04 Julho 2008
Ainda que tenha uma das mais importantes e fortes campanhas contra o desarmamento no mundo, a diplomacia do Brasil não compareceu à reunião, com 111 países, que definiu o banimento das bombas cluster. Para Daniel Mack, coordenador de Políticas da área de Controle de Armas do Instituto Sou da Paz, há três argumentos que o Brasil usa para justificar sua posição: o de o tratado não ter sido coordenado pela ONU; o de o Exército brasileiro acreditar que ainda há motivos para usar essa arma e, por fim, o fato de o país ser um produtor e exportador desse armamento no mundo. A entrevista foi concedida por telefone à IHU On-Line.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que motivo, em sua opinião, o Brasil não esteve presente em Dublin quando foi feito um tratado considerado o mais importante em relação ao desarmamento, se desde 2003 o governo federal vem fazendo campanhas para que a população não ande armada?
Daniel Mack – Essa é uma boa pergunta, no sentido de que há realmente uma discrepância entre a política pública brasileira, que tem o intuito de fortalecer o desarmamento, e essa posição internacional em relação às bombas cluster [1]. O Brasil não participou de Dublin por uma série de fatores. Um fator, não há dúvida, é o fato de o Itamaraty não considerar o processo de Oslo ideal para se discutir esse tipo de tratado. Acredita, no caso, que o tema precisa ser discutido dentro da ONU. Acontece que o processo de Oslo e esse das bombas cluster são paralelos ao que aconteceu com o processo referente às minas terrestres, acontecimento que dentro da ONU ficou empacado. Como sabemos, na ONU é preciso consenso para se conseguir alguma coisa. Assim que os processos foram tirados dela, tanto o das minas terrestres quanto os das bombas cluster, mais de cem países votaram a favor dele. Então, nós consideramos que essa explicação do Itamaraty não é mais válida, porque, quando você tem mais de cem países assinando um tratado, é difícil falar que não se trata de um fórum universal e democrático.
O segundo grande argumento do governo brasileiro é que essas bombas ainda teriam alguma utilidade militar para o Exército, em se tratando de um exército que supostamente precise delas, até por seu baixo custo. Esse argumento é errôneo também porque tais bombas são obsoletas tanto técnica quanto moralmente, como demonstrado neste tratado. Quase todos os países da América Latina foram a favor de abolir essas bombas. Apenas Brasil e Colômbia não assinaram o acordo.
O terceiro motivo, que pode ser o mais forte, pois não aparece na retórica oficial do governo brasileiro, é a questão econômica e comercial. Isso porque o Brasil é um produtor e exportador dessas bombas cluster. Sabemos que existem muitos interesses dentro da indústria armamentista brasileira que pressiona o Ministério da Defesa para que continue sendo possível produzir e exportar essas bombas. Consideramos também que esse argumento, com o tratado de Dublin, começa a perder validade porque o mercado internacional diminui no momento em que 111 países votam para banir um tipo de arma. Esse armamento, mesmo que legal em alguns países, será extremamente estigmatizado pela comunidade internacional. Isso aconteceu com as minas terrestres. O tratado que envolve essa arma até hoje não tem a assinatura de países como Estados Unidos, Rússia e China. No entanto, esses países não têm mais a pachorra de produzir e exportar mais esse tipo de armamento, porque ele não é mais considerado permissível pela comunidade internacional. É muito provável que isso ocorra também com o Brasil e por isso a atitude do governo causa certa estranheza, no momento em que o país participa de outros tratados e fóruns de desarmamento internacional e, como você disse, tendo leis e políticas públicas fortes de desarmamento nacionalmente.
IHU On-Line – Quais serão as conseqüências com a ausência do Brasil?
Daniel Mack – A meu ver, as maiores conseqüências são políticas e diplomáticas. Política e diplomaticamente, o Brasil perde muito. Primeiro: perde certa liderança moral especialmente na América Latina, que é um dos principais focos da política externa brasileira. Quando todos os seus vizinhos assinam um tratado e você não, claramente se isolado num momento em que a integração é retoricamente a prioridade do país.
Em segundo lugar, diplomaticamente, enfraquece o Brasil em relação a seus pares em outros fóruns, mas também em relação a países que têm liderança regional semelhante, com um certo poder maior do que seus vizinhos. Em comparação com outros países do mundo, que são emergentes e foram a favor do tratado, o Brasil perde força diplomática. Especialmente, porque o país não só assinou o tratado como não participou do processo inteiro. É uma situação até um pouco bizarra você ter uma conferência, uma reunião preparatória onde mais de cem países estão diplomaticamente representados, com a ausência brasileira. O país perdeu um pouco a oportunidade de se representar perante ao mundo, especialmente sabendo que sua representação diplomática é uma das mais fortes que existem.
IHU On-Line – O que significa o fato de o Brasil ter se posicionado ao lado dos maiores produtores de armas bélicas, como os Estados Unidos, e, com isso, não ter apoiado o tratado feito em Dublin?
Daniel Mack – É uma situação lamentável. Claro que estamos falando aí de um armamento que tem toda uma característica técnica e história específica. Além disso, não se pode dizer que o Brasil esteja ao lado desses países em todas as questões de armamento. Para armas leves e armamento convencional, o país geralmente tem tido uma posição boa nos fóruns internacionais. Mas, em relação às bombas cluster, o Brasil ficou ausente num processo em que ficaram ausentes também países como Estados Unidos, Rússia, China, Índia e Paquistão. Não gostaríamos que o país estivesse nesse grupo, é claro. Vemos com bons olhos que recentemente que até o Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim [2], disse que existe a possibilidade de a posição ser reconsiderada. Ele certamente recebeu reações do isolamento do país e da sociedade civil do mundo inteiro. Isso não é só moralmente correto, mas também o mais pragmático também, porque, com o tratado assinado, não faz sentido nenhum o Brasil ficar de fora, levando em consideração de que ficará com um armamento extremamente estigmatizado pela comunidade internacional.
IHU On-Line – Quais são os efeitos destas campanhas que o governo federal tem feito a favor do desarmamento da população?
Daniel Mack – Em relação às armas leves em âmbito doméstico, essas campanhas de desarmamento têm sido muito importantes porque colocam o Brasil na vanguarda não apenas da América Latina, mas do mundo inteiro em relação a um maior controle das armas em circulação. Existem estimativas de que existem hoje 17 milhões de armas em circulação no país e só 10% estão nas mãos dos estados, ou seja, das Forças Armadas e das policias estaduais. Isso quer dizer que nós temos mais de 15 milhões de armas nas mãos de civis em circulação. Essas campanhas e o próprio estatuto do desarmamento de 2003, que foi a legislação que possibilitou todo esse conjunto de políticas públicas adotadas pelo governo federal em relação ao controle de armas, têm vindo no sentido de diminuir as armas em circulação ou, ao menos, controlar melhor no sentido de saber onde elas estão localizadas e saber que as pessoas que têm a posse delas são bem preparadas para tanto.
Desde o estatuto em 2003, especialmente desde a primeira campanha voluntária de entrega de armas, quando foram tiradas de circulação 465 mil armas, os homicídios por arma de fogo têm caído bastante no âmbito nacional. Foi uma queda de 12% de 2003 a 2006 e consideramos que, além de muitas outras políticas públicas e decisões governamentais e até da sociedade civil, existe um fator muito importante que não só é de retirar essas armas de circulação, mas de proibir o porte delas. As campanhas têm sido importantes nesse sentido. É importante ressaltar que, no segundo semestre de 2008, o Ministério da Justiça tem planejado recomeçar a campanha de entrega voluntária de armas. Passou no congresso e agora foi sancionada pelo presidente Lula a medida provisória 417, que permite que essas campanhas sejam feitas de maneira ininterrupta. Isto significa que uma pessoa pode, se quiser, não importa o período do ano, devolver a sua arma e receber por ela uma indenização entre cem e 300 reais, dependendo da arma. Depois das campanhas municipais, vai acontecer uma campanha muito forte de mídia para que os resultados sejam conseguidos mais uma vez.
E, além disso, existe uma outra parte da medida provisória é o recadastramento das armas. Então, a idéia é o seguinte: se você tem uma arma em casa, a recomendação seria que você a devolva. Isso porque nós consideramos, baseados em pesquisas feitas no mundo inteiro, que a possibilidade de essa arma ser usada em defesa própria com sucesso é muito pequena em relação à possibilidade de ser usada num conflito em casa, num suicídio ou num acidente. Agora, se a pessoa tem uma arma e não considera que ela deva devolvê-la, existe a possibilidade do recadastramento, o que é muito importante. Então, junto com a campanha de devolução, haverá a campanha de recadastramento e cadastramento para quem ainda não cadastrou, sem ônus financeiro e grande documentação. A idéia é saber onde estão as armas, quem as detém, quais suas características, controlando melhor o fluxo delas assim.
IHU On-Line – Gramsci afirma que o desarmamento da população é uma das primeiras providências para garantir o controle totalitário da sociedade. Como você vê o fato de que o desarmamento pode ser uma forma de controle social?
Daniel Mack – Essa é uma discussão que veio muito da época do referendo, mas se usa muitas conotações errôneas. Falava-se muito que Hitler teria desarmado a Alemanha e por isso conseguiu o que conseguiu. Na realidade, há um pouco de ignorância histórica em relação ao que aconteceu nesse sentido. Na realidade, não se tem no mundo moderno uma situação em que uma população precisa estar armada para se defender de um governo que, por alguma circunstância, poderia vir a se tornar totalitário. O Brasil, cada vez mais, é uma democracia consolidada, e a violência não é uma necessidade ou possibilidade de resolver conflitos políticos porque o próprio sistema político permite que os poderes sejam controlados. É importante ressaltar que não se trata de uma questão de desarmamento, propriamente dito, e sim do controle de armas. Precisamos fazer uma distinção muito importante porque não existe qualquer campanha de desarmamento obrigatória do governo. O que existe é uma possibilidade voluntária de armas. Se você não quer entregar a sua arma, terá a possibilidade legal de ficar com elaem casa desde que registrada. Poderia se chamar mais uma campanha de controle de armas do que de desarmamento.
IHU On-Line – O que efetivamente resolverá o problema crescente da violência no Brasil?
Daniel Mack – É muito importante lembrar que menos armas em circulação é algo certamente importante, mas não o único fator. O problema de segurança pública no Brasil é muito grave, abarcando uma série de arenas de poder público e de sociedade e certamente não poderá ser resolvida com uma política mágica ou individual. Um dos pressupostos para diminuição de violência no Brasil é o menor número de armas entre civis para que sejam evitados muitos acidentes e conflitos pessoais, o que já seria um bom contingente de homicídios a menos, como tem sido desde o estatuto do desarmamento, apesar de a percepção psicológica das pessoas achar que há mais violência. Sem dúvida, o problema de segurança pública no Brasil continua sendo muito grave. A questão do desarmamento é apenas uma pauta dentro de todas as ações que precisam ser feitas.
Notas:
[1] A bomba ou munição cluster é um armamento que, disparado por terra ou ar, se abre espalhando dezenas ou até centenas de submunições explosivas sobre áreas extensas.
[2] Celso Luís Nunes Amorim é um diplomata brasileiro de carreira. Ministro das Relações Exteriores no governo de Itamar Franco, de 1993 a 1995, é desde 2003 o atual ministro das Relações Exteriores do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Tem papel relevante no atual redesenho da balança mundial do poder e é responsável pelo direcionamento humanista da política externa brasileira atual, que incluiu entre seus objetivos a luta contra a fome e pobreza, a luta contra as desigualdades e o unilateralismo.
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Desarmamento: o Brasil dá um passo para trás. Entrevista especial com Daniel Mack - Instituto Humanitas Unisinos - IHU