10 Julho 2007
Em 2002, surge, em Santa Catarina, o Movimento das Fábricas Ocupadas, quando os trabalhadores de uma empresa de plásticos, a Cipla, foi ocupada pelos trabalhadores para impedir seu fechamento. O mesmo aconteceu com a Interfibra, também de Santa Catarina, e com a Flaskô, de São Paulo. Desde então, o movimento vem se ampliando pelo Brasil e hoje serve de referência na luta para preservar empregos no País. Com essa intervenção, o faturamento das empresas aumentou significativamente, os salários passaram por um processo de reposição das perdas e agora os pagamentos são feitos em dia. Além disso, a jornada de trabalho diminuiu para 30 horas semanais e todos têm carteira assinada. Ainda que a luta cresça e receba cada vez mais apoio, o governo não tem contribuído com o movimento. Em maio deste ano, o INSS interveio na Cipla e na Interfibra, ajudada pela polícia militar e pelo exército, “aterrorizando a todos e colocando um clima de pavor e pânico dentro da fábrica”, afirma Serge Goulart coordenador do movimento e nosso entrevistado do dia de hoje.
Durante a entrevista, cedida à IHU On-Line por telefone, Serge Goulart fala da história do movimento, das lutas atuais e dos apoios que tem recebido. Para Goulart, mesmo com essa intervenção “a luta continua, nós estamos lutando para derrubar judicialmente a intervenção à fábrica, pois ela é ilegal, abusiva e evidentemente de cunho político”. Ele conta ainda sobre o apoio que tem recebido do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que, diferente do presidente Lula, tem ajudado o movimento e, por conseqüência, aos trabalhadores. “Nós nunca conseguimos nada com o Governo Lula, mas o Governo Chávez fez um acordo conosco e nos enviou matéria-prima para ajudar a rodar a indústria”.
Serge Goulart é coordenador do Movimento das Fábricas Ocupadas e administrador da Cipla/Interfibra.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Há quase cinco anos, os trabalhadores da Cipla (Joinville - SC) ocuparam a fábrica para evitar as demissões e posteriormente ocuparam também a Flaskô (Sumaré - SP), do mesmo grupo. Você poderia contar um pouco dessa história?
Serge Goulart – Em 2002, depois de uma grande greve, os trabalhadores da Cipla e da Interfibra, duas empresas de plásticos de Joinville, ocuparam as empresas e passaram a produzir para impedir o fechamento. A Interfibra estava fechada na época da ocupação, sem produção alguma, e a Cipla duraria mais um mês antes do fechamento. Em 12 de junho de 2003, aconteceu a ocupação da Flaskô, em São Paulo, que também é uma fábrica de plásticos. O objetivo era o mesmo: salvar os empregos, os direitos trabalhistas e impedir o fechamento da fábrica, que estava projetando demitir cerca de 1.200 trabalhadores nas três empresas. Assim, eles ocuparam, depois de greves e manifestações, e chegaram a um acordo, no qual o proprietário entregava a fábrica aos trabalhadores. Desde então, nós temos retomado a produção e conseguimos um faturamento, que antes era quase zero, de cerca de cinco bilhões e meio de reais por mês.
IHU On-Line - Após a ocupação e sem patrão, como vocês passaram a se organizar?
Serge Goulart – A nossa forma de organização era assim: o nosso órgão supremo da fábrica era a Assembléia Geral. Ela, uma vez por ano, no mês de outubro, organizava uma eleição de um Conselho de Fábrica, com cerca de 30 membros, que era eleito com mandato de um ano. Uma parte dessa eleição era feita em Assembléia e a outra parte era acontecia por meio dos representantes dos vários turnos das empresas. Essa comissão, que é o Conselho de Fábrica, nomeava um Comitê Administrativo e Financeiro, que tocava o dia-a-dia da empresa, como se fosse a diretoria dela, mas que, a qualquer momento, era revogável pela Comissão ou por Assembléia. E, junto com esse Comitê Administrativo e Financeiro, participava um trabalhador dos quatro turnos de cada empresa para acompanhar a vida financeira e administrativa. Não eram apenas técnicos que entendiam do assunto, mas trabalhadores do chão de fábrica, a fim de eles, inclusive, tomarem conhecimento e controlarem o que os dirigentes estavam fazendo. Desse modo, eles poderiam, no dia-a-dia, dar informações no chão de fábrica, assim como suscitar sugestões e discussões.
As Assembléias Gerais ocorriam a cada dois meses, e nesse intervalo nós fazíamos praticamente duas ou três vezes por mês Assembléias de Turno. Essas eram mais informativas, com discussões de problemas. Nelas, se podia discutir, digamos assim, mais relaxadamente, todas as questões. Essa era a estrutura em cada fábrica. Todas as fábricas ocupadas, inclusive as de Pernambuco, do Paraná etc., se organizavam nacionalmente no Movimento das Fábricas Ocupadas e na coordenação de seus conselhos. Essa era a forma de organização nossa durante os cinco anos de controle das empresas.
Nós tínhamos, ainda, um Comitê de Contratação, ou seja, uma série de pessoas que eram escolhidas pelo Conselho de Fábrica. Elas faziam, quando alguém de algum setor requisitava um funcionário para sua área, a contratação. Isso era feito para que não acontecesse apadrinhamentos ou coisas do gênero.
IHU On-Line - E qual é a situação hoje?
Serge Goulart - Essa não é a situação hoje, pois a Cipla e a Interfibra estão sob a intervenção judicial a pedido do INSS, com uma alegação absolutamente fraudulenta de cobrar dos trabalhadores uma dívida que os antigos proprietários deixaram, de 1988, de R$ 250 milhões de reais. Ou seja, para cobrar uma dívida que eles nunca fiscalizaram e com a qual nós não temos nada a ver, ele interviram policial e militarmente na fábrica. Eles ocuparam de assalto a Cipla e a Interfibra, às 07 horas, com 150 policiais armados, carros de combate, metralhadores, fuzis, gás de pimenta etc., aterrorizando a todos e colocando um clima de pavor e pânico dentro da fábrica. Depois que a polícia saiu e o interventor foi empossado, ele se armou com uma guarda privada, com cerca de 30 homens armados, com ternos pretos e óculos escuros, que fazem a ronda permanente dentro da fábrica, nas máquinas.
Foi uma situação de pânico, de terror. Eles ameaçam a todos, dizendo que iam prender, que eram todos comunistas, que todos iriam para a cadeia porque estavam tentando instalar o comunismo na fábrica. E esta atitude, que já está expressa na sentença judicial, que é uma caça às bruxas, na verdade é uma tentativa política de liqüidar um movimento muito bonito, forte, amplo, com muito apoio popular e que salvou milhares de empregos. Obviamente, eles quiseram liqüidar conquistas. Por exemplo, nós reduzimos primeiro a jornada de trabalho de 44 horas semanais para 40 horas semanais, deixando o sábado livre para os trabalhadores, sem reduzir salário e faturamento. Depois, conseguimos, reorganizando a fábrica, sem nenhuma demissão, aliás, contratando 78 companheiros a mais, reduzir a jornada para 30 horas semanais. Portanto, aconteceu uma melhora sensível de qualidade de vida.
Ao mesmo tempo, não é segredo para ninguém, houve um acordo de transferência de tecnologia, de matéria- prima com o governo da Venezuela, com o presidente Hugo Chávez, e o empresariado brasileiro estava decidido a ajudar romper esse acordo porque evidentemente ele quer liqüidar qualquer ponto de apoio que a revolução venezuelana tenha no Brasil. Por isso, tivemos declarações do presidente da FIESP dizendo que a ocupação de fábricas era inaceitável e ainda mais aliada aos comunistas, socialistas da Venezuela. Não há ingerência, e sim um acordo, como milhões de acordos comerciais que as empresas fazem com diversos governos. O problema é que esse acordo favorecia trabalhadores; então, os industriais não aceitam, querem liqüidar com o movimento, mas nós seguimos. A luta continua, para derrubar judicialmente a intervenção à fábrica, pois ela é ilegal, abusiva e evidentemente de cunho político.
IHU On-Line - Hugo Chávez tem sido mais solidário do que o Governo Lula?
Serge Goulart – Sem dúvida alguma. Nós nunca conseguimos nada com o Governo Lula. Mas o Governo Chávez fez um acordo conosco e nos enviou matéria-prima para ajudar a rodar a indústria. Junto com o acordo feito com a Venezuela, nós organizamos o primeiro encontro latino-americano de fábricas recuperadas por trabalhadores, no qual reunimos 800 delegados de 13 países. Agora estamos, inclusive, organizando, de 25 a 28 de outubro deste ano, em Caracas, na Venezuela, o segundo Encontro latino-americano das empresas recuperadas pelos trabalhadores.
Nossa relação com o Governo Chávez é estritamente política. Nós sabemos que está acontecendo uma revolução na Venezuela, que é anti-imperialista, em defesa do povo, e que possui uma pressão imperialista muito grande. As Fábricas Ocupadas são trabalhadores. Nós sabemos que a luta da Venezuela é a luta nossa. De qualquer modo, o que nos espanta nessa situação toda é o que aconteceu aqui no Brasil. O INSS de um governo que nós elegemos interveio com polícia e militares numa fábrica que estava progredindo pela militância e luta de trabalhadores é espantoso. Nunca vimos isso acontecer num governo democraticamente eleito.
IHU On-Line – E, hoje, qual é a concepção política que orienta o `Movimento Fábricas Ocupadas`?
Serge Goulart – O objetivo do Movimento é defender os empregos, a existência do Parque Fabril, os direitos dos trabalhadores. Essa é a orientação política do movimento. Dentro do movimento, cada um pode ter a posição que quiser sobre qualquer coisa: partidos, candidatos etc. Isso é um problema individual. Agora o movimento politicamente sabe que enquanto houver capitalismo, exploração do homem pelo homem, os trabalhadores vão seguir sendo explorados.
IHU On-Line - Como tem sido a relação com a sociedade de Joinville? A cidade apóia a ocupação?
Serge Goulart – No último encontro que organizamos em defesa do emprego, do salário, da Reforma Agrária e dos direitos do parque fabril, que aconteceu em dezembro do ano passado, tivemos a presença da CUT, da CNQ, da Federação das Associações de moradores, da Associações de moradores, das organizações de moradores, do Bispo Católico de Joinville, de representantes de outras igrejas, de sindicatos, de deputados, do Comitê de solidariedade da Palestina, ou seja, tivemos uma gama imensa de apoio político e que se revelou em cada momento que precisamos. Fizemos uma carta e, em cerca de um mês, recolhemos 70 mil assinaturas nos bairros de Joinville para ser enviada ao presidente Lula, ou seja, nós temos um amplo apoio social. Estamos esperando que Lula e seus ministros entendam isso e retirem a intervenção, pois nosso movimento irá continuar, porque os trabalhadores precisam trabalhar, ter emprego, direitos e as fábricas não podem fechar. Quando uma fábrica fecha, surge um cemitério de postos de trabalho. E onde uma fábrica abre é uma primavera florescendo. Esse é o sentido do nosso movimento.
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Movimento das Fábricas Ocupadas: a luta continua. Entrevista especial com Serge Goulart - Instituto Humanitas Unisinos - IHU