19 Janeiro 2012
“A exportação de armas do Brasil aumentou significativamente nos últimos anos, e isso já reflete numa nova compreensão da opinião pública internacional sobre o país”, afirma o professor de Direito.
Confira a entrevista.
Uma Cápsula de gás lacrimogêneo fabricada no Brasil e encontrada no estado Bahrein, fronteira com o Qatar e a Arábia Saudita, trouxe à tona novamente a discussão acerca da produção e exportação de armamento brasileiro. De acordo com o professor de Direito, Gustavo Vieira, o país “ainda produz e exporta armas que o mundo está caminhando para banir, como o caso das bombas cluster que geram danos inaceitáveis a civis”. Segundo ele, “a AVIBRÁS, produtora e exportadora do sistema ASTROS, tem parceria com o governo para a produção. O exército compra estes equipamentos que já são obsoletos, que mais de cem países estão destruindo seus estoques e proibindo uso no marco da Convenção sobre Erradicação das Munições Cluster. Estas contradições são injustificáveis”.
Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, Vieira esclarece que a exportação de armamento para outros países é aprovada pelo Ministério da Defesa e pelo Ministério das Relações Exteriores, entretanto, “dados mais precisos, como para quais países vão os armamentos brasileiros e quanto, não são disponibilizados”. Entre as implicações da exportação de armamento, o pesquisador destaca a impossibilidade de controlar o destino e a utilização destas armas, a exemplo das minas que foram utilizadas na Líbia, nos confrontos entre o governo e os civis.
Na avaliação dele, a saída de Nelson Jobim do Ministério da Defesa poderá “refletir numa nova política de defesa, pois não é apenas uma troca de nomes, mas de pensamento, de estratégia. (...) A mudança do ministro de relações exteriores, do ministro da defesa e a reaproximação da secretaria de direitos humanos com o Ministério das Relações Exteriores podem apontar novos rumos - por uma política externa do século XXI”.
Gustavo Oliveira Vieira é graduado e mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC e atualmente cursa o doutorado em Direito na Unisinos. Atualmente é professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas - UFPel.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que o Brasil nunca quis abrir mão de ter uma indústria bélica? Quais as empresas produtoras e quais são os armamentos produzidos no país?
Gustavo Vieira - A indústria bélica, também chamada de indústria da defesa, é associada às condições de um país em exercer a sua soberania. Na medida em que o país tem alguma autonomia na produção de armamentos, que na ótica do militarismo é lido como “meios de defesa”, entende-se que teria melhores condições de soberania. Dessa forma, o Brasil tem um conjunto de características que o classificam como países que tipicamente tentam ainda afirmar sua soberania no modelo westfaliano, e a indústria bélica atende a estas perspectivas – da geopolítica do século XX. Parece-me que as condições atuais são outras, inteligência e cooperação tomaram espaço do hard Power.
Fora isso, a lógica militar ainda opera com o estoque de armamentos como condições de persuasão. E num eventual conflito armado internacional, o país tem que resguardar condições de produção nacional sem dependência de outras soberanias. Assim como a exportação garante as linhas de produção em continuidade e aperfeiçoamento para eventuais necessidades do país.
No que tange aos armamentos nucleares, até onde sei não se produz nada no Brasil. Havia um projeto de desenvolvimento de armas nucleares que foi suprimido no final dos anos 1980, após longo processo de cooperação técnico-militar com a Argentina, a partir de um ato em que ambos os países abririam mão destas armas, após, ambos os países aderiram ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). Contudo, o Brasil se resguarda ao direito de usar tecnologia nuclear para fins pacíficos, no caso, energia.
IHU On-Line - Como acontece, atualmente, no Brasil o controle do armamento exportado para outros países e para quais nações o país exporta?
Gustavo Vieira - Tanto a produção quanto a exportação de armamentos devem sofrer controle dos órgãos governamentais, principalmente do Ministério da Defesa – além de autorização, é claro. Ao passo que a exportação demanda uma burocracia específica, devendo ser aprovada tanto pelo Ministério da Defesa quanto pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE). O MRE tem o papel de analisar como a proposta de exportação se ajusta à geopolítica da forma conjuntural e em face do interesse nacional. Contudo, a documentação é mantida apenas por dez anos pelo Ministério da Defesa.
Dados mais precisos, como para quais países vão os armamentos brasileiros e quanto, não são disponibilizados. O Executivo bloqueia estas informações. Não há qualquer transparência nesse sentido. Algumas informações são encontradas em fontes múltiplas e não necessariamente muito fidedignas, e mais por parte dos compradores. Sabe-se de exportações para países árabes do sistema ASTROS da AVIBRÁS e muitas armas leves para outros países.
O fato é que a situação atual do país não garante condições de manutenção da estabilidade política, como ocorreu com o caso da Líbia. Não se pode controlar em que mãos estas armas vão parar, nem o desvio pelo mercado negro de armas. Maior transparência poderia auxiliar que estas decisões respeitassem critérios menos comerciais e mais éticos.
IHU On-Line - Segundo notícias da imprensa, cápsulas de gás lacrimogêneo produzidas no Brasil foram usadas na Líbia, nas manifestações contra os civis. Como explicar a posição brasileira neste caso e como fica a imagem da política externa brasileira no exterior?
Gustavo Vieira - Para além do gás lacrimogêneo, a exportação de armas do Brasil aumentou significativamente nos últimos anos, e isso já reflete numa nova compreensão da opinião pública internacional sobre o país – é só ver recentes reportagens sobre o país na The Economist, BBC e nos relatórios de ONGs sobre direitos humanos.
Toda exportação tem ganhos e no caso, evidente, o comercial. Mas o Brasil ainda está em busca da afirmação da sua soberania e a produção de armas tem a ver com lógica da persuasão. Contudo, a tal persuasão só é útil quando há intenção de agredir, caso contrário é um potencial inútil. Porém, os custos me parecem muito mais altos, tanto financeiro na medida em que há parceria público-privada e financiamentos subsidiados, desvio de prioridades sociais, de cooperação, manchas na imagem do país e, para o futuro a reafirmação de uma geopolítica da guerra, financiamento de empregos insustentáveis, assumindo-se riscos pouco previsíveis (já que a indústria bélica é, por exemplo, alvo militar considerado legítimo em caso de conflito armado), descontrole sobre futuro uso e risco de vidas humanas, e por aí vai.
IHU On-Line - Como o Brasil se manifestou diante das minas encontradas na Líbia?
Gustavo Vieira - O Brasil não reagiu num primeiro momento, e, no final de novembro anunciou que irá conduzir processo de cooperação para auxiliar na remoção de minas na Líbia e promover uma doação de cem mil dólares. Esse caso é interessante para que se reflita na responsabilidade ética do país exportador de armas – fato cada vez mais cobrado pela comunidade internacional e pela opinião pública.
IHU On-Line - Como avalia as relações internacionais entre Brasil e Irã? Lula apoiava a relação, mas a presidente Dilma parece não dar prosseguimento às relações com o país.
Gustavo Vieira - Tenho a impressão de que a presidenta Dilma está corrigindo vários equívocos da era Lula e este é um deles. Em primeiro lugar, é preciso partir do princípio de que um erro não justifica o outro, ou seja, os erros dos EUA e Israel que se pautam no belicismo não fazem com que as amplas violações de direitos humanos do Irã e sua política externa que traz informações vistas como pouco confiáveis, menos equivocada. O alinhamento antiestadunidense que a política externa do governo Lula pareceu produzir retrata a compreensão do mundo e da geopolítica dos anos 1980, à época das Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. O livro é ótimo, mas é preciso assumirmos a responsabilidade pelo nosso destino e ir adiante – como faz de maneira até caricata o presidente da Venezuela, Hugo Chavez. Identificar um inimigo externo culpado pelo nosso insucesso é a maneira mais fácil de nos esquivarmos da responsabilidade.
Ao invés dessa fustigada tradição realista que não acrescenta em nada pragmaticamente e só tem colocado o Brasil como repetidor de tudo o que os EUA faz e fazia de errado e criticávamos – alianças com ditadores, espúrias, cujo único objetivo era comercial e geopolítico com acumpliciamentos amplamente contraditórios ante nossos princípios domésticos. É preciso analisar e corrigirmos nossos próprios equívocos. Um exemplo evidente é um estudo recente sobre o resultado que obteríamos com a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio - OMC, indicando que teríamos muito mais proveito resolvendo problemas de infraestrutura e logística, que está nas “nossas mãos” resolver, do que culpar os outros e pedir menos entraves nessas negociações.
IHU On-Line - A saída do ex-ministro Nelson Jobim do Ministério da Defesa pode gerar alguma reestruturação na posição brasileira em relação à produção e exportação de armamento nuclear?
Gustavo Vieira - A saída do ex-ministro Jobim deve sim refletir numa nova política de defesa, pois não é apenas uma troca de nomes, mas de pensamento, de estratégia. Um diplomata a cargo da Defesa pode dizer muita coisa, ainda que sua capacidade para tomada de decisões seja restringida, mas mudanças de rumo no médio prazo são esperadas. E a maior esperança é justamente de uma retomada do comando efetivamente civil sobre a militar que ainda não se concretizou plenamente. Fernando Henrique Cardoso foi quem instituiu o cargo de ministro da Defesa, retirando o status ministerial dos comandantes das forças armadas. A tentativa anterior de Lula com o embaixador Viegas no ministério da Defesa foi falha e refletiu justamente o contrário. Vamos aguardar.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Gustavo Vieira - Atualmente não se fala seriamente num desarmamento total e completo dos Estados e paralisação da indústria bélica. Longe disso. Agora, seriamente, balizas éticas já definidas constitucionalmente deveriam ser seguidas na definição da política externa, incluindo produção e exportação de armas. A Constituição, em seu artigo 4º, estabelece os princípios que devem ou deveriam guiar as decisões do Brasil na política externa, entre eles a prevalência dos direitos humanos, defesa da paz, solução pacífica de controvérsias, e cooperação entre os povos. Ademais, os países fronteiriços não representam ameaças reais ao país, senão os atores armados não estatais de forma marginal.
O Brasil ainda produz e exporta armas que o mundo está caminhando para banir, como o caso das bombas cluster que geram danos inaceitáveis a civis, pois as munições falhadas ficam ativas e gerando riscos presentes e futuros. A AVIBRÁS, produtora e exportadora do sistema ASTROS, tem parceria com o governo para a produção. O exército compra estes equipamentos que já são obsoletos, que mais de cem países estão destruindo seus estoques e proibindo uso no marco da Convenção sobre Erradicação das Munições Cluster. Estas contradições são injustificáveis.
Por outro lado, a mudança do ministro de relações exteriores, do ministro da defesa e a reaproximação da secretaria de direitos humanos com o MRE podem apontar novos rumos - por uma política externa do século XXI.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Indústria bélica: ''Não se fala seriamente num desarmamento total e completo dos Estados''. Entrevista especial com Gustavo Vieira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU