28 Novembro 2007
A cada dia, há novas denúncias de exploração do trabalho escravo em fazendas brasileiras. Mas não se trata apenas de um trabalho incessante do qual é quase impossível livrar-se. Trata-se de uma constante ameaça e um pavor que degradam o ser humano submetido a tais condições. Quanto mais o capitalismo leva às empresas a competitividade frenética, o trabalho escravo é escolhido como a opção mais barata para obter cada vez mais lucro. Tudo isso às custas do pobre trabalhador em busca de melhores condições de vida. Essas, no entanto, só pioram com essa “oportunidade”. A IHU On-Line conversou, por telefone, com o coordenador da Agência Repórter, Leonardo Sakamoto, uma das pessoas que acompanham e estudam o trabalho escravo.
Durante a conversa, Sakamoto fala sobre como se caracteriza o trabalho escravo no país hoje, o que chama de escravidão contemporânea, além de refletir sobre o motivo pelo qual essa degradação do trabalho está enraizada na nossa sociedade. Ele analisa também o avanço do capitalismo e a luta no combate a esse problema. “O trabalho escravo contemporâneo não é resquício de uma civilização pré-capitalista que sobreviveu. Ele é um instrumento do próprio capital para facilitar a acumulação e o processo de modernização, garantindo competitividade ao produtor rural”, comentou.
Leonardo Sakamoto formou-se em Jornalismo, pela USP, onde também realizou mestrado e doutorado em Ciência Política e é, hoje, pesquisador. Cobriu a guerra pela independência em Timor Leste e a guerra civil angolana. É coordenador da ONG Repórter Brasil e representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Também escreveu Trabalho escravo no Brasil do Século XXI (Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é, como se define e se caracteriza o trabalho escravo, hoje, no Brasil?
Leonardo Sakamoto – O trabalho escravo, ou a escravidão contemporânea, é basicamente uma situação que expõe o trabalhador a uma condição totalmente degradante de trabalho, em que não há dignidade alguma. Nela, a alimentação e o alojamento são precários, assim com a situação de saúde, sem proteção física, individual. Ao mesmo tempo em que essa situação extremamente degradante tira a dignidade do trabalhador, com a retenção de salários, com maus tratos, ameaças, ela traz uma situação de cerceamento da liberdade. Trata-se de uma liberdade específica. Não é a liberdade básica do direito de ir e voltar, e sim a de se desligar do serviço. Um dos maiores problemas, nesses casos, é a presença de guardas armados para intimidar ou mesmo assassinar quem tenta sair, espancamento de trabalhadores que tentam fugir para servirem de exemplo a outros, ameaças psicológicas ou físicas, por meio, por exemplo, de torturas. E ainda existem formas mais sutis ou menos violentas, digamos assim, para manter o trabalhador. São, na verdade, fraudes para enganá-lo, com promessas que nunca irão se cumprir. O trabalho escravo contemporâneo no Brasil, portanto, traz uma situação de trabalho extremamente degradante e indigna, somada à impossibilidade de se deixar o serviço, que se configura de várias formas.
O isolamento geográfico é um problema. O trabalhador por vezes é levado para um lugar 300 quilômetros distante da cidade mais próxima, além de precisar entregar seus documentos a quem o "contrata". A base da escravidão contemporânea é a servidão em que a pessoa contrai uma dívida de forma fraudulenta com o proprietário da fazenda ou com o empregador, que no Brasil é conhecido como “gato”. Este muitas vezes faz essa ponte entre trabalhadores e fazendeiros, sendo responsável por esse processo de contratação de dívida, em que o trabalhador é aliciado em sua cidade natal ou mais próximo da propriedade rural e levado para uma determinada fazenda. Nesta, os gastos são marcados no “caderninho” e são sempre maiores dos que os valores reais. Paga-se quatro ou cinco vezes mais por um chinelo, dez vezes mais o valor real do fumo e todos os gastos são contabilizados. Ao final do período de trabalho, quando o trabalhador pensa que vai receber o salário, o “gato” ou o patrão chega para eles com o caderno e fala que, além de estar devendo, precisa voltar a trabalhar para pagar essa dívida que foi criada fraudulentamente. Com esse endividamento, eles seguram esse trabalhador, que, então, é ameaçado, espancado etc. Ou seja, é feito de tudo para que o indivíduo seja mantido em seu local de trabalho.
IHU On-Line - Por que o trabalho escravo permanece tão arraigado na sociedade brasileira?
Leonardo Sakamoto – O trabalho escravo existe, hoje, praticamente em todos os países do mundo. Ele não é um monopólio brasileiro. Inclusive, existem estimativas que apontam mais de 17 mil trabalhadores em situação de escravidão nos Estados Unidos. Há milhares de trabalhadores em situação de escravidão na França, na Alemanha. Isso sem contar o grande número de escravos no Paquistão. O trabalho escravo contemporâneo é uma característica do modo de produção capitalista. Nesse sentido, houve três grandes escravidões no mundo: a primeira aconteceu na Grécia e na Roma antiga. Depois de ela terminar, deu-se lugar ao feudalismo. O que aconteceu é que, quando os europeus invadiram a América e a África, foi reinventada a escravidão para seus próprios propósitos, para colonização, para o trabalho nas suas colônias. E eles criaram o que aconteceu no Brasil durante cerca de 300 anos. Em 13 de maio de 1888, houve o fim da escravidão legal. Ou seja, o Estado brasileiro parou de reconhecer o direito de uma pessoa possuir outra pessoa como instrumento de trabalho ou como sua propriedade. Contudo, persistiram situações, até hoje, muito semelhantes à condição antiga legalizada de escravidão, em que o trabalhador tinha pouquíssimos direitos.
É claro que existe diferença entre a escravidão colonial e imperial no Brasil. Todo um comércio transatlântico de escravos foi proibido, em 1850, havendo uma mudança social, e a sociedade brasileira deixou de ter trabalho escravista para ter uma base de trabalhador assalariada. O que vem ao caso é que continuam existindo formas degradantes, indignas e desumanas no tratamento de um ser humano. Além disso, este ainda é utilizado meramente como instrumento de trabalho. A escravidão contemporânea funciona hoje como um instrumento do próprio sistema. Muitas pessoas comentam que o trabalho escravo é uma coisa anacrônica e que não tem relação com a modernidade do capitalismo. O que é uma mentira, porque o trabalho escravo é decorrente do sistema capitalista, e isto é uma coisa bastante interessante. Se analisarmos o trabalho escravo no Brasil, veremos que o relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego mostra que os empregadores envolvidos nesse tipo de exploração, na grande maioria das vezes, trabalha com tecnologia de ponta e fornece commodities para o mercado nacional e internacional, ou seja, fornecendo carne bovina, carvão para siderurgia, soja, algodão, milho, etanol. Desse modo, essa escravidão existe sob influência direta da economia de mercado e dela depende. Isso revela que a utilização do mercado escravo contemporâneo não é resquício de antigas práticas econômicas que sobreviveram provisoriamente ao capital, mas um instrumento para o capital facilitar a acumulação, a aquisição de riquezas, durante um processo de expansão ou durante um processo de modernização. Em outras palavras, utilizar trabalho escravo é uma forma de economizar na mão-de-obra, sobretudo em empreendimentos agropecuários, garantindo, assim, a competitividade a produtores rurais que estão em situação ou região de expansão agrícola.
Na prática, o trabalho escravo gera economia. Por menor que essa seja, a economia em dinheiro é fundamental para garantir a esses produtores rurais competitividade e expansão em seus negócios. Eles agem assim porque não querem ou não têm dinheiro para fazer investimento inicial nesses projetos. Então, da mesma forma com que roubam terras, o que é muito comum na Amazônia, também roubam essa força de trabalho. Quanto mais se tem terras aráveis, mais se tem produção agrícola, o que beneficia todo o sistema. Não estou falando que o sistema e o mundo dão a benção ao trabalho escravo, mas que, apesar de este ser uma coisa horrível e detestável, é ainda utilizado por muitas pessoas que, com isso, saem beneficiadas.
IHU On-Line - A “casa-grande” e a “senzala” continuam convivendo sem grandes rupturas, não apenas economicamente, mas também culturalmente. Poder-se-ia afirmar que a sociedade brasileira tolera o trabalho escravo?
Leonardo Sakamoto – É uma pergunta complexa, porque, como diria Caio Prado Junior (1), o escravismo define muito o que é a sociedade brasileira. Então, muitas de nossas relações hoje – nas relações entre padrão e empregado, nas relações entre empresários e trabalhador rural – são ainda muito guiadas por toda uma carga cultural deixada pela escravidão. Desse modo, na verdade, um número significativo de empresários no Brasil ainda considera o trabalhador um objeto de trabalho descartável. O Brasil não conseguiu, em 1888, fazer a inserção dos trabalhadores que foram libertados da escravidão, e nem se interessou em fazê-la. Enquanto nos Estados Unidos e em outros países houve uma espécie de ressarcimento ao trabalhador que era libertado da escravidão, no Brasil, em 1888, o que é “engraçadíssimo”, houve um ressarcimento aos produtores rurais que perderam escravos. Então, na verdade, o Estado não estava preocupado, nem nunca se preocupou, com esses trabalhadores. A escravidão, hoje, em muito se deve a uma situação de desigualdade, que gera concentração de riqueza e, conseqüentemente, pobreza, resultante dessa situação de escravagismo no Brasil durante a Colônia e Império. Ela poderia ter sido atenuada na época da abolição, o que não aconteceu. Então, na prática, a abolição de 1888 é ainda a mãe dessa desigualdade. Temos liberdade, o que é ótimo, mas, ao mesmo tempo, as pessoas são escravas de uma situação econômica de penúria. Muitos brasileiros são livres, diferentes dos escravos da Amazônia e da caatinga, mas ainda estão, de certa forma, presos a uma situação de penúria e de preconceito, devido à sua classe social.
A casa-grande e a senzala (2) ainda existem no Brasil em diversos fatores, em esferas políticas, econômicas ou culturais, e, em nosso dia-a-dia, muitas vezes a classe média age como o capataz da elite contra os trabalhadores. Nós temos ainda uma herança muito pesada nesse sentido. E o que acontece? Isso acaba extrapolando a relação. A casa-grande e a senzala ainda existem nos barracos em zonas amazônicas, onde há, também, as grandes fazendas com piscina e antena parabólica. Só que, na verdade, a questão poderia ser vista pela ótica mais global do Brasil, em que você tem uma pequena casa-grande e dezenas de senzalas espalhadas. A relação de trabalho ainda é muito ruim.
IHU On-Line - Como explicar tantos casos de trabalho escravo em setores de ponta do agronegócio exportador, na produção de álcool, de celulose? Por que estes setores são reincidentes na utilização de mão-de-obra escrava?
Leonardo Sakamoto – O trabalho escravo contemporâneo não é resquício de uma civilização pré-capitalista que sobreviveu. Ele é um instrumento do próprio capital para facilitar a acumulação e o processo de modernização, garantindo competitividade ao produtor rural. Ou seja, para acompanhar a constante concorrência de produtividade internacional, há duas opções: ou o produtor compra tecnologia e produz mais, gastando menos força de trabalho e salário, ou ele força menor gasto com trabalho escravo. Esses grandes empreendimentos que utilizam trabalho escravo o fazem para economizar recursos. Quanto menos gastam, mais conseguem competir no mercado internacional, ou, quanto menos gastam, mais conseguem ampliar sua área, derrubando mata para aumentar a fazenda. Essa economia é pouca, mas, num cenário de extrema competitividade internacional, relevante. Ninguém fala: “Vou contratar escravos”. O que acontece é um processo constante, em que são retirados os direitos básicos dos trabalhadores, culminando no trabalho escravo. Ninguém contribui para o trabalho escravo porque quer ver o outro sofrer, mas sim para obter lucro.
IHU On-Line - Quem são os maiores aliados hoje na luta contra o trabalho escravo?
Leonardo Sakamoto – A Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo é um importante órgão no combate do trabalho escravo. Os maiores agentes no combate ao trabalho escravo, hoje, no Brasil são o Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal, que formam o grupo móvel de fiscalização, responsável pela verificação de denúncias desse problema e libertação de trabalhadores. Além disso, força o pagamento a esses trabalhadores. Podemos lembrar, além disso, da Comissão Pastoral da Terra, ligada à CNBB, que hoje é a mais importante instituição atuante no combate ao trabalho escravo. Temos também uma série de outras organizações locais, regionais, nacionais, que apresentam uma atuação bastante forte, como as secretarias estaduais dos Direitos Humanos, o Instituto de Empresas com Responsabilidade Social, um projeto de prevenção na região Norte do país, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) etc.
IHU On-Line - Qual é a sua avaliação em relação ao desempenho do governo Lula na fiscalização do trabalho escravo?
Leonardo Sakamoto – O combate do trabalho escravo no Brasil começou em 1995 com a criação do grupo móvel de fiscalização, que tem o objetivo de verificar denúncias e libertar trabalhadores. De 1995 a 2002, cerca de 5 500 trabalhadores foram libertados da escravidão. De 2003 até hoje, foram mais uns 21 000, ou seja, houve um salto na libertação. Não é que o número de trabalhadores escravos tenham aumentado, mas houve uma melhora considerável no sistema de combate à escravidão. O governo FHC tem o mérito de ter criado esse sistema, e o governo Lula tem o mérito de ter o alçado a uma qualidade muito superior. Assim como o governo FHC teve grandes problemas para enfrentar esse problema, o governo Lula também tem. No entanto, nós vemos que houve uma priorização dessas atividades, durante os últimos anos, tanto que o Brasil é considerado pela OIT um exemplo no combate ao trabalho escravo. Há muito a se fazer, mas eu tenho visto com muito bons olhos a atuação do governo Lula nessa área.
IHU On-Line – Recentemente, o senhor defendeu a sua tese de doutorado, que fala sobre o trabalho escravo no Brasil. Quais são as suas principais conclusões?
Leonardo Sakamoto – O nome da tese é “A reinvenção do trabalho escravo no Brasil contemporâneo”, e seu objetivo é mostrar como o trabalho escravo não é uma coisa anacrônica, mas foi reinventado como um instrumento de acumulação e lucro no Brasil. A idéia é mostrar como esse trabalho se estrutura e funciona, trazer dados, estatística, cadeias produtivas. Ver, por exemplo, como o trabalho escravo escoa suas mercadorias nacionalmente e internacionalmente. Com base nisso, eu mostro como é possível combater o trabalho escravo pelo viés econômico. O trabalho escravo se sustenta num tripé: a impunidade, a pobreza e a ganância. A ganância pode ser combatida de forma bem simples, e a impunidade esbarra muitas vezes na morosidade da justiça e da incapacidade ou falta de interesse do Congresso Nacional em aprovar leis. A pobreza, por sua vez, pode ser apenas lentamente superada, considerando-se a política de desenvolvimento do governo, que é extremamente concentradora e traz distribuição de renda apenas aparente. Se a ganância for combatida, consegue-se resultados bons em curto prazo. O governo tem um instrumento que é a lista suja do trabalho escravo, um cadastro de empresas flagradas com trabalhadores em situação degradante que os bancos privados e públicos utilizam para fazer corte de crédito. Há também o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Com base em pesquisa de cadeia produtivo que a Repórter Brasil desenvolve, o pacto conseguiu trazer empresas para que ajam com responsabilidade social e cortem do seu convívio comercial as fazendas que utilizam mão-de-obra escrava, ou que cortem os intermediários que compram delas. Quando se causa um problema econômico grave a essas propriedades, isso, na prática, faz com que o produto criado a partir do trabalho escravo seja cassado, sendo tirado desses oportunistas. Quando o trabalho escravo não for mais um bom negócio, eles vão parar de tentar praticar essa exploração.
Notas:
(1) Caio da Silva Prado Júnior foi um historiador, geógrafo, escritor, político e editor brasileiro. As suas obras inauguraram, no país, uma tradição historiográfica identificada com o marxismo, buscando uma explicação diferenciada da sociedade colonial brasileira. Como intelectual, desenvolveu importante atuação política, que se estendeu pelas décadas de 1930 e de 1940, tendo participado das articulações para a Revolução de 1930. Em 1942, publicou o clássico Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia, cujo objetivo inicial era traçar o quadro de evolução histórica brasileira. Foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (1945) e constituinte em 1947, tendo o seu mandato sido cassado quando da decretação da ilegalidade do partido. Dirigiu o vespertino A Platéia e fundou, juntamente com Arthur Neves e Monteiro Lobato, a Editora Brasiliense, na qual lançou, posteriormente, a Revista Brasiliense, editada entre 1956 e 1964.
(2) Ver a obra Casa-grande & senzala, escrita por Gilberto Freyre. Através dele, Freyre destaca a importância da casa-grande na formação sociocultural brasileira bem como expõe a idéia de que a senzala a complementaria. Na opinião de Freyre, a própria estrutura arquitetônica da casa-grande expressaria o modo de organização social e política que se instaurou no Brasil, qual seja o do patriarcalismo. Tal estrutura seria capaz de incorporar os vários elementos que comporiam a propriedade funcionária do Brasil colônia. Do mesmo modo, o patriarca da terra era tido como o dono de tudo que nela se encontrasse como escravos, parentes, filhos, esposa etc. Este domínio se estabelece de maneira a incorporar tais elementos e não de excluí-los. Esse padrão se expressa na casa-grande, que é capaz de abrigar desde escravos até os filhos do patriarca e suas respectivas famílias.
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O trabalho escravo reinventado pelo capitalismo contemporâneo. Entrevista especial com Leonardo Sakamoto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU