02 Fevereiro 2010
A obra mais conhecida de Albert Camus chama-se A Peste. Nesse livro, considerado um dos grandes romances do século XX, segundo o professor Waldecy Tenório, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, “é verdade que Camus recusa Deus, mas também é verdade que ele resgata o sagrado e o sagrado, para Camus, é o amor, a amizade, o companheirismo, enfim, tudo aquilo que é humano”. Para Waldecy, “o tema do absurdo perpassa o pensamento de Camus como uma espécie de coquetel Molotov e é, por assim dizer, o elemento explosivo de sua obra”.
Waldecy Tenório estudou no Seminário de Olinda, é licenciado em Letras Clássicas e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. É autor de A Bailadora Andaluza: a Explosão do Sagrado na Poesia de João Cabral e de vários ensaios sobre ficção e teologia. Foi pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e é atualmente professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Há 50 anos, no dia 4 de janeiro de 1960, morria Albert Camus. Em linhas gerais, que aspectos de sua obra merecem ser rememorados em nosso contexto histórico e social?
Waldecy Tenório - Para começar, demos a palavra a Camus, deixemos que ele fale, ou melhor, que ele próprio inicie a entrevista. “Um grande escritor – ele nos diria – sempre traz consigo seu mundo e sua prédica”. Aqui a etimologia nos dá algumas pistas. O verbo latino praedicare, de onde vem a palavra prédica, sugere, entre outras coisas, a ação daquele que fala diante dos outros e em defesa dos outros, um pouco como os profetas bíblicos. Ora, Camus é, em nossos tempos, a grande testemunha de defesa dos homens. Ele e Sartre, todos sabemos, são irmãos inimigos. Mas ao contrário de Sartre, para quem o homem é uma paixão inútil, o homem, na visão de Camus, é algo sagrado. Por que rememorar hoje o seu pensamento? Sem baixar o tom, falando da pilantocracia incrustada na política brasileira, e também na economia, não vivemos, em todo o mundo, cercados pela peste e os seus horrores? Os ratos não estão soltos por aí? Não vivemos tempos de assassinos, como diz Henry Miller, e de corrosão do caráter, como insiste Richard Sennett? Retomo por isso uma frase que resume a ética de Camus: “... É uma ideia que talvez faça rir, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade”. Então, é urgente e necessário ouvir a voz de um escritor para o qual, como ele mesmo disse ao receber o Prêmio Nobel, em 1957, escrever é iluminar os problemas que se colocam à consciência dos homens.
IHU On-Line - A tese de doutoramento de Camus foi sobre Santo Agostinho. Qual o seu interesse na obra do bispo e filósofo?
Waldecy Tenório - Minha primeira reação é lembrar as “afinidades eletivas” de Goethe. Em todo caso, há muitas afinidades entre os dois. Italo Calvino já nos lembrou a obviedade de que a história de cada um de nós começa em torno de nossa casa. Se é mesmo assim, digamos logo que a mãe África é a primeira afinidade. A África, o mar, o sol. E depois, o gosto pela leitura e pela escrita. São artistas, os dois. No caso de Camus predomina o gosto pelos valores antigos, pois, em certo sentido, ele é grego. Agostinho também tem algo da Grécia, se recordarmos a influência de Platão. Camus talvez tivesse alguma curiosidade em saber como um antigo, como Agostinho, recebia os valores cristãos. Daí ter sido um grande leitor das Confissões. De qualquer maneira, eles têm muita coisa em comum: são apaixonados, desesperados, atormentados. Concordam e discordam. Quando Camus lê em Agostinho que “a medida de amar é amar sem medida”, logo acrescenta num tom de desafio: “Mas na terra”. Não é por acaso que Camus vai estudar as relações entre o helenismo e o cristianismo no pensamento de Agostinho.
"Camus é, em nossos tempos, a grande testemunha de defesa dos homens"
IHU On-Line - É conhecida a expressão de Camus: “Eu não acredito em Deus e não sou ateu”. Como podemos entender essa afirmação?
Waldecy Tenório - Leiamos o começo de sua obra, Núpcias. “Na Primavera Tipasa é habitada pelos deuses e os deuses falam no sol, no odor dos absintos, no mar revestido por uma couraça de prata, no céu de um azul inclemente, nas ruínas cobertas de flores e na luz que jorra aos borbotões por entre as pedras amontoadas”. Como Holderlin, ele é filho dos deuses. Mas quando se rompe a harmonia cósmica e os homens são abandonados no sofrimento, na solidão e na dor, Camus denuncia o “ofício ridículo” dos deuses e os deixa. Leiamos agora a última frase do mesmo livro: “A terra. Neste grande templo abandonado pelos deuses, todos os meus ídolos têm pés de barro”. Sim, Camus recusa os ídolos de pés de barro, e os abandona. No entanto, não se livrará nunca de uma certa nostalgia, uma ferida que não sara, e daí o paradoxo: não acredita em Deus mas também não é ateu... Mas se temos de jogar com o paradoxo, podemos dizer que ele é ateu, sim, pelo menos no sentido do Juan Luis Segundo de A História Perdida e Recuperada de Jesus de Nazaré. Lembre-se que Segundo escreve este livro para os “ateus potenciais”. Quem são eles? Os que são capazes de colocar certos valores humanos acima dos valores religiosos, exatamente como Camus. Aliás, só estes, no dizer de Segundo, têm condições de compreender Jesus. Sim, Camus é filho dos deuses, mas Camus é ateu, qual o problema? Ninguém melhor do que um ateu para ter a sensibilidade do divino.
IHU On-Line - Como podemos reler sua obra a partir de uma análise metafísica, transcendente, até mesmo religiosa, sem “batizá-lo”?
Waldecy Tenório - Vou introduzir aqui uma pergunta já formulada por George Steiner: Existe uma obra literária de certa ordem de grandeza que possa se abster do religioso e do metafísico? O próprio Steiner responde que não. É claro, portanto, que podemos reler a obra de Camus – e esse é mais um projeto que venho adiando e que vão me cobrar no Juízo Final - a partir de uma perspectiva teológica. A obra de arte oferece n possibilidades de leitura. Só que a teologia é um campo minado e até Mefistófeles sabe que nela “há caminhos tortuosos e há mil peçonhas”. Portanto, é preciso limpar o terreno e dizer logo: não é a tenebrosa teologia do poder que interessa à literatura. Essa teologia que se julga única doutrina correta, que condena e produz anátemas, não é ela que interessa. É outra coisa, é aquela sensibilidade pelo divino capaz de unir os homens, cada um na sua crença e cada um na sua esperança. Tirando assim as ervas daninhas do terreno, é possível ver agora o elemento religioso pulsando no transfundo da obra de Camus. Uma obra, aliás, cujo sentido pode ser resumido no título de um quadro de De Chirico: “Nostalgia do infinito”. Mas não queiramos batizar Camus.
"Ninguém melhor do que um ateu para ter a sensibilidade do divino"
IHU On-Line - Que livros de Camus mais manifestam uma preocupação com o sagrado e a transcendência?
Waldecy Tenório - Se falei desse título, “Nostalgia do infinito”, é porque ele expressa bem a relação da arte, diria que, sobretudo, o cinema e a literatura, com o sagrado e a transcendência. Essa relação sempre existiu. Leiamos o começo da Ilíada: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...”. Octávio Mendes Cajado, que traduziu os Clássicos Garnier para a Difel, põe uma nota de pé de página explicando que Homero conhece a palavra “Musa”, mas prefere a palavra “Deusa”. A confusão entre Musa e Deusa, ou seja, poesia e teologia, é frequente em toda a história da literatura. Podemos pular de Homero para Dante, e é a mesma coisa. E na modernidade, depois que Joyce transpõe para a literatura o conceito teológico de epifania, ninguém mais tem o direito de desconhecer essa relação, como vimos anteriormente em Steiner. De modo que o sagrado e a transcendência estão presentes em todos os livros – seria difícil apontar um ou outro - de Camus, nem que seja de forma clandestina. Mas se for inevitável indicar um livro, esse livro é A Peste. Nesse livro, um dos grandes romances do século XX, é verdade que Camus recusa Deus, mas também é verdade que ele resgata o sagrado e o sagrado, para Camus, é o amor, a amizade, o companheirismo, enfim, tudo aquilo que é humano.
IHU On-Line - Em Camus, um paradoxo – alimentado também pelos fatos recém ocorridos no Haiti – parece estar presente: a inegável ideia da presença de Deus e, por outro, o inegável sentimento de sua ausência. Camus chega a alguma síntese?
Waldecy Tenório - Felizmente Camus não chega a nenhuma síntese. A síntese seria um conforto, uma espécie de descanso, mas Camus está sempre no exílio, e no exílio não tem moleza não, a briga com Deus é permanente. Olivier Todd, seu biógrafo, faz anotações interessantes. Na dissertação que escreve para obter o Diplôme d’Ètudes Supérieurs, Camus inclui uma citação de André Malraux: “Façamos o que for, somos gregos e cristãos”. É assim que ele se sente, meio dilacerado. A propósito de uma personagem de A Condição Humana, de Malraux, também escreve: “Ele sabe que tendemos incessantemente para Deus e que de fato o consideramos um objeto imutável a ser atingido”. Sobre o cristianismo, palavras inesperadas: “Durante muitos anos ele permanece a única esperança comum e o único escudo efetivo contra a infelicidade do mundo ocidental”. E como Camus se inquieta com o destino das pessoas, houve quem dissesse dele: “Aquele ateu tem um lado são-bernardo” numa alusão aos cães que resgatavam as pessoas perdidas nos Alpes. Diante disso, o próprio Todd escreve: “Esse jovem não é religioso, mas joga ininterruptamente com a ideia de Deus”. Mas você lembra os fatos recém ocorridos no Haiti e eu não queria estar em sua pele se a lembrança fosse feita diante de Camus. Você teria de enfrentar a cólera de Jó e a fúria do homem revoltado. Lembremos A Peste, mais uma vez. O Dr. Rieux e o padre Paneloux estão diante do leito de uma criança. Paneloux reza para que o menino não contraia a doença e, mesmo assim, o menino morre. O Dr. Rieux encara o sacerdote e desafia: Este, o senhor sabe, era inocente. E acrescenta: Eu me recuso a aceitar essa criação na qual os inocentes são condenados. É preciso ler A Peste pensando no ensaio famoso de Walter Benjamin: “O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”.
"Camus está sempre no exílio, e no exílio não tem moleza não, a briga com Deus é permanente"
IHU On-Line - Que aspectos históricos, pessoais e sociais de seu contexto permitem-nos compreender melhor o pensamento e a vida de Camus?
Waldecy Tenório - Estamos diante de um tema de Merleau-Ponty: esta obra a fazer exigia esta vida. Quando Camus diz que há a beleza e os humilhados e que espera não ser infiel nem a uma nem aos outros, sabemos do que ele está falando: da literatura e dos pobres. Da literatura ele se aproxima bem cedo, em sua juventude argelina, para não largá-la mais. Começa por escrever poemas que ele mesmo destrói. Lê tudo: Gide, Proust, Balzac, Kafka, os clássicos, enfim. Quanto à pobreza, ela é de nascença. O próprio Camus dirá mais tarde que conhece a vergonha e a vergonha de ter tido vergonha. Mais ou menos por essa época, há também as aulas de catecismo. Que cristão sobrevive a elas? Ensina-se uma espécie de teologia do terror. Os jovens argelinos interessam-se pelo sol, pelo mar, pelas moças, mas os padres só querem saber da impureza. Quantas vezes? E Todd registra a lengalenga que se segue: “Três Padre Nossos, três Ave Marias, o seguinte”. É isso o cristianismo, essa caricatura? Merlau-Ponty tem razão, a vida e a obra se misturam e, de alguma forma, tudo isso ajuda a compreender melhor o pensamento do nosso autor. Pelo menos, a desconfiança do cristianismo e os embates com Deus.
IHU On-Line - O essencial da obra de Camus foi erigido sobre o que chamou de “absurdo”. Como essa categoria perpassa o seu pensamento?
Waldecy Tenório - O tema do absurdo perpassa o pensamento de Camus como uma espécie de coquetel Molotov e é, por assim dizer, o elemento explosivo de sua obra. O ponto de intersecção de todas as angústias e naturalmente voam estilhaços para todos os lados. Deus precisa se esgueirar para não ser atingido mortalmente. “Sim, é assim mesmo, o mundo é absurdo; não, não há nada a esperar dos deuses”. Em que consiste o absurdo? Os homens morrem e não são felizes. E como vivem? Como prisioneiros que não sabem o que se quer deles ou para onde vão. Aqui não se pode deixar de lado o teatro de Camus, e é preciso ler Calígula. Ele quer a lua, ele quer o impossível. E quanto a Camus, “capaz de todos os excessos”, ele sonha com a transcendência. “Se é o nada que nos está reservado, façamos com que isso seja uma injustiça”.
IHU On-Line - Quais são os autores e ideias com os quais Camus mais dialoga?
Waldecy Tenório - Como a questão de Camus é iluminar os problemas que se colocam à consciência dos homens, ele estabelece um diálogo que começa com os gregos e atravessa os Padres da Igreja, principalmente Agostinho, que o horroriza e fascina. Em nossos dias, dialoga com Sartre, Malraux, Bergson. Anotemos a famosa polêmica com Roland Barthes. O cristianismo, o marxismo, o existencialismo são ideias que fazem parte do seu repertório. Desse modo, a presença de Camus no debate filosófico, na literatura e no teatro é extraordinariamente rica e atual. E há uma coisa, parece, que poucas vezes se lembra, que é o debate secreto que ele trava antecipadamente, mesmo sem querer, com a nouvelle theologie. Camus, que em determinado momento da vida pensou em ser dominicano, tem uma profunda relação com o Deus no qual não acredita. Poderíamos incluí-lo na categoria dos “cristãos anônimos” de Karl Rahner? O que não dá para negar é que o humanismo ateu de Camus está muito próximo do humanismo teológico do próprio Rahner e que ele dialoga também com a teologia da angústia de Urs Von Balthasar.
"A Peste pode ser lida como a suma literária e a suma teológica de Camus. Todo o seu pensamento está resumido nesse livro, sobretudo, a sua ética"
IHU On-Line - Em A Peste, um dos maiores clássicos de Camus, uma epidemia assola a cidade de Orãn, na Argélia. Em que aspectos essa obra ilumina a relação ser humano-Deus?
Waldecy Tenório - Como todos os grandes escritores, Camus não queria ser julgado por um único livro, mas pelo conjunto de toda a sua obra. Ele tem razão. Entretanto, se lembramos certos conceitos da estética da recepção, o leitor pode se dar o direito de dizer que A Peste pode ser lida como a suma literária e a suma teológica de Camus. Todo o seu pensamento está resumido nesse livro, sobretudo, a sua ética. Vivemos imersos na peste, é a nossa tragédia. E aí, qual o nosso papel como seres humanos? Cruzar os braços e cair no ceticismo paralisante que nos tornaria cúmplices dos ratos? O Dr. Rieux, personagem principal do romance, opta por curar os homens. “Simplesmente não me habituei a ver morrer”. Para ele, a peste é uma interminável derrota e o homem não pode morrer assim. E depois que todos se juntam, inclusive o padre Paneloux, a peste começa a ser debelada, “o doutor Rieux decidiu então redigir esta narrativa, que termina aqui, para não ser daqueles que se calam, para depor a favor das vítimas da peste e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a condenar”. Não sei se, na incursão teológica que fez pela Patrística, Camus teria lido Santo Irineu. De qualquer modo, quando ele toma o partido das vítimas, ouvimos o eco de uma frase distante: “A glória de Deus é o homem vivo”. O que dizer depois disso? Que ao se colocar assim ao lado dos homens Camus toma o partido de Deus? Talvez, secretamente, nunca iremos saber, ele já o tivesse tomado. Nos cadernos de 1935, ele faz uma anotação admirável: “Quando jovem, eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua e uma emoção permanente. E suas emoções, sua amizade, seus gestos nobres tinham para mim um valor de milagre, eram um absoluto efeito da graça”.
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Camus entre a emoção e a graça. Entrevista especial com Waldecy Tenório - Instituto Humanitas Unisinos - IHU