23 Janeiro 2011
“A `ralé`, como chamo provocativamente essa classe de infelizes e desesperados, num país que nega, esconde e eufemiza todos os seus conflitos e problemas, nunca foi, na verdade, percebida como uma `classe social` entre nós”, afirma o professor e pesquisador Jessé de Souza. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por email, Jessé analisa, a partir da ascensão econômica das classes mais baixas nos últimos anos, a chamada “nova classe média brasileira”. Recentemente, Jessé finalizou a pesquisa intitulada Os batalhadores brasileiros sobre a qual também fala na entrevista. Politicamente é difícil antecipar o comportamento ou nomear uma perspectiva particular até porque essa classe não é homogênea. Ela parece reunir elementos tanto de uma classe trabalhadora “pós-fordista”, ou seja, superexplorada, sem tradição de solidariedade de classe e se acreditando empresários de si mesmos, com elementos de uma pequena burguesia tradicional, no sentido de empreender pequenos negócios muitas vezes sem pagar impostos ou direitos trabalhistas”, explicou.
Jessé Jose Freire de Souza é graduado em Direito pela Universidade de Brasília, onde realizou o mestrado em Sociologia. Na mesma área, fez o doutorado pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg (Alemanha). Atualmente, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. É autor de A Ralé Brasileira: quem é e como vive (Rio de Janeiro: Record, 2009), Os batalhadores brasileiros (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor define esse estrato social brasileiro que está emergindo economicamente? Qual é o seu perfil?
Jessé de Souza – É sempre difícil definir um fenômeno social que está se constituindo “em ato” defronte de nossos olhos. Esse foi, inclusive, o maior desafio tanto teórico quanto empírico do livro que fizemos. No decorrer do trabalho com as entrevistas, percebemos se tratar de fenômeno distinto do que o anunciado com certo triunfalismo nos jornais. Procuramos primeiro separar este estrato da classe média estabelecida. Não se consegue fazer isso apenas com a variável renda, que é, no entanto, infelizmente, o que se faz sempre. A classe média estabelecida é uma classe dominante porque se forma pela apropriação privilegiada de capital cultural, seja técnico e especializado, seja literário e especulativo, o qual é indispensável para o funcionamento do mercado e do Estado. Ainda que não exista acesso privilegiado a volume significativo de capital econômico, como nas classes altas, o acesso a este conhecimento altamente valorizado socialmente cria toda uma “condução da vida” em todas as dimensões que permite, quase sempre, manter o privilégio para as gerações seguintes.
Não é isso que acontece com os “batalhadores” que analisamos. O acesso aos capitais impessoais, que são a base de todo privilégio social – tanto material quanto simbólico –, e aos capitais econômico e cultural é restrito e limitado. São pessoas que fizeram escola pública ou universidade particular (no melhor dos casos) tendo de trabalhar paralelamente muitas vezes em mais de um emprego. Muitos trabalham entre 10 e 14 horas por dia e não possuem o recurso mais típico das classes do privilégio que é o “tempo” para incorporação de conhecimento valorizado e altamente concorrido. Essas características estruturais implicam em “condução de vida” e “percepção do mundo” – as duas características mais importantes para conhecermos a especificidade do pertencimento de classe – muito distintas das classes médias estabelecidas entre nós.
IHU On-Line – Qual é a chance de participação política, econômica e social desse novo estrato social que emerge no país? Quais os lados positivos e negativos do surgimento desse novo estrato social?
Jessé de Souza – Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu, fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno. Foi esse estrato que dinamizou a economia brasileira na última década e estimulou o mercado de consumo de bens duráveis antes de impossível acesso a grandes parcelas da população. Especialmente no Nordeste, a região mais dinâmica e de grande número de “batalhadores” nesta última década, foi o Bolsa Família, no testemunho de inúmeros de nossos informantes, o que ajudou a irrigar com alguma economia monetária rincões secularmente esquecidos entre nós. A nova demanda criada foi um dos elementos que permitiu surgir uma classe de pequenos empreendedores no interior do Nordeste, vários dos quais compondo a assim chamada “nova classe média". Politicamente, é difícil antecipar o comportamento ou nomear uma perspectiva particular até porque essa classe não é homogênea.
Ela parece reunir elementos tanto de uma classe trabalhadora “pós-fordista”, ou seja, superexplorada, sem tradição de solidariedade de classe e se acreditando empresários de si mesmos, com elementos de uma pequena burguesia tradicional, no sentido de empreender pequenos negócios muitas vezes sem pagar impostos ou direitos trabalhistas. A meu ver essa classe vai ser o fiel da balança do caminho tanto social quanto político que o Brasil irá tomar nos próximos anos. Ela tanto pode tender para um alinhamento com os setores mais conservadores de um liberalismo sem responsabilidade social – perspectiva hoje hegemônica na nossa esfera pública ainda que fora do poder político – ou, ao contrário, ser a ponta de lança de um projeto efetivamente mais inclusivo socialmente que jamais teve uma chance real entre nós. As classes sociais não são nem libertárias nem conservadoras em si. É a luta política que implica convencimento e voz ativa na esfera pública que decide, em cada caso, que tipo de orientação política vai prevalecer.
IHU On-Line – Como se define uma classe social? Como se deu a construção das classes sociais no Brasil contemporâneo?
Jessé de Souza – O mecanismo complexo que explica a existência das classes sociais é o segredo mais bem guardado de todas as sociedades modernas. É que o pertencimento de classe define, em grande medida, o acesso privilegiado a qualquer tipo de bem ou recurso escasso. Esses bens e recursos que não precisam ser materiais como um carro ou uma casa, mas também podem ser, por exemplo, o tipo de mulher ou de homem que se consegue ter ou o tipo de reconhecimento social ou prestígio que se desfruta em todas as dimensões da vida. Tudo isso é definido, com alta probabilidade pelo menos e na imensa maioria dos casos, pela herança de classe – pela presença ou ausência relativa de capital cultural e capital econômico – onde se é socializado.
O tema da classe desafia, portanto, a ilusão social mais forte entre nós que é a da autonomia ou a liberdade do sujeito individual que é, por sua vez, o fundamento da “meritocracia” moderna, o que Pierre Bourdieu mostrou melhor do que qualquer outro. A classe permite a construção diferencial dos indivíduos pelas heranças típicas de cada classe quebrando a ilusão do “homem universal”, como se os pressupostos para a competição social por recursos escassos fossem os mesmos para todos.
Por conta disso, os interesses da reprodução de todo tipo de privilégio precisa ou tornar inofensivo ou ridicularizar o conceito de classe. Torna-se o conceito de classe inofensivo quando se liga, por exemplo, pertencimento de classe à renda, o que vemos acontecer em todos os jornais, em todos os debates acadêmico e público brasileiros. Como toda “ilusão objetiva” moderna, ela é mais uma “meia verdade” do que uma mentira. Afinal, existe algum padrão diferencial de renda entre as diversas classes, embora de modo algum em todos os casos. O que essa associação arbitrária esconde é o todo processo de gênese das classes e de seu processo de reprodução que a permite continuar no tempo, ou seja, permite esconder e desviar o foco sobre o que realmente interessa e que é importante de se conhecer. A ridicularização é lograda pela associação de qualquer conceito não liberal de classe ao marxismo tradicional. Toda vez que o conceito de classe surge na esfera pública, ele é contaminado e tornado inócuo por essas duas operações que são duas faces de uma mesma moeda.
Na verdade, a classe social se forma pela herança afetiva e emocional, passada de pais para filhos no interior dos lares, de modo muitas vezes implícito, não consciente e inarticulado. São esses estímulos que irão construir formas específicas de agir, reagir, refletir, perceber e se comportar no mundo. E é precisamente a presença ou falta de certos estímulos, por exemplo, estímulos para a disciplina, para o autocontrole, para o pensamento prospectivo, para a concentração, que irá definir as classes vencedoras e perdedoras antes mesmo do jogo da competição social se iniciar de forma mais explícita. Existem classes sociais com dificuldades de concentração, por falta de exemplos e estímulos à leitura e a imaginação, que já chegam “derrotadas” na escola e depois, com mais razão ainda, no mercado de trabalho. Existem classes literalmente “sem futuro” porque jamais se pensa nele tamanha a urgência da sobrevivência no presente. Nas classes médias, por exemplo, ao contrário, o futuro é mais importante que o presente o que permite que se tenha futuro. Essa fabricação social de indivíduos com capacidades diferenciais por pertencimento de classe tem que ser cuidadosamente escondida. Daí que se fale apenas no seu “resultado” mais visível, a renda, de modo a que possa se “falar de classe” sem que nada se compreenda de sua dinâmica.
IHU On-Line – O senhor disse recentemente que a sociedade brasileira se difere das sociedades desenvolvidas (EUA) porque 1/3 dos brasileiros não tem condições de participar do mercado econômico e da política, em função da classe média e da classe alta. Por que, na sua avaliação, a culpa é da classe média e da classe alta, e não do Estado?
Jessé de Souza – Porque o Estado é demonizado por motivos de dominação política de valores extremamente conservadores. Como jamais se podem debater os conflitos sociais que rasgam a sociedade brasileira de fio a pavio – isso exigiria uma sociedade madura e autocrítica, o que a última eleição mostrou ser um sonho distante –, os conflitos sociais são todos “dramatizados”, desfocados e tornados irreconhecíveis pela construção da falsa oposição entre mercado divinizado e Estado demonizado (como ineficiente e corrupto). As falsas oposições estão sempre no lugar de oposições verdadeiras.
Entre nós se formulou e se consolidou nos últimos 80 anos uma “sociologia espontânea” do senso comum que, graças à pobreza de nossos debates acadêmicos e públicos, tem toda a chance de continuar imutável pelos próximos 80 anos. Tomou-se a autoridade científica de Max Weber e incorretamente de modo a-histórico e sem qualquer rigor conceitual, se construiu a noção de um “patrimonialismo” apenas estatal. Quem frauda o público no mercado – como é a ordem do dia no capitalismo nacional e internacional – é percebido como “gênio financeiro” e só acontece corrupção no Estado. Essa concepção é tão naturalizada hoje em dia que se imagina que todos os problemas do Brasil são decorrentes da corrupção no Estado. Isso infantiliza uma sociedade já conservadora e egoísta que jamais assumiu a responsabilidade pela exclusão social de tantos, cuja mão de obra barata é a base de todos os privilégios das classes média e alta brasileiras.
Nossas classes dominantes estão entre as poucas no ocidente que não precisam contratar imigrantes para os trabalhos sujos e pesados porque já possuem “em casa” um exército de desclassificados dispostos a todo tipo de trabalho pesado e degradante. Como toda a “culpa” é convenientemente atribuída ao Estado, joga-se sempre a responsabilidade num “outro” abstrato que ninguém nunca nomeia de modo claro. Os setores dominantes e privilegiados sequer precisam perder sua boa consciência e ainda se imaginam muito humanos, fraternos e calorosos como preconiza nosso mito nacional. Isso é justificação convincente o bastante para uma dominação social para os próximos 500 anos. A Índia da noção do carma permaneceu sem mudanças sociais importantes por dois mil anos. Temos boas chances de chegar lá.
IHU On-Line – Qual é situação da classe média no Brasil? Como ela se transformou ao longo do tempo?
Jessé de Souza – Essa é uma excelente questão que precisa ainda ser estudada. Na verdade, este é o próximo estudo que gostaríamos de fazer de modo a concluir a trilogia de estudos teóricos e empíricos acerca das classes sociais no Brasil contemporâneo iniciada com o estudo da “ralé” e continuada com o estudo sobre a assim chamada “nova classe média”. Pretendemos estudar em conjunto as classes médias e altas num único estudo sobre as classes dominantes entre nós. É um estudo difícil e complexo já que as classes médias e as classes altas são compostas de muitas frações com enorme multiplicidade de tipos humanos. Além disso, há que se estudar a eficácia institucional da dominação social, muito especialmente a imprensa e a esfera pública como um todo. Como se reproduz indefinidamente uma sociedade tão injusta e desigual como a nossa? Essa é questão que temos de enfrentar neste trabalho futuro.
IHU On-Line – O senhor afirma que apenas análises economicistas são insuficientes para explicar a complexidade da desigualdade. A desigualdade social não se resume a aspectos econômicos? Quais são as causas profundas da desigualdade brasileira?
Jessé de Souza – Essa é uma excelente questão. De fato, existe uma “cegueira” típica de qualquer sociedade capitalista complexa, que se torna ainda mais virulenta entre nós pela pobreza de nosso debate público, que é a percepção exclusiva de aspectos econômicos ou “materiais”. Na verdade, as pessoas são movidas no seu comportamento também por aspectos morais o tempo todo. Todas as ações sociais são determinadas ao mesmo tempo por estímulos morais e econômicos, mas apenas os econômicos são visíveis e de modo tal a não percebermos a justificação moral de toda atividade econômica. Só percebemos o efeito do dinheiro e das coisas materiais pelos quais lutamos todos os dias. Isso decorre do fato dos estímulos morais serem “inarticulados”, ou seja, não são quase nunca percebidos ou tematizados. Quando as justificações morais são percebidas e debatidas abre-se espaço para perceber a distância entre justificação e realidade. Então, mudanças importantes podem acontecer na vida social e conseguimos aprender coletivamente como as lutas dos trabalhadores e das mulheres nos últimos séculos demonstram.
Mas, na vida cotidiana, a regra é a fragmentação de todo discurso de modo a que se compre informação deslocada e fora de contexto como se fosse reflexão. Esse mecanismo de tornar as pessoas tolas é realizado, por exemplo, pela imprensa dominante todo dia quando fragmenta todas as discussões a partir do interesse na reprodução dos privilégios e seleciona o que deve ser conhecido ou não. Não se percebe, por exemplo, que todos somos responsáveis pela exclusão social de tantos, mantida, pelas classes do privilégio, pelos piores motivos instrumentais como poupar o recurso mais escasso, o tempo, para investir em educação ou trabalhos bem pagos enquanto outros fazem o trabalho pesado e não reconhecido. Isso não tem nada a ver com a corrupção real ou fantasiosa em Brasília, mas a “fábrica de escândalos” manipula o infantilismo e o narcisismo do público tornando irreconhecível qualquer causa profunda dos conflitos sociais mais cotidianos. Também jamais se questionou a ajuda a banqueiros com dinheiro público, como nos anos 1990 entre nós, ou os empréstimos subsidiados pagos com dinheiros dos trabalhadores para grandes industriais pelo BNDS. Mas se o Estado investe 0,5 do PIB, investimento irrisório e amplamente insuficiente, com os mais pobres, acontece uma gritaria geral como vimos nas eleições. Para mim, é fundamental uma esfera pública mais crítica e plural como mecanismo de conscientização social. É muito difícil um Estado progressista em meio a uma sociedade tão conservadora.
IHU On-Line – O que o senhor define como “ralé estrutural” em seus estudos? Como se manifesta na sociedade brasileira?
Jessé de Souza – A “ralé”, como chamo provocativamente essa classe de infelizes e desesperados, num país que nega, esconde e eufemiza todos os seus conflitos e problemas, nunca foi, na verdade, percebida como uma “classe social” entre nós. Ela é (não) percebida fragmentariamente todo dia na luta entre bandido e polícia no Rio de Janeiro, no tema da criminalidade em geral, na inoperância do SUS e da escola pública, no gargalo da mão de obra sem qualificação, no tema do conservadorismo das igrejas evangélicas, etc. São todos temas fragmentados, sem qualquer relação entre si, impedindo a percepção e reflexão do aspecto central e nuclear que o fato de que todos esses fenômenos remetem a “uma” classe apenas entre nós. A fragmentação da percepção da realidade social é a forma por excelência de cegar as pessoas e torná-las tolas. Por conta disso todos os grandes jornais e todas as grandes cadeias de TV fragmentam – como veículo da reprodução de todos os privilégios injustos – seu conteúdo de modo a amesquinhar reflexão à informação descontextualizada.
No nosso caso, também o debate acadêmico faz a mesma coisa. A presença de uma “ralé” muito numerosa, que não se confunde com o subproletariado marxista, porque não pode ser utilizada como exército de reserva, devido a não ter as pré-condições para o trabalho técnico no setor competitivo do capitalismo, que se constitui uma clase moderna – pois se forma pela ausência de incorporação dos capitais impessoais, como o capital cultural ou técnico, do mundo moderno –, é o que marca o Brasil como sociedade. Essa classe é explorada pelas classes média e alta como mão de obra barata para todo tipo de serviço pesado e mal pago. Ainda que a “ralé” seja uma classe universal – certamente a mais numerosa do globo –, todos os problemas que ligamos secularmente ao atraso social brasileiro e localizamos falsamente em outros lugares, advém da manutenção indefinida dessa classe de abandonados sociais. Os recentes programas sociais mitigam as formas mais duras da realidade da fome, mas não tocam no principal: possibilitar que a “ralé” deixe de ser “ralé”.
IHU On-Line – Fatos, entre outros, como a polêmica em torno do tema do aborto e a crescente homofobia revelam que a sociedade brasileira está mais conservadora?
Jessé de Souza – Sem dúvida que as religiões evangélicas – como quase toda religião – exigem o “sacrífico do intelecto”, o que não ajuda à tolerância nem ao desenvolvimento das capacidades reflexivas dos seres humanos. Em troca disso, essas religiões oferecem o que as famílias dessas pessoas – quase sempre os mais pobres – ou o Estado nunca lhes deram: autoestima e força para continuar tentando numa vida quase sempre sem perspectivas reais. Muito pior para mim é o conservadorismo dos setores privilegiados que se imaginam “europeizados” e modernos e não conseguem ver um palmo além do próprio umbigo.
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Ralés, batalhadores e uma nova classe média. Entrevista especial Jessé de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU