12 Julho 2008
Questionado se a Filosofia mudou após Auschwitz, o filósofo Ricardo Timm foi enfático: “Definitivamente, se quiser merecer continuar sendo chamada de Filosofia”. E justifica: “A Filosofia é obrigada, pelo horror e pelo imperativo de sua evitação, a se encontrar com seus fundamentos éticos de sentido. O problema não é mais questionar pelo Ser, mas questionar pelo sentido que o Ser deve assumir na construção de um mundo em que Auschwitz não tenha lugar”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida na última semana, por e-mail, à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, é difícil imaginar que algum filósofo tenha vivenciado o horror nazista e ficado indiferente. Se ficou indiferente, provoca Timm, “duvido muito que permaneça merecendo essa designação de “filósofo”. Os pensadores se viram na obrigação de “sobreviver” a esse trauma radical. Dessa forma, Timm destaca Adorno pela elaboração de um “modelo de pensamento que propõe alternativas sólidas à violência que Auschwitz e tudo que se lhe assemelha significa”. As filosofias de Lévinas, Heideggeriano, Nietzsche e Hegel também são tema da entrevista a seguir.
Timm é graduado em Instrumentos, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e em Estudos Sociais e Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Também cursou o mestrado em Filosofia, pela mesma universidade, e doutorado em Filosofia, pela Universität Freiburg (Albert-Ludwigs) com a tese Wenn das Unendliche in die Welt des Subjekts und der Geschichte einfällt - Ein metaphänomenologischer Versuch über das ethische Unendliche bei Emmanuel Lévinas. Escreveu inúmeros livros, entre eles, Sujeito, Ética e História – Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999), A condição humana no pensamento filosófico contemporâneo (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e Em torno à diferença – Aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). É também um dos organizadores de Alteridade e Ética – Obra comemorativa dos 100 anos do nascimento de Emmanuel Levinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a marca do ódio do homem contra o homem deixada pelo nazismo perpassa e inspira Lévinas a construir um sistema em que a Ética e alteridade são os pilares principais? Podemos falar numa ética da diferença? O que seria ela?
Ricardo Timm – A Ética da Alteridade – que, em sentido lato, é uma ética das diferenças, assim mesmo, no plural – se constitui essencialmente em uma resposta à violência contra a vida e a Alteridade, o Outro, que não apenas o Nazismo significou de modo eminente, mas que todos os sistemas opressores da humanidade (e mesmo dos animais e da natureza em geral) vêm significando ao longo dos séculos. Consiste essencialmente em mostrar que a ética não é subsidiária de nenhum conhecimento ou saber prévio, mas condição vital-temporal de todo saber e conhecimento, ou seja, prima philosophia. Observe-se que Lévinas não “nega” o Ser; para Lévinas, o Ser é o lugar, o espaço onde o encontro com o Outro e a responsabilidade por ele se devem dar na construção do sentido humano-ecológico.
IHU On-Line – Filosoficamente, que outros autores, além de Levinas, construíram respostas ao horror nazista?
Ricardo Timm – É difícil conceber que algum filosófo que tenha vivenciado diretamente ou indiretamente o horror nazista não tenha sido influenciado por este acontecimento maior na história contemporânea, mas se algum filósofo não o foi, eu duvido muito que permaneça merecendo essa designação de “filósofo”. Assim, a totalidade dos grandes pensadores que vivenciou o período foi obrigado a sobreviver a este trauma radical. Todavia, eu destacaria nesse universo um pensador em particular – Theodor W. Adorno –, que elabora, a partir da crítica filosófica a um tal estado de coisas e em articulação com um diagnóstico interdisciplinar extremamente sofisticado da sociedade e cultura contemporâneas, um modelo de pensamento que propõe alternativas sólidas à violência que Auschwitz e tudo que se lhe assemelha significa. Temos em Adorno a fundamental reconfiguração do imperativo categórico da tradição: para ele, é imperativo “impedir que Auschwitz se repita”.
IHU On-Line – A Filosofia mudou depois de Auschwitz? Em que aspectos?
Ricardo Timm – Definitivamente, se quiser merecer continuar sendo chamada de Filosofia. A Filosofia é obrigada, pelo horror e pelo imperativo de sua evitação, a se encontrar com seus fundamentos éticos de sentido. O problema não é mais questionar pelo Ser, mas questionar pelo sentido que o Ser deve assumir na construção de um mundo em que “Auschwitz” não tenha lugar.
IHU On-Line – Hitler dizia ter lido, entre outros, Hegel e Nietzsche, além de se declarar um wagneriano convicto. Em que medida Hitler compreendeu e distorceu o pensamento desses filósofos e compositor?
Ricardo Timm – Nem Hegel, nem Nietzsche, nem mesmo o polêmico Wagner permitiriam, apenas pela leitura de suas obras ou de parte delas, inferências tão baixas que sustentassem uma doutrina do teor do nazismo. Outra questão é saber se nesses pensadores – Wagner incluído – não se encontram elementos da grande tradição logocêntrica ocidental que permitiram, por alguma metamorfose doentia, alguns aspectos daquilo que se pode ler como uma certa base “filosófica” de aspectos da doutrina nazista.
IHU On-Line – De que forma o agir político de Hitler se entrelaçou com a filosofia de pensadores como Heidegger e Carl Schmitt?
Ricardo Timm – Carl Schmitt é um pensador singular, essencial para a compreensão da filosofia política contemporânea independentemente de seu viés político explícito. Todavia, ao meu ver, permanece, apesar de tudo, um pensador, ou seja, alguém capaz de dialogar até mesmo com um Walter Benjamin. Há que saber distinguir o que, de Schmitt, nos dá hoje o que pensar. Já o caso de Heidegger me parece bem mais complicado; não é segredo para ninguém que ele, durante certo período crítico, abraçou o nacional-socialismo, havendo perdido posteriormente várias chances de se retratar. De qualquer forma, é possível – e tem sido realizada, especialmente na Alemanha, mas não apenas lá – uma exegese de seus textos que indiciam que sua proximidade com o referido ideário era mais intenso, até mesmo visceral, em relação ao que se depreende apenas, por exemplo, da leitura do “Discurso do reitorado”.
IHU On-Line – Como podemos entender que, em pleno século XX, e com amplo apoio da população alemã e de outras partes do mundo, se chegou ao terror nazista?
Ricardo Timm – Através de uma rigorosa arqueologia da razão ocidental. Pensadores como os filósofos da Escola de Frankfurt, Derrida e Lévinas, entre outros, nos mostram que estranho seria se o caminho que vai “da funda à bomba atômica”, no dizer dos frankfurtianos, não fosse trilhado, uma vez que a obsessão pelo ser e o desprezo pela temporalidade confluem necessariamente em um delírio ontológico-instrumental no qual a ética como realidade propriamente dita não tem, ou apenas tem dificilmente lugar.
IHU On-Line – Na Alemanha e no mundo atual, há espaço para esse tipo de político ditador? As pessoas, em pleno século XXI, apoiariam uma política como aquela?
Ricardo Timm – As condições permanecem. Devemos perder a ingenuidade e entender que a crença em uma idéia linear de “progresso moral” não se justifica nem historicamente, nem filosófica, política ou sociologicamente. Enquanto a racionalidade instrumental permanecer ditando as regras maiores do mundo, como hoje o faz sob a forma capitalista, na transformação da qualidade em quantidade pela anulação das diferenças, da Alteridade, nada nos garante que as massas não venham a aderir ao suicídio coletivo que significam doutrinas aberrantes em relação à vitalidade e à saúde dos seres humanos individuais, das comunidades e dos ecossistemas.
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A Filosofia mudou depois de Auschwitz. Entrevista especial com Ricardo Timm - Instituto Humanitas Unisinos - IHU