que não seja e não promova a comunidade, o grupo. Por isso a juventude espera acolhida”. Para que esta aproximação seja possível, sugere, o trabalho pastoral com os jovens deve ser entendido como um processo, “que acontece no dia a dia, nos pequenos grupos que se encontram para relacionar-se, viver, estudar, enfrentar questões comuns, celebrar etc.”.
Hilário Dick é graduado em Teologia pela Pontifícia Faculdade do Colégio Máximo Cristo Rei, e em Filosofia e em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Mestre e doutor, também em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, é coordenador do Observatório Juvenil do Vale/Unisinos. Entre seus vários livros publicados, citamos Gritos silenciados, mas evidentes: jovens construindo juventude na história (São Paulo: Loyola, 2003) e Cartas a neotéfilo – Conversas sobre assessoria para grupos de jovens (São Paulo: Loyola, 2005). Junto de Carmem Lucia Teixeira e Lourival Rodrigues da Silva publicou Juventude: acompanhamento e construção de autonomia. É autor do Cadernos IHU número 18, intitulado Discursos à Beira dos Sinos. A emergência de novos valores na juventude: o caso de São Leopoldo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a trajetória da Jornada Mundial da Juventude – JMJ? A JMJ é uma apresentação da Igreja para os jovens ou revela o engajamento e a relação da juventude com a Igreja?
Hilário Dick – Quando é que podemos falar de “trajetória” de um evento? Basta ver as datas, o número de participantes, os locais, a reação da sociedade, a repercussão na Igreja, o preço do evento? Qualquer “movimentação” se caracteriza pelas preocupações que manifesta, pelas ideias que defende, pelas propostas que carrega. É mais do que um ajuntamento de datas, de número de participantes, de número de discursos ou “sermões” que se fizeram, de tipos de hinos que foram cantados etc. Por isso, somente com um estudo em profundidade poder-se-á falar de uma possível trajetória das JMJ.
Quanto à segunda parte da pergunta, as Jornadas Mundiais estão provando que elas são muito mais uma apresentação da Igreja para os jovens do que um engajamento dos jovens com a Igreja. A maior prova disso está na observação de quem é o protagonista das Jornadas: Quem fala? Quem decide? Quem ocupa o palco? De forma um tanto dura podemos dizer que a juventude das JMJ é uma massa de manobra da Igreja-Instituição. Assim como não se fala de Reino para esta juventude, insiste-se muito no amor à Igreja. Não podemos dizer que o seguimento de Jesus não é desenvolvido, mas não é o que as juventudes enxergam e ouvem de forma mais significativa.
IHU On-Line – Como explicar a receptividade da Jornada por parte dos jovens? Qual o significado desses eventos massivos? A JMJ tem um viés transformador?
Hilário Dick – Todo jovem gosta de viajar e de participar de um evento em que se encontram muitos jovens. Isso vale para dentro e fora da Igreja. O Papa João Paulo II, além de seu carisma no relacionamento com os jovens, foi transformado num “Papa Pop” como até cantam os Engenheiros do Havaí. Pelo caráter que tinham e têm as JMJ, os meios de comunicação não tiveram nem têm dificuldade em assumi-las.
Existem dois modos de trabalhar pastoralmente com os jovens: ou priorizando uma pastoral de eventos, de grandes concentrações, de movimentos massivos com muito marketing, muita visualidade etc., ou priorizando uma pastoral de processos, essa que acontece no dia a dia, nos pequenos grupos que se encontram para se relacionar, viver, estudar, enfrentar questões comuns, celebrar etc. A Igreja Católica está priorizando, nesse momento, de muitas formas, a pastoral de eventos. É em tal geografia que se situam as JMJ.
Pela pedagogia que se usa nas JMJ pode-se dizer que elas não levam à transformação social. Não se nega que um e outro jovem mude de valores, se “converta”, descobre Jesus Cristo etc., mas poucos são os dados que fazem que o jovem descubra mais a realidade social ou, até mesmo, a própria realidade juvenil em termos mais amplos. Basta recordar o significado que tiveram as mobilizações juvenis na Jornada Mundial de Madrid. A juventude fora da Igreja parece que não existe...
IHU On-Line – Como construir, a partir dos movimentos de grupos, das pastorais da juventude, a autonomia dos jovens que participam da Igreja?
Hilário Dick – Critico a pedagogia, porque as JMJ não garantem a participação da juventude. Se houvesse e se possibilitasse real participação, haveria protagonismo juvenil. Só se constrói autonomia, personalidade, identidade numa boa participação, e uma boa participação significa uma boa organização, onde o protagonismo juvenil seja o exercício da autonomia etc. Podemos dizer que a autonomia é o tendão de Aquiles da Igreja porque se trata do exercício do poder. E a Igreja Católica, hoje e na história, tem muita dificuldade na vivência evangélica do poder. Isso vale para todos, também para o povo de Deus, em geral, e de modo especial para a juventude que vive a descoberta da liberdade (saindo do mundo da dependência), da participação e da autonomia. Esse aspecto fica evidente na forma como são vivenciadas as JMJ. Apesar disso, na teoria, o paradigma que a Igreja defende (assume?) é o da construção da autonomia. Uma das coisas que mais afasta a juventude da Igreja é a esquizofrenia, afirmando uma coisa e fazendo outra, na prática.
IHU On-Line – Em que consiste o projeto de revitalização da Pastoral da Juventude Latino-Americana? Em que medida é preciso revitalizar a ação pastoral?
Hilário Dick – É um atestado de sanidade e de saúde para qualquer instituição o fato de ter vontade de sempre se renovar. Ora, a Pastoral Juvenil Latino-Americana tem uma caminhada de 30 anos, fundamentada na construção da Civilização do Amor. As diretrizes dessa caminhada já mereceram várias reelaborações. A grande decisão da revitalização, falada e sonhada há mais tempo, foi a proposta assumida no 3º Congresso Latino-Americano, em 2010, na Venezuela. Trata-se de reforçar o espírito missionário da juventude, seguindo uma inspiração bíblica. A novidade foi a escolha dos lugares bíblicos alimentando essa revitalização, isto é, impulsionada por aquilo que é mais de Deus: o Evangelho. Vai sair, por isso, em breve, nova edição da obra Civilização do Amor com o subtítulo Projeto e Missão. A Conferência de Aparecida, embora não tenha dito algo novo neste campo da evangelização da juventude, não deixou de reforçar o que já se vinha fazendo, embora dificultando um aspecto fundamental: a articulação, considerada como o melhor instrumento para suscitar a formação de jovens caminhando para o empoderamento, a autonomia ou, então, o protagonismo. A revitalização é uma exigência da vida; também o é da ação pastoral. Uma das formas de sempre se renovar é saber alimentar-se da Palavra de Deus.
IHU On-Line – Na sua avaliação, a juventude está mais consciente do seu papel como ator social?
Hilário Dick – Toda a humanidade e também toda a juventude, com o decorrer da história, cresce em consciência social. Assim como se descobrem e se conquistam novos direitos, também vão-se conquistando e descobrindo novos deveres. É arriscado dizer que a juventude, hoje, tem mais consciência. A juventude atual não é melhor nem pior que a juventude de outrora: ela é diferente. Assim como nos anos 1960 a juventude tentou fazer tudo o que fez sem TV, sem celular, sem internet, etc., a juventude de 2012 deve tentar fazer tudo o que pode com os auxílios que a técnica e a comunicação oferecem. Nos últimos tempos estamos vendo manifestações juvenis significativas em várias partes do mundo. Poderiam ser mais? Poderiam ser melhores? Ser ator social nem sempre é fácil. Assim como também não foi. O mundo dos adultos não quer e nem pode entregar, nas mãos da juventude, o protagonismo e a autonomia. Isso sempre será conquista e sempre será conflitivo.
IHU On-Line – Quais os limites e desafios da Igreja diante da Juventude?
Hilário Dick – O documento 85 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, desenvolvendo sua doutrina sobre a evangelização da juventude, chama-se Desafios e Perspectivas da Evangelização da Juventude. Não vou repetir o que está exposto nesse documento. Você faz, no entanto, outra pergunta, dizendo: "O que a juventude procura na Igreja e o que a Igreja tem para oferecer a esta juventude". Eu gostaria de responder às duas questões numa só resposta. Pensando bem, a Igreja e a juventude se encontram: a Igreja naquilo que ela deveria ser e a juventude naquilo que ela sonha com uma instituição como a Igreja. Acentuaria cinco aspectos:
1) a juventude quer vivência grupal. Nunca houve tanta busca dessa vivência como nos dias de hoje. É falso dizer que a juventude não quer viver em grupo. Por outro lado, a essência da Igreja é ser comunidade (ecclesia). Não se entende uma Igreja que não seja e não promova a comunidade, o grupo. Por isso a juventude espera acolhida;
2) a juventude espera ser reconhecida em sua realidade concreta. A Igreja, por sua vez, que não se encarna nas diferentes realidades onde deseja anunciar a Boa Nova, não é a Igreja de Jesus Cristo que se encarnou. É nessa inserção que nasce o profetismo e a juventude deseja uma Igreja profética;
3) a juventude quer ser ela mesma, quer deixar de ser massa para ser povo, isto é, um segmento organizado. Por outro lado, na Igreja, a pastoral orgânica e a colegialidade episcopal fazem parte de seu ser. É só na organização que a juventude vai construir a sua autonomia e seu protagonismo. Não há outro instrumento;
4) a Igreja tem consciência de que ela, como Deus, deve ser acompanhante. Nas últimas Diretrizes Gerais da CNBB, os bispos até dizem que a Igreja é a casa da iniciação cristã. A juventude não quer caminhar sozinha; ela sonha com a presença de alguém que saiba ser “companheiro”, alguém que, com ela, coma do mesmo pão. Portanto, as duas vocações se encontram;
5) a juventude sonha com uma formação que seja integral, que a ajude em todas as suas dimensões. Um dos maiores vazios que ela sente é a ausência destes/as companheiros. Por outro lado, a Igreja diz nas suas Diretrizes que ela é e deseja ser uma Igreja a serviço da vida plena para todos. Por isso que afirmamos que não é grande a distância entre a Igreja e a juventude.
Voltando às JMJ, devemos ter presente essas realidades por parte da Igreja (instituição) e por parte da juventude. Se for grande a distância entre os sonhos e as vocações, o diálogo será mais difícil.
IHU On-Line – Quais os desafios de passar de uma igreja episcopal para uma igreja ministerial?
Hilário Dick – A pergunta é simples e complexa. Suponho que a pergunta pense “igreja episcopal” como aquela onde os bispos “mandam” demais, esquecendo-se que também fazem parte do “povo de Deus”. Infelizmente estas contradições também acontecem na Igreja: esquecer-se de sua identidade... A reflexão que desejaria fazer refere-se a uma das doenças de nossa Igreja: o clericalismo. No clericalismo o “leigo” está de um lado, na parte que não decide, que recebe ordens; quem decide é o clero. Um dualismo que não tem sentido, mas que é muito forte em toda a parte, também no trabalho com a juventude. Parece que se tem medo de estar próximo, de perder a autoridade. Isso pode ser visto igualmente nas JMJ. Nem o padre nem o bispo deixam de ser o que são se forem capazes de se misturarem com a juventude, nem quando deixam que a juventude entre no “comando” das grandes plenárias, das grandes concentrações etc. Clero e pastores devem convencer-se de que, embora a “autoridade” seja algo que venha de “fora”, antes de tudo ela é algo que vem de “dentro”, onde todos são “povo de Deus”. É muito estranho que o discurso da “aparência” esteja tão forte em nossa Igreja. É preciso voltar à simplicidade que aprendemos com Jesus de Nazaré.
O triste é que a ostentação reforça o clericalismo; ela não aproxima. Além disso, esmaga, oprime, provoca uma cisão. É um “encanto” perigoso. Saber ser próximo da juventude e do povo é uma graça, mas é igualmente uma conquista, fruto de estudo, leitura, presença, pesquisa, observação, abertura à novidade. As JMJ serão ações de aproximação quando o espírito de Jesus de Nazaré se manifestar, também, nestas grandes concentrações.
IHU On-Line – O que espera da visita do Papa ao Brasil no próximo ano, quando participará da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro?
Hilário Dick – Deixemo-lo primeiramente vir. Claro que é bem-vindo. O povo brasileiro e a juventude brasileira vão estar de festa. Depois, talvez, possamos fazer uma avaliação. Sonhamos, contudo, que nosso Papa não deixe de estimular a juventude do mundo para que sejam uma novidade no seguimento a Jesus Cristo, indo além das sacristias e dos templos, proclamando o Reino de Deus e não só incentivando o amor à Igreja.
(Por Patricia Fachin)
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Os jovens e a construção da autonomia. Um desafio. Entrevista especial com Hilário Dick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU