30 Abril 2010
Na visão do economista Andrea Fumagalli, a passagem do capitalismo fordista ao cognitivo, ou biocapitalismo, é caracterizada por dois elementos principais. O primeiro é a centralidade dos mercados financeiros, e o segundo é “que o processo de acumulação e valorização tende a fundar-se sempre mais sobre o envolvimento da vida no trabalho”. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, por e-mail, Fumagalli afirma que “a crise das finanças é (...) crise da governança financeira do biopoder atual. Ficou enfraquecido o mecanismo de governança sócio-econômica, baseado no individualismo proprietário e na ideologia neoliberal, que caracterizara a passagem do capitalismo fordista industrial ao cognitivo bioeconômico”.
Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália.
Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007), e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).
Andrea Fumagalli estará na Unisinos no próximo mês de setembro, participando do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, quando falará sobre “A financeirização como forma de biopoder”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que marca a passagem do “capitalismo fordista” para o “capitalismo cognitivo”?
Andrea Fumagalli - A passagem do capitalismo fordista ao cognitivo, ou biocapitalismo, é caracterizada por dois elementos principais. O primeiro é a centralidade dos mercados financeiros. Eles, de fato, proveem o financiamento da atividade de acumulação, sobretudo no caso das produções cognitivas imateriais (conhecimento e espaço). Em segundo lugar, na presença de mais-valias, desenvolvem o papel de multiplicador da economia e de redistribuição da renda. Trata-se de um multiplicador financeiro que induz uma distorção da renda diversamente daquele real keynesiano baseado no “deficit spending”. A polarização dos rendimentos que ele obtém aumenta os riscos de insolvência dos débitos que estão na base do crescimento da mesma base financeira e abaixa o nível médio dos salários. O endividamento crescente das famílias americanas e a insolvência referente aos mútuos imobiliários – que marcaram o elemento desencadeador da crise – não são senão o efeito de um processo de distribuição regulado e comandado pelos próprios mercados financeiros. Mas, a fusão das finanças não se exaure aqui. Nos últimos 30 anos, ela substituiu o Estado como assegurador social (canalização forçada de parte crescente dos rendimentos do trabalho – previdência, instrução, saúde). Deste ponto de vista, os mercados financeiros representam a privatização da reprodução da vida, uma vez ultrapassada a sociedade salarial. São, portanto, um biopoder. Ou melhor, enquanto biopoder, as finanças são um dos elementos do comando bioeconômico sobre as forças do trabalho vivo. A crise das finanças é, portanto, crise da governança financeira do biopoder atual. Ficou enfraquecido o mecanismo de governança sócio-econômica, baseado no individualismo proprietário e na ideologia neoliberal, que caracterizara a passagem do capitalismo fordista industrial ao cognitivo bioeconômico.
O envolvimento da vida no trabalho
O segundo elemento é que o processo de acumulação e valorização tende a fundar-se sempre mais sobre o envolvimento da vida no trabalho, e isso ocorre, em primeiro lugar, com a utilização prevalente da linguagem e da atividade relacional. A linguagem está na base dos processos de aprendizagem, enquanto a capacidade relacional determina os processos de rede (network). Linguagem e rede são os fatores que constituem a geração e a difusão do conhecimento como motor nevrálgico da produção de mais-valia. Um primeiro efeito é que se reduz o processo de distribuição da renda, fundado na possibilidade de um pacto social que ligue a estrutura salarial às modalidades de acumulação material. O segundo é interiorizado no centro do corpo humano, e isso produz novas formas de alienação e novas doenças de estresse psicofísico.
IHU On-Line - O senhor afirma que diferentemente do paradigma fordista anterior, na nova dinâmica do capitalismo, alteram-se as coordenadas espaço-tempo. Como isso ocorre?
Andrea Fumagalli - A imaterialidade, hoje presente em boa parte da atividade de produção, torna impossível uma mensuração adequada da produtividade individual e, por conseguinte, social. A cooperação produtiva produz “des-medida”. Tal desmedida redefine de modo novo o tempo e o espaço. O que hoje aparece como não mensurável (des-medida) é a gestão do tempo e do espaço. Não é por nada que, após uma secular redução, o tempo efetivo de trabalho tenha constantemente aumentado nos últimos trinta anos. O espaço físico-territorial e o espaço virtual da Internet agitam os novos conflitos. Não é por acaso que a questão ecológica, ou seja, a sustentabilidade do território e do ambiente, tenha chegado a um ponto de extrema criticidade. E não é por acaso que, sobre a regulamentação da Internet, se jogue uma partida decisiva, tanto no que se refere aos direitos de propriedade intelectual como no referente às formas de controle social.
IHU On-Line - O conceito de mais-valia proposto por Marx precisa ser revisto com o advento do capitalismo cognitivo? Como se dá hoje a mais-valia?
Andrea Fumagalli - No capitalismo cognitivo (biocapitalismo) é preciso redefinir o conceito de trabalho produtivo. Hoje assistimos a uma extensão do trabalho produtivo que amplia a base da acumulação. O que, no fordismo, era considerado “capitalisticamente” improdutivo, hoje se torna produtivo. Um exemplo é fornecido no trabalho de reprodução (processo de feminilização do trabalho) e na atividade de consumo (processo de brandização, mercificação dos símbolos e da linguagem, bem como do espaço, “commodification e gentrification”). Já que tais processos são resultados de uma atividade social que se desenvolve no tempo (ou seja, é dinâmica: economias de aprendizagem e de rede), a mais-valia é hoje definível como expropriação (desfrutamento, exploração) da cooperação social.
IHU On-Line – A categoria general intellect sugerida por Marx tem sido revisitada. Qual é a sua novidade no denominado capitalismo cognitivo?
Andrea Fumagalli - Nos Grundrisse (fragmento sobre as máquinas), o conceito de “general intellect” tinha sido pensado por Marx como o resultado do progresso científico encarnado na máquina. Hoje, o general intellect tem a ver com o “bios” do gênero humano. Assistimos a um modelo antropogenético da produção, onde o corpo humano (Mente, sentidos, coração, nervos) se tornou o capital “maquinino” [maquinal] da produção.
IHU On-Line – Por que o modo de produção hoje assume características “biopolíticas”?
Andrea Fumagalli - As formas de comando do capital sobre o trabalho são formas de controle e de comando sobre as faculdades cognitivas dos seres humanos, e não apenas disciplinamento do corpo. A disciplina da fábrica, atuada através dos tempos pela máquina física, tende hoje a ser substituída por processos de controle social e cerebral, que impelem para formas de autocontrole e autorrepressão. Hoje, o biopoder é controle dos processos formativos e construções de imaginários que tendem a subsumir a vida dos indivíduos.
IHU On-Line – Onde se situa e como se manifesta a resistência operária nos dias de hoje?
Andrea Fumagalli - A mais-valia é hoje gerada, atribuindo valor às “diferenças”. O processo de acumulação não é caracterizado por rigidezes dicotômicas (tempo de trabalho – tempo livre, produção – reprodução, produção – consumo, trabalho manual – trabalho intelectual etc.), mas se fundamenta sobre a exploração flexível das individualidades através dos imaginários e o resgate da necessidade (precariedade). O processo laboral se individualizou. Isso significa que não existe mais uma classe homogênea de trabalhadores, tornada coesa por uma prestação laboral comum (exemplo: o operário-massa). O mundo do trabalho é fragmentado e dividido. Cada segmento do mercado do trabalho pode desenvolver resistências e conflitos, mas sozinho não está em condições de atingir uma massa de impacto suficiente para incidir em nível social. A resistência operária é uma delas, mas isolada não basta. É preciso acrescentar à luta e à resistência em cada condição laboral a capacidade de desenvolver processos de recomposição social. E tais processos só podem intervir no território (porque o território é hoje o lugar da produção) e no terreno do Welfare como instrumento de remuneração (não de assistência) e a vida posta a trabalhar. Por isso, sou favorável à proposta de uma renda básica incondicionada como instrumento de recomposição social.
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O comando bioeconômico do trabalho vivo. Entrevista especial com Andrea Fumagalli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU