14 Abril 2009
Embora Nirce Saffer Medvedovski analise o projeto Minha casa minha vida como uma solução em relação à crise econômica mundial e também para parte da população que não tem condições dignas para viver, ela alerta para a forma de gestão que será dada às habitações lançadas a partir desse plano. “Você paga pelos impostos, pela água e pela luz e lida diretamente com o tema do financiamento ou subsídio, ou você tem algo intermediário, como um condomínio? Isso muda radicalmente o tema da gestão e da manutenção da propriedade”, reflete ela, nesta entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line.
O programa é bom, na avaliação da professora da Universidade Federal de Pelotas, mas, por grande parte dele estar nas mãos da iniciativa privada, pode gerar também consequências relevantes para a sociedade. “A pessoa antes tinha gato de luz ou não pagava a água porque não tinha controle e, de repente, começa a ter todos esses custos no seu cotidiano. Esse tema me preocupa bastante”, alerta. Nirce aponta que o programa Minha casa minha vida só estará completo se outros projetos complementares forem lançados para auxiliar as pessoas que não estão acostumadas com o modo de vida que esse tipo de moradia pede.
Nirce Saffer Medvedovski é professora da UFPel, pesquisadora do CNPq, membro do comitê assessor da fundação de Amparo à Pesquisa do RS e conselheira do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Rio Grande Sul. Pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluiu a graduação em Arquitetura e Urbanismo e o mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Doutorou-se em Estruturas Ambientais Urbanas, pela Universidade de São Paulo (USP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A habitação popular, em sua opinião, pode servir de solução ou problema para agravar as consequências da crise econômica mundial?
Nirce Saffer Medvedovski – Eu só vejo ela como solução e não como crise. Outro dia, estávamos lembrando, aqui na universidade, de outros planos habitacionais. O BNH, de certa forma, foi criado como um incremento, por exemplo, à indústria nacional. Esse é a associação sempre que me vem: a construção sempre como um grande motor rapidamente acionado, que tem um efeito multiplicador sobre uma grande quantidade de produtos que têm que servir. Por isso, não me parece que o atual plano de habitação seja um problema, mas sim solução.
IHU On-Line – Como a senhora vê o papel que o BNDES vai desempenhar com esse plano?
Nirce Saffer Medvedovski – Há uma meta de construir um milhão de moradias; serão 34 bilhões de reais investidos, sendo 20 bilhões investidos pela União. O Fundo de Garantia - FGTS - irá comprometer sete e meio bilhões. O BNDES, por sua vez, irá colocar um bilhão diretamente para a cadeia produtiva e mais cinco bilhões serão destinados para a área de infraestrutura, para água, esgoto, luz etc. A ideia é de que será movimentado um valor muito maior. Mais de 60 bilhões estão envolvidos, uma vez que entra dinheiro das pessoas também. Assim, o BNDES entra com a função de apoiar o setor empresarial.
IHU On-Line – Que direitos esse tipo de programa oferece, afora o fato de ter um local para morar com dignidade, para a população de baixa renda?
Nirce Saffer Medvedovski – Veja que o plano está dividido em vários extratos. Um deles, o mais baixo, é altamente subsidiado. A preocupação que se tem é que, para que isso realmente possa ser subsidiado, é preciso que haja uma mobilização por parte dos municípios e estados na questão de fornecimento de terrenos e imóveis que possam ser requalificados. Para o plano deslanchar, vamos precisar desse tipo de mobilização. Tenho um pouco mais de receio dos efeitos rápidos do plano em razão da questão da disponibilização de terrenos e projetos. Houve reuniões do governo com o setor empresarial no sentido de mobilizá-lo para também dar uma resposta rápida ao plano. Essa resposta é mais de mercado. Depois, o resto funciona como o mercado está acostumado, só que com uma aporte de recursos maiores.
Preocupa o fato de não termos um banco de terrenos disponível, de que a iniciativa está sendo muito deixada nas mãos do setor privado. Como será oferecido este produto? É a minha questão. Você paga pelos impostos, pela água e pela luz e lida diretamente com o tema do financiamento ou subsídio, ou você tem algo intermediário, como um condomínio? Isso muda radicalmente o tema da gestão e da manutenção da propriedade, o que me assusta, porque podemos estar trazendo para as classes baixas o mesmo modelo dos enclaves fortificados, que geraram toda essa expansão para o setor de mais alta renda nas periferias da cidade. Esse programa é para as cidade de porte médio e grande, daí eu ficar um pouco ansiosa. O produto que tem pronto na mão das construtoras não pode ser o mesmo que elas já sabem fazer, ou seja, com muitas unidades, com o estabelecimento de portaria e condomínio, que geram lucros. E, depois disso, quem faz a gestão? Como se dá a questão do pagamento do condomínio? Para os setores de baixa renda, essa ascensão significa uma série de custos. A pessoa antes tinha gato de luz ou não pagava a água porque não tinha controle e, de repente, começa a ter todos esses custos no seu cotidiano. Esse tema me preocupa bastante.
IHU On-Line – Politicamente, como a senhora vê as estratégias traçadas pelo governo para lançar o programa?
Nirce Saffer Medvedovski – Fazendo uma propaganda maciça nos grandes meios de comunicação com o cuidado de não colocar prazo. Isso chama a atenção. “Vamos construir um milhão”, mas não diz em quanto tempo. É difícil não associar isso a uma campanha eleitoral que vem aí. A figura da Dilma Roussef está presente em todas as estratégias, por isso, com certeza, esse plano tem vários objetivos.
IHU On-Line – Como a senhora vê a decisão do governo de construir casas, principalmente nos grandes municípios e, de certa forma, deixando os menores de lado?
Nirce Saffer Medvedovski – O déficit está concentrado nas grandes e médias cidades e entre a população de baixa renda, mas, se nós queremos também qualificar as cidades menores, não podemos deixá-las sem um plano. Já está havendo um movimento de prefeitos que pedem a inclusão dessas cidades que ficaram fora do plano. Eu vivo em Pelotas, cidade de porte médio e que está incluída no plano. No entanto, sabemos que, durante muito tempo, ela atraiu a população em busca de saúde e dos serviços potencialmente urbanos que pode oferecer. Sozinho, isso é certo, esse programa não resolve os problemas da desigualdade social. Essa política precisa tomar o cuidado para unificar outros tipos de políticas públicas para atender a população nas suas cidades de origem e não criar pressão sobre as cidades médias e grandes. Penso que, dentro de algum tempo, virá algum plano complementar.
IHU On-Line – Que limitações a senhora vê nesse plano?
Nirce Saffer Medvedovski – Estou um pouco receosa de deixar muito desse plano nas mãos do setor privado. Participamos, no final de 2008, de um grande seminário promovido pelo Ministério das Cidades sobre a locação social. Eu até pensei que sairia um plano de locação social finalmente no Brasil. Esse evento chamou a experiência do Uruguai, da Itália e da França. Nós vimos que não há uma única solução, mas sim uma série de situações que são decididas em função das particularidades culturais de cada país. Chamou a minha atenção o problema da Itália, em que esse tema da gestão, que me é tão caro, é tratado por uma empresa vinculada ao governo. Se você conhece um pouco o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), um projeto mais próximo de um programa de locação que o governo fez até então, fora os programas que são de alguns municípios, saberá que toda a gestão foi terceirizada e ficou com o setor privado, ou seja, são imobiliárias que mantém o condomínio de classes de média renda e se especializaram também agora em fazer a gestão de condomínios da classe C. Perdeu-se a oportunidade de se ter um plano que tivesse um controle maior dos órgãos governamentais. Nesse setor da mais baixa renda, precisamos entender a habitação como uma prestação de serviço, não como um produto pronto. Assim como você tem a saúde como um serviço, a habitação, pelo menos para quem não tem condições de adquirir um, tem de ser encarada como um serviço. O governo precisa continuar com o controle.
IHU On-Line – Há risco de criação de guetos com esse plano?
Nirce Saffer Medvedovski – Depende muito do que a iniciativa privada irá nos ofertar. Ela irá nos ofertar loteamentos abertos, vilas, conjuntos fechados? Em conjuntos fechados, para viabilizar condomínio, se coloca 500 unidades dentro, se fecha todo ele, se coloca uma portaria e deu. Com toda a questão da segurança hoje auxiliando a vender esse tipo de mercadoria, fica difícil avaliar. Você quer comprar num lugar que dá direto para a rua ou onde tem portaria e vigilância? O que as pessoas vão preferir?
No entanto, essa realidade gera dois problemas: segregação e gestão do espaço. As regras dos condomínios, geralmente, são muito contra as novidades; é mais do que um quartel. Comunidade não é o foco desses condomínios.
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Minha casa minha vida. O novo Plano Habitacional. Entrevista especial com Nirce Saffer Medvedovski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU