22 Mai 2010
Ao refletir sobre as consequências da crise na zona do Euro, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo defende que “o tipo de capitalismo que vai surgir dependerá muito da luta social, da formação do imaginário popular, que, na verdade, não depende muito dos iluminados, mas da capacidade de informação e compreensão do que realmente aconteceu”. E completa: “isso vai se formar na luta política”. Na entrevista que concedeu, por telefone, para a IHU On-Line, ele antevê que “esse capitalismo dos últimos 30 anos, sobretudo desde a desfiguração do estado do bem-estar na Europa e do avanço do projeto neoliberal, é um modelo que terminou”. Na visão de Belluzzo, “o que está em risco nesse momento - e a crise europeia mostra isso com muita clareza - é a infraestrutura do mercado, constituída pelo crédito e pela questão da riqueza monetária e financeira. Essa infraestrutura está colocando em risco o funcionamento do mercado, da oferta de trabalho, da demanda de bens etc. E a manutenção dessa relação de domínio pode jogar a sociedade numa crise muito prolongada”. No entanto, enfatiza: “teremos ainda muito chão para percorrer até chegar a uma reconfiguração das relações entre as finanças, mercados, empresas e governos”.
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano de Planificação-Cepal, e doutor em Economia pela Universidade de Campinas - Unicamp. Atualmente, é professor do Instituto de Economia da Unicamp e editor da revista Carta Capital.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que capitalismo se configura a partir da crise do Euro e das demais crises financeiras internacionais que assistimos desde 2008?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Isso é algo que não dá para determinar, mas podemos fazer conjeturas. O que está claro é que o tipo de capitalismo que vai surgir dependerá muito da luta social, da formação do imaginário popular, que, na verdade, não depende muito dos iluminados, mas da capacidade de informação e compreensão do que realmente aconteceu. Isso vai se formar na luta política. Vejamos a reação dos gregos e a reação dos sindicatos na Espanha. Teremos que repensar o papel do povo e como ele se reorganiza para elaborar coletivamente essa proposta. O que posso antever é que esse capitalismo dos últimos 30 anos, sobretudo desde a desfiguração do estado do bem-estar na Europa e do avanço do projeto neoliberal, é um modelo que terminou. Talvez as forças que o sustentam vão tentar mantê-lo ainda na UTI, mas ele não vai conseguir sobreviver, pois não tem viabilidade, não há compatibilidade com as promessas de vida boa e decente para todos os cidadãos, portanto, de manutenção e garantia dos direitos de cidadania, que foram conquistados a ferro e fogo nos anos 20, 30 e 40, depois de duas guerras mundiais. Isso não foi dado de graça, mas instituído e universalizado para os países desenvolvidos nos anos 50 e 60. Esse estilo de sociedade, de vida e de convivência foi progressivamente sendo deformado pelo avanço do projeto neoliberal.
Esse momento da vida do capitalismo terminou. O que vai ficar no lugar é muito difícil de projetar, mas, certamente, teremos mudanças importantes. Mesmo os governos mais conservadores veem, no predomínio do capital financeiro, um dos fatores dos desequilíbrios. Isso está claro. Provavelmente, a finança, como uma instância coletiva da vida econômica (porque é a gestão de massas de recursos que pertencem a muitos, envolve a gestão do crédito, que, na verdade, é uma incumbência privada de um bem público), passará a ser fortemente regulada pelo Estado, se é que não vai ocorrer uma crescente estatização dessas relações para que o próprio mercado possa sobreviver.
O que está em risco nesse momento - e a crise europeia mostra isso com muita clareza - é a infraestrutura do mercado, constituída pelo crédito e pela questão da riqueza monetária e financeira. Essa infraestrutura está colocando em risco o funcionamento do mercado, da oferta de trabalho, da demanda de bens etc. E a manutenção dessa relação de domínio pode jogar a sociedade numa crise muito prolongada.
IHU On-Line - Quais as consequências sociais da redução do estado de bem-estar social? Qual sua análise de uma possível revolta social?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma questão central, assim como a emergência das massas, no final do século XIX e começo do século XX, foi uma questão colocada para o capitalismo e que só se resolveu depois de 30, 40 anos de crises e conflitos. A grande panaceia, que foi recomendada pelos liberais - e em seguida por muitos outros -, da flexibilização dos mercados de trabalho, na verdade, não conseguiu abolir todas as conquistas do estado de bem-estar, senão estaríamos hoje numa situação de conflito aberto. No entanto, o nível de proteção caiu muito.
O desemprego nos países que executaram essas políticas, desde países do leste europeu, recém saídos do socialismo real, até os países que conseguiram construir estruturas de produção muito avançadas, desenvolvem o desmonte ou a desfiguração social, o que levou a um aumento brutal das taxas de desemprego. Estamos diante de um novo acordo social que não vai ser feito sem vítimas. Mas isso não será dado pelos poderosos de graça. É só observar o que aconteceu no mercado de trabalho americano. Ficou claro que os empregos criados foram de baixa qualidade e baixa remuneração, o que explica a queda do rendimento médio naquele país. A queda foi impressionante para a maioria da população, e foi substituída pela fúria do endividamento, o que tornou a economia “imanejável” num determinado momento.
Não sei como isso será encaminhado, porque noto, no governo americano e mesmo nos governos europeus, uma certa hesitação e um comprometimento muito grande das lideranças com a dominância dos mercados financeiros. Isso será muito solapado pelo inconformismo popular em função dessas relações. Mas teremos ainda muito chão para percorrer até chegar a uma reconfiguração das relações entre as finanças, mercados, empresas e governos.
IHU On-Line - Pensando em reformar o antigo modelo econômico e social que rege nossas sociedades, o que faria parte de um híbrido modelo novo? É possível, nesse novo modelo, contemplar a questão ecológica?
Luiz Gonzaga Belluzzo – A questão ecológica é central hoje, bem como o estilo de desenvolvimento. Não podemos nos tornar antinômicos ao desenvolvimento econômico, à melhoria na vida das pessoas, por conta das conquistas que já foram realizadas no âmbito tecnológico e produtivo. O problema é que é preciso tornar cada vez mais disponíveis para a maioria da população, e em condições de sobrevivência humana adequada, esses benefícios que foram criados pelo progresso tecnológico. Então, é preciso relembrar o que muitos autores já disseram; e vou relembrar especialmente Keynes, nas Perspectivas econômicas para os nossos netos, que antecipou corretamente que teríamos uma abundância tanto na produção de alimentos como na produção de outros bens materiais.
Mas essa abundância precisaria ser muito bem conduzida para que os homens aumentassem o seu tempo livre, com a cultura, entretenimento, esporte, para que pudessem viver uma vida mais completa. Isso é o que está inscrito nas consignas da Revolução Francesa e do Iluminismo: que os homens tenham uma vida mais completa, no sentido de mais humana, e, como ser histórico, desenvolvam as potencialidades e inventem outras além daquelas que já possuem. Essa que deve ser a regra. Isso não pode ser deixado à espontaneidade dos mercados, assim como o homem também sabe que não pode deixar certos processos entregues à fúria da natureza. E, ao mesmo tempo em que não se deve provocar e machucar a natureza, também não podemos permitir que ela lance seus processos cegos em cima da vida humana. Isso é muito parecido com o que aconteceu com o mercado financeiro.
O que se disse, falou e escreveu sobre a racionalidade, sobre os mercados perfeitos, entregou o mundo a uma insensibilidade econômica, financeira e social que não pode mais ser tolerada. Isso só pode ser feito com uma disciplina em cima da movimentação e da negociação dos instrumentos que representam a riqueza abstrata. Mas as pessoas não estão interessadas nisso. Elas estão interessadas, no fundo, em viver decentemente, com uma diversidade de atividades, de estilos de vida e de instituições que possam satisfazer o desenvolvimento da chamada natureza humana. Aliás, o homem não tem natureza, ele é um ser histórico que desenvolve suas potencialidades a partir daquilo que consegue construir.
IHU On-Line - A crise abre que caminhos para os países emergentes? É possível, a partir desta perspectiva, vislumbrar uma mudança nos rumos da condução do capitalismo?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Esse é um fenômeno que estamos observando agora. Objetivamente, sem fazer nenhuma consideração de ordem política ou subjetiva, o Brasil, a China, a Rússia e a Índia já têm uma presença muito maior no comércio, na estrutura da produção mundial e politicamente estão ganhando espaço. Em minha opinião, estão sabendo conduzir isso com muita sabedoria, como mostra a recente intervenção do Brasil no caso do Irã. E isso contra toda a evidência de que os Estados Unidos não estão dispostos a aceitar qualquer acordo, porque interessa manter o demônio vivo; é preciso ter algum demônio para que o poder absoluto se afirme.
E o Brasil deu um passo importante, com muita cautela e habilidade para se intrometer entre esse impulso ao poder absoluto e o desejo de sobrevivência dos mais frágeis. Não se trata de justificar a atitude do Irã, mas vamos combinar que os Estados Unidos não querem, não desejam esse acordo, porque ele retira muitas das razões que movem a política americana. Do ponto de vista econômico e político, os países emergentes têm um papel muito importante de mediação e têm condições de fazer isso, não só na órbita das negociações econômicas, na reforma financeira internacional, na reforma monetária, mas também no que diz respeito à negociação política.
IHU On-Line - O modelo chinês indica novos caminhos para a economia e o capitalismo? O Brasil deve seguir esse modelo?
Luiz Gonzaga Belluzzo - O modelo chinês tem também a sua determinação histórica. Ele surge no momento em que a economia mundial estava se movendo, sobretudo por conta da expansão da grande empresa americana, em direção à chamada globalização. O modelo chinês é fruto de uma percepção da reconfiguração geoeconômica que estava acontecendo no mundo, e a China foi uma das maiores beneficiárias disso. O modelo chinês combinou o máximo de controle com o máximo de concorrência e construiu, na China e na Ásia, um bloco manufatureiro muito importante. Acontece que a crise vai exigir que a China também altere as suas formas de crescimento. Ela dependia muito do consumidor americano, que hoje está comprometido com o alto grau de endividamento. E não é só isso. Não é possível reproduzir o modelo americano, esse que prevaleceu nos últimos anos, com endividamento alto e queda dos rendimentos reais. Isso tinha como contrapartida o crescimento industrial da China, a produção com baixo custo, com grande eficiência e a graduação tecnológica muito rápida. A China foi importante para o Brasil porque, enquanto demandante de commodities, nos proporcionou um período de acumulação de reservas e de ganhos fiscais importantes. O Brasil conseguiu se equilibrar por conta da disponibilidade de recursos naturais. Mas acho que a China terá que reconfigurar seu estilo de desenvolvimento e se apoiar menos nas exportações e mais na demanda interna. Mas isso vai depender muito da capacidade e da disposição dos americanos em abrirem mão do controle exclusivo da moeda reserva. Isso tem uma importância crucial, porque diz respeito a como as relações de débito e crédito são denominadas; como o faturamento das exportações e importações é denominado; como as moedas nacionais se relacionam com a moeda reserva. Tudo isso está em questão, e não sei em quanto tempo vai se resolver. Talvez demore muito e, por isso, viveremos um tempo de confiança, descontinuidades e conflitos. No entanto, penso que é impossível não se levar em conta que essa constelação de países, especialmente a China, tem um papel crucial a desempenhar no cenário internacional.
IHU On-Line - Qual a importância da democracia nesse cenário mundial em que os eleitores e os governos nacionais podem muito pouco?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Antes eu falava da luta social, e agora retomo o assunto. A democracia hoje tem tido um significado bastante limitado, quase que restrito ao momento das eleições. A participação popular nas decisões cruciais tem sido muito limitada, por conta do predomínio desta instância de controle e domínio financeiro. Vamos ver como os regimes e as sociedades, sobretudo a sociedade americana, responde a esse desafio. No caso dos Estados Unidos, estamos observando um crescimento impressionante dos movimentos conservadores. Isso tende a crescer na Europa também por conta das dificuldades de emprego e dos conflitos com os imigrantes. Sempre, nesses momentos, a democracia verdadeira fica em questão e, ao mesmo tempo em que temos o surgimento de movimentos sociais progressistas mais consistentes, temos o crescimento das forças conservadoras de direita antidemocráticas. O que está em questão é a chamada radicalização da democracia.
IHU On-Line - Como a questão do desemprego se enquadra neste cenário de crise do Euro?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma questão central, que não será resolvida por uma retomada do desenvolvimento convencional, tanto que as taxas de desemprego continuam muito altas, apesar, por exemplo, da economia americana estar se recuperando ligeiramente. As atividades tradicionais do mercado não vão gerar muito emprego. É preciso que os governos se empenhem nas políticas de emprego, em criar formas novas, relacionadas com a cultura, com o entretenimento, com o esporte. É preciso inventar o emprego. E, por isso mesmo, o governo deve aumentar o controle sobre a decisão de investir. É preciso socializar isso, senão teremos problemas de desajustes sociais sérios.
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O momento neoliberal do capitalismo terminou. Qual será o novo momento? Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU