11 Agosto 2009
"Por mais traumática que seja a situação do Rio Grande do Sul, a partir de agora, a apuração e a efetiva responsabilização de quantas/os serviram-lhe de causa, vai entrar para a história do nosso povo, seja como uma concessão à mais vergonhosa tradição política que nos vicia, tudo confiado ao tempo de esquecer, seja pela mais rápida apuração da verdade, com os efeitos que dessa sempre se esperam", afirma Jacques Alfonsin em entrevista concedida via email e telefone para a IHU On-Line.
Segundo ele, "o povo gaúcho merece mais do que “transparência”, palavra que vai entrar no vocabulário político do nosso Estado como significando seu contrário, se o tão valorizado “devido processo legal” mais não conseguir, no caso, do que, a pretexto de ser obedecido, sepultar, de novo, aquela esperança".
Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Confira a entrevista.
Em sua opinião, a ação civil pública proposta pelos procuradores da República em Santa Maria, contra a governadora do Estado do Rio Grande do Sul, seu marido e alguns dos seus aliados, obedecem ao devido processo legal e podem gerar até um pedido de impeachment?
Somente no caso de a improbidade administrativa a ela e a eles atribuída pela petição inicial da referida ação não estar detalhada expressamente na lei 8429/92, lembrada pelos referidos procuradores, e constasse veto à iniciativa de qualquer do povo, quanto ao pedido de impeachment, na lei 1079 de abril de 1950, que trata dessa matéria, poder-se-ia responder negativamente a essa pergunta.
É claro que o debate judicial sobre a forma mais adequada para a instrução e o julgamento de uma determinada lide sempre é objeto de divergência e disputa, entre as partes nela envolvidas, ainda mais num caso rumoroso como esse, em que até a governadora do Estado é ré. Os ilícitos ético-jurídicos atribuídos à governadora e aos demais réus, contudo, estão previstos expressamente na referida lei 8429/92, especialmente no seu art. 9º, bastando sua leitura para se concluir que a gravidade das hipóteses de improbidade administrativa lá descritas exigem investigação, comprovação e julgamento.
De outra parte, no que se refere ao processo de impeachment, nunca é demais relembrar que ele, por sua intrínseca relação com a soberania do povo, a qualquer pessoa está franqueado, conforme a dita lei 1079 de abril de 1950 (arts. 75 e seguintes, especialmente).
Assim, justamente pela extraordinária relevância do que está em causa, não há como excluir a hipótese de os mesmos efeitos jurídicos buscados pelos procuradores da República em Santa Maria poderem ser alcançados por outras vias legais.
Para o senhor, que significação tem o vazamento das informações do processo na internet?
O chamado segredo de justiça se justifica em muitas ações judiciais para preservação de direitos humanos fundamentais de pessoas cujos atos já provados, ou a serem apurados nos processos respectivos, poderem comprometer de forma irreversível sua dignidade, honorabilidade, bom nome, entre outros valores, por atribuição de responsabilidades, não raro, até passíveis de sanção penal.
No caso, o fato de a juíza ter permitido cópias do processo, ainda que parciais, ao presidente da Assembléia Legislativa e ao da OAB/RS, já antecipava, segundo meu entender, que ela considerava, senão inexistente, pelo menos muito relativo o direito dos réus a tal segredo. Tanto a governadora como, senão todos, a maioria dos demais réus, já tinham sido investigados publicamente até numa CPI anterior, relacionada com o Detran, e numa ação que já tramitava na mesma comarca de Santa Maria, ajuizada sobre fatos direta ou indiretamente vinculados à essa que, agora, contou com a iniciativa de procuradores da República. Por isso mesmo, salvo melhor juízo, nem havia justificativa para que toda a sociedade gaúcha ficasse privada de conhecer, desde logo, o que nesse processo se apura e a toda ela interessa.
Nesse mesmo contexto, o argumento do advogado de defesa da governadora, de que ela não pode ser ré, em ações desse tipo, leva alguma chance de ser aceito, ao ponto de o processo contra ela não obter continuidade?
O fato de a juíza que está presidindo o processo não ter deferido, de imediato, a liminar que pleiteava o afastamento da governadora, não significa que essa já tenha sido julgada isenta de qualquer responsabilidade pelos fatos ilícitos que a ação civil pública lhe atribui. A decisão liminar se faz sobre um juízo de plausibilidade, apenas, e não de certeza. O juízo assim considerado de certeza somente a sentença futura revelará.
Tanto isso é verdade, que outras instâncias de apuração e julgamento do caso não ficam excluídas de cogitação, sejam consideradas como simultâneas, substitutivas ou subseqüentes ao dito despacho da juíza de Santa Maria. Pela Constituição do Rio Grande do Sul, por exemplo, arts. 83 e 84, a governadora responde perante o Superior Tribunal de Justiça pelos crimes comuns e perante a Assembléia Legislativa, pelos de responsabilidade. Sendo que, no primeiro caso, essa hipótese também é prevista no art. 105, inciso I da Constituição Federal. Nem o impeachment pode ser descartado, sem mais, conforme já ficou esclarecido anteriormente, dependendo do que, em alguma dessas instâncias legais de processamento for considerado fundamento jurídico hábil para isso.
Pela história desse tipo de ação, aqui no Brasil, pode-se ter a esperança de uma solução rápida para o caso?
Não. Melhor do que eu, o Dr. Helio Bicudo concedeu uma entrevista ao Estadão, transcrita em Notícias do Dia na página do IHU, na qual diz, textualmente, o seguinte: “A justiça no Brasil não funciona. Quando funciona, é lenta demais. As decisões ficam defasadas.” Isso é verdade. Agora, anos passados depois dos fatos criminosos pelos quais foram processados, quando representaram Poder Público em São Paulo, Paulo Maluf e Celso Pitta, para lembrar apenas dois dos mais famosos casos, é que começam a sofrer, assim mesmo ainda por ameaças mais sérias, os efeitos das decisões judiciais que os julgaram.
Essa lerdeza, é bom que se diga, não acontece contra pobres, como as/os sem-terra e as/ os sem-teto, por exemplo, vítimas freqüentes do abuso de poder e autoridade que marcam a política de segurança da mesma governadora que responde agora ao processo movido em Santa Maria; o respeito ao chamado “devido processo legal” que, tanto o advogado dela como alguns dos demais réus estão alegando não ter sido respeitado contra ela e eles, em raríssimos casos é, sequer, levado em consideração, quando os efeitos das sentenças vão recair sobre as/os primeiras/os.
Presunção de culpa em vez de inocência, inquéritos civis e criminais urdidos na surdina, cerceamento de defesa, execuções de liminares com requintes de humilhação e violência extraordinárias, inconstitucionalidades flagrantes, relacionadas com o desrespeito aos seus direitos humanos fundamentais do tipo liberdade de opinião, locomoção, reunião, associação, aos seus direitos sociais à saúde, à educação, à alimentação, à moradia, tudo isso tem passado como legal e justo perante o Judiciário aqui do Estado, exceções raras à parte, quando é gente pobre e multitudinária que figura como ré.
Enquanto o gás lacrimogênio era sentido como colírio no olho alheio, a passagem dessas ilegalidades e injustiças passava incólume pelo crivo das autoridades. Bastou que o tal devido processo ameaçasse se voltar contra elas, para que, agora, esbravejam contra a sua alegada desobediência, inclusive no que se refere ao segredo de justiça.
A ação movida em Santa Maria pode deflagrar uma campanha eleitoral antecipada?
Em grande parte, sim. Os partidos de oposição ao governo, certamente vão explorar ao máximo a extensão das suspeitas que ali se lança sobre a governadora, o seu marido e grande parte dos seus aliados. Não é pouca coisa, como a crise política já em curso testemunha. A ré e os réus, por sua vez, não terão tempo para mais nada que não seja o da sua defesa, o que vai deixar paralisada a administração pública do Estado.
O que isso pode significar em desmoralização e perda de votos, ainda que a apuração definitiva dos fatos não seja concluída antes das eleições, leva lenha para a fogueira dos debates que, a partir de agora, vão se ampliar com a CPI a se instalar na Assembléia Legislativa e os comentários diários que toda a mídia costuma divulgar sobre esse tipo de investigação. A tensão ideológico-política, nesse espaço decisório, faz subir a temperatura da discussão a níveis apaixonados que, em vez de alcançar o esclarecimento indispensável dos fatos, não raro descamba para o bate-boca inconseqüente. É de se esperar que, dessa vez, o interesse do povo ao qual o parlamento deve sua existência e trabalho, não seja ignorado em favor do cálculo eleitoreiro que a tribuna vai franquear. Não deixa de ser lamentável, a propósito, o efeito que os fatos motivadores da ação judicial têm sobre esse mesmo povo, relacionado ao conceito que ele faz da moral dos homens e das mulheres que o representam politicamente no Estado. O prestígio da atividade política, inclusive da partidária, já sofre de uma avaliação muito baixa e ruim, tendendo a ser julgado ainda com mais rigor, seja no que se refere aos atos praticados por eles/as, seja pelas históricas inimputabilidade e impunidade que aos mesmos se seguem.
Com o acesso que a Assembléia tem agora sobre os dados dessa ação judicial, o que pode acontecer? Existe alguma forma de a sociedade, enquanto tal, contribuir para que as responsabilidades em causa sejam devidamente apuradas e julgadas?
Essa pergunta é muito oportuna. Uma das primeiras condições jurídicas de reconhecimento da responsabilidade de qualquer pessoa pelos atos que ela pratica é o da comprovação de que existe um nexo causal entre a tal prática (causa) e o que dela resultou (efeito), em prejuízo alheio. A busca desse nexo vai ser feita, no caso, seja na instância judiciária, seja na parlamentar, não somente sobre as provas que a Procuradoria da República já coletou, para ajuizar a ação, mas também sobre aquelas que, em cada uma dessas instâncias, será apurado, no sentido de confirmar, ampliar, questionar, ou desautorizar a investigação até aqui realizada.
Assim, se o Judiciário e o Legislativo estiverem atentos ao princípio democrático que rege a nossa Constituição, terão uma extraordinária chance de abrir a possibilidade de uma participação mais ativa do povo, no caso. Esse, embora soberano, como prevê o parágrafo único do primeiro artigo da nossa Constituição, ainda sofre, em sua esmagadora maioria, da falta de uma consciência política cidadã, ao ponto de usar dos poderes que lhe confere o fato de ser soberano. Ele se constitui, conforme interpretação a mais fiel dessa lei, de “comunidades abertas de interpretação” dela, sendo condição de sua dignidade e cidadania fazer-se ouvir, não exercendo tais direitos apenas quando vota.
Talvez seja hora, pois, de quantas/os sejam responsáveis por esse devido processo legal, acordarem para o fato de que ele não é um fim em si. Seu caráter precípuo é de ser meramente instrumental; é meio para que, não só a lei seja aplicada, mas principalmente para que a justiça, enfim, se faça.
Uma das formas, então, para uma garantia elementar como essa não ser sonegada ao povo pelo qual ela se legitima democraticamente, é a de permitir-se ao mesmo ser ouvido, não só do modo como se permitiu à OAB/RS e à assembléia legislativa terem acesso aos autos do processo. São regras jurídicas processuais, por exemplo, aquelas que garantem ao Judiciário socorrer-se, índependentemente do que peçam as partes, das provas que entender convenientes à elucidação das questões que lhe são submetidas, nenhum inconveniente de ordem legal impedindo o Legislativo de fazer o mesmo, seja na CPI, seja no processo de impeachment, se a tanto chegar.
Por mais traumática, então, que seja a situação do Rio Grande do Sul, a partir de agora, a apuração e a efetiva responsabilização de quantas/os serviram-lhe de causa, vai entrar para a história do nosso povo, seja como uma concessão à mais vergonhosa tradição política que nos vicia, tudo confiado ao tempo de esquecer, seja pela mais rápida apuração da verdade, com os efeitos que dessa sempre se esperam. O povo gaúcho merece mais do que “transparência”, palavra que vai entrar no vocabulário político do nosso Estado como significando seu contrário, se o tão valorizado “devido processo legal” mais não conseguir, no caso, do que, a pretexto de ser obedecido, sepultar, de novo, aquela esperança.
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"O povo gaúcho merece mais do que "transparência" " Entrevista especial com Jacques Alfonsin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU