05 Julho 2007
“Toda a discussão sobre a reforma política parte da avaliação, equivocada, de que o sistema eleitoral e partidário brasileiro funciona mal por causa da legislação.” A afirmação é do Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, Márcio Nuno Rabat. Para o assessor do Congresso na área de Ciência Política, o problema está na fragilidade dos partidos.
Márcio Rabat comenta ainda outro equívoco no debate da reforma política, o fato de que o centro da discussão da reforma, há uns trinta anos, no Brasil se reduz aos partidos e as eleições. Trata-se de um reducionismo que não contempla outros mecanismos decisórios que possam influenciar a agenda política do país, destaca ele.
O consultor se diz radicalmente contrário ao financiamento público de campanha. Na sua avaliação, essa decisão tornaria os partidos submissos ao Estado e estranha o silêncio constrangedor da esquerda. Na entrevista concedida à IHU On-Line, Márcio Rabat fala ainda da chamada democracia direta e comenta que existe certa ingenuidade com que amplos setores da esquerda têm abordado o tema das decisões populares em plebiscitos e referendos. A entrevista traça ainda um breve panorama histórico do tema da reforma política no Brasil.
Márcio Rabat é formado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal. Integra há 14 anos o quadro de funcionários concursados da assessoria da Câmara dos Deputados e é militante da Assembléia Popular.
Eis a entrevista.
IHU On-Line - É comum dizer-se que todos defendem a reforma política, mas que cada um tem uma concepção distinta do que ela seja. Podemos formular alguma noção geral que dê conta de todas essas concepções diferentes – e, por vezes, antagônicas – do que seja a reforma política?
Márcio Rabat - Talvez possamos partir da idéia de que a política diz respeito aos mecanismos através dos quais as comunidades tomam decisões coletivas, isto é, decisões que tendem a vincular todos os membros da comunidade, mesmo os que delas discordam ou que sequer participam dos processos decisórios. Claro que, com isso, estamos colocando na pauta a questão do poder. As técnicas que uma comunidade usa para tomar decisões não são neutras; elas se articulam com a distribuição do poder nessa comunidade.
Embora uma noção tão ampla não possa ser mais que um ponto de partida, recorro a ela para que nossa conversa não fique excessivamente presa aos mecanismos de decisão política dominantes na atualidade. Afinal, os processos decisórios coletivos tomaram formas bastante variadas ao longo da história – e ter isso em conta abre nossa mente para tratarmos do tema com liberdade de espírito. Os métodos de definição dos representantes políticos da comunidade, por exemplo, variaram (e ainda variam) da hereditariedade ao sorteio. A predominância do método eleitoral é relativamente recente. Na maior parte da história, ele sequer foi considerado um método democrático de escolha, pois supõe a existência de pessoas mais preparadas que outras para representar o conjunto da comunidade; a forma democrática, por excelência, seria o sorteio.
Uma questão de fundo, que não vamos tratar aqui, mas que é muito importante, refere-se às razões pelas que o regime representativo contemporâneo, baseado em eleições e partidos, se tornou dominante. Como esse fato se articula com a distribuição do poder em nossas sociedades é uma pergunta que merece ser feita.
Podemos concluir, de uma noção de política como a proposta, que, quando se fala em reformar a política, o que está em causa são as formas vigentes pelas que a comunidade toma decisões. São elas que se busca reformar. Quanto mais forte é a idéia de que as formas vigentes não estão funcionando a contento, maior a probabilidade de que se insista numa reforma política. Ora, como eu já disse, as decisões coletivas passam, hoje, predominantemente, pelas eleições e pelos partidos; portanto, é aí que recai o foco principal das discussões. Curiosamente, contudo, dificilmente a centralidade das eleições e dos partidos é posta em causa; trata-se, apenas, de optar entre as várias formas adotadas para eleições e sistemas partidários.
Mas a centralidade da representação (e de uma forma determinada de representação) não nos deve fazer esquecer de dois pontos relevantíssimos: primeiro, que no próprio plano das decisões coletivas públicas, os mecanismos representativos não constituem as únicas formas possíveis de tomada de decisão (e estão aí as discussões sobre democracia direta e democracia participativa para prová-lo); depois, que algumas das decisões mais importantes para os rumos da comunidade, decisões que vinculam e afetam a todos, são, na verdade, tomadas por entidades privadas, entre as quais se destacam as grandes empresas. Nesse sentido, uma reforma política verdadeiramente profunda passa pela discussão, até, de mecanismos de decisão na esfera privada.
IHU On-Line - Talvez possamos trazer a discussão para algumas questões mais específicas se abordarmos a história recente da discussão sobre a reforma política no Brasil.
Márcio Rabat - Sem dúvida. Aquelas idéias gerais destinavam-se, apenas, a nos defender contra abordagens do tema que, consciente ou inconscientemente, acabem por impedir a percepção da amplitude das questões práticas e teóricas por trás do debate sobre os mecanismos pelos que o Estado toma decisões. Mas a expressão “reforma política” tem tido, na verdade, um uso bastante restrito.
Apesar de algumas incursões pelas áreas da democracia direta e da democracia participativa, o que se tem discutido mesmo – seja no Congresso Nacional, seja na universidade, e até no movimento social – são as formas de escolha de representantes e como esses representantes atuam. Ou seja, o foco recai sobre as eleições e os partidos. Creio que não é exagero dizer que o centro da discussão, há uns trinta anos, pelo menos, é a questão partidária.
Vale a pena lembrar que, iniciada a descompressão da ditadura, em fins da década de 1970, houve um período em que a preocupação principal era a de tornar o sistema partidário menos rígido e menos fechado à participação de forças sociais então excluídas. Essa primeira preocupação encontrou ressonância na Constituição de 1988, que consagrou a autonomia de organização partidária e a concepção de que os partidos políticos são entidades de direito privado, mecanismos de organização e participação política das forças sociais, descartando a concepção dos partidos como instrumentos paraestatais, comum na tradição corporativa brasileira, desde a década de 1930.
No entanto, a fragmentação dos partidos e do sistema partidário que aconteceu a seguir fez com que a preocupação principal logo passasse a ser a de restringir os canais de participação política a alguns poucos partidos e a de dotá-los de maior coesão e coerência. Desde o início da década de 1990, essa preocupação se tornou absolutamente dominante, manifestando-se tanto nas modificações da legislação eleitoral e partidária realizadas desde então (e que não foram tão poucas assim), como nas propostas de emenda à Constituição e projetos de lei elaborados por parlamentares, partidos e analistas e pelas várias comissões instaladas nas duas casas do Congresso Nacional para estudar a matéria. Isso é verdade, inclusive, para o Projeto de Lei nº 1.210, de 2007, que se encontra em pleno processo de votação na Câmara dos Deputados.
IHU On-Line - Vamos falar sobre esse Projeto de Lei - nº 1.210/2007, que trata da Reforma Política agora em debate no Congresso. A sua aprovação trará grandes alterações à política brasileira, ainda que no plano meramente eleitoral e partidário?
Márcio Rabat - O projeto se insere de uma maneira interessante na história das discussões sobre a reforma política. No auge da percepção de que o sistema partidário brasileiro se encontrava em franco processo de esfacelamento, algumas mudanças radicais foram propostas, como a adoção do parlamentarismo e/ou do voto distrital (puro ou misto). Com o tempo, contudo, foi-se consolidando a idéia de que alterações pontuais, que não modificassem totalmente o processo eleitoral brasileiro, seriam suficientes para se alcançar resultados profundos – e de que sua adoção seria menos traumática e difícil. Creio que essa nova visão tem a ver, também, com a percepção incipiente de que nosso sistema eleitoral e partidário, afinal, não vem funcionando tão mal assim. Nós é que tínhamos, quanto a eles, expectativas que o regime representativo, por si só, não pode satisfazer. E talvez nenhum regime político o possa.
Tendo em conta essa mudança de foco, pode-se dizer que as mudanças propostas no PL nº 1.210/2007 possuem, sim, profundidade. Os pontos principais do projeto são: as listas fechadas de candidatos nas eleições proporcionais, o fim das coligações, também nas eleições proporcionais, a criação das federações partidárias e o financiamento público exclusivo de campanhas. Qualquer uma dessas mudanças, sozinha, já teria impacto sobre o quadro eleitoral e partidário brasileiro; conjugadas, o impacto seria grande.
É fácil perceber que o núcleo das propostas ainda é aquela idéia de restringir os canais de participação política a alguns poucos partidos e dotá-los de maior coesão e coerência. Isso é claríssimo na proposta de proibir coligações em eleições proporcionais (pois, sem elas, os menores partidos teriam muita dificuldade para eleger deputados federais e estaduais em estados com pequena população) e na proposta de se instaurar listas fechadas de candidatos (em que os eleitores votam apenas nos partidos, sendo eleitos aqueles candidatos a deputado ou vereador que o partido coloque nos primeiros lugares da lista e não, como é hoje, os individualmente mais votados).
Mesmo a proposta de formulação mais recente, o financiamento público exclusivo de campanhas, se implantada, acabará por reforçar, também, o poder das cúpulas partidárias, já que o fluxo de recursos financeiros será inevitavelmente centralizado, embora essa talvez não tenha sido a motivação principal da proposta. Ela começou a crescer na medida em que crescia a preocupação com o peso dos grandes financiadores privados na eleição de candidatos aos mais variados cargos e com o recorrente problema do caixa dois no financiamento de campanhas. Claro que, ao afirmar que as mudanças legais propostas teriam impacto efetivo, não estou dizendo que ele seria, necessariamente, positivo.
IHU On-Line - Em que lhe parece que os efeitos poderiam ser positivos ou negativos?
Márcio Rabat - Em minha opinião, toda a discussão sobre a reforma política parte da avaliação, equivocada, de que o sistema eleitoral e partidário brasileiro funciona mal por causa da legislação. De um lado, não creio que ele funcione tão mal assim. Parece-me evidente que se subestima a mudança estrutural por que passou a política no Brasil, de uma ditadura para um regime, bem ou mal, pluralista. Acredito, até, que parte importante da crítica – embora não toda – à suposta situação atual de “descalabro” institucional, moral etc. do país, seja nessa área, seja em outras, venha do mal-estar com a entrada (sempre perturbadora) de novos atores e novas preocupações em cena.
De outro lado, duvido de que a legislação deva ser o principal instrumento para a construção de partidos sólidos e programaticamente consistentes. Se os partidos brasileiros têm deficiências, isso se deve ao esforço insuficiente de organização interna e só pode ser superado, de maneira que ultrapasse a mera maquiagem, por esse esforço. Nesse sentido, embora possa haver pontos positivos e negativos em cada uma das propostas apresentadas, a forma como são tratadas acaba por contaminá-las. E esse é um problema que afeta, principalmente, as forças de esquerda. É que os setores ligados a grandes interesses econômicos não precisam de instituições como os partidos políticos da mesma forma e com a mesma intensidade com que necessitam de setores populares. Cabe, portanto, à esquerda a reflexão mais rigorosa sobre as questões partidárias.
IHU On-Line - Você poderia indicar um ou mais pontos da reforma política em que a reflexão da esquerda sobre as questões partidárias se mostra frágil?
Márcio Rabat - Inquestionavelmente, o ponto mais débil é o do financiamento público exclusivo de campanhas. A falta de elaboração teórica, nesse particular, é simplesmente constrangedora. Antes de dela tratar, contudo, quero dizer que entendo a preocupação de parlamentares e quadros partidários com o financiamento privado. Deve ser realmente muito complicado buscar recursos para campanhas em uma economia em que a presença do caixa dois é avassaladora no meio empresarial. Além disso, é claro que os representantes do capital têm maior facilidade para arrecadar recursos financeiros que os setores políticos que se apresentam como representantes dos trabalhadores e das massas despossuídas.
No entanto, nada disso pode fazer esquecer que o financiamento público proposto seria a consagração do Estado cartorial brasileiro. Seria até interessante, do ponto de vista histórico, que o Brasil fosse o primeiro país do mundo a instaurar o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais. Isso indicaria claramente que estavam certos os teóricos do corporativismo estatal brasileiro.
Que classe trabalhadora autônoma que nada! Sem a mão do Estado sustentando-a, essa classe não vai a lugar nenhum. Contra todo o palavrório da Constituição a respeito dos partidos como entidades de direito privado, autônomos em relação ao Estado, está aí o reconhecimento concreto de que cada setor da sociedade brasileira se faz representar politicamente pelo respectivo “cartório”, cuja reprodução é garantida pelo Estado a partir de uma dinâmica interna à esfera política (o dinheiro de cada grupo, na campanha, depende do resultado da eleição anterior) e “livre” do esforço de efetiva ligação orgânica com sua base social.
Estou carregando um pouco nas tintas. Inclusive, considero que a reflexão dos maiores teóricos do corporativismo brasileiro é realmente de alto nível – e que tê-la desconsiderado, assim como à maior parte da reflexão teórica ligada à chamada era Vargas, constitui uma das fraquezas da parte mais visível da esquerda brasileira atual. No entanto, não vejo como não ser contundente quanto ao silêncio total que cerca esse problema. Como é que os setores da esquerda que se manifestaram tão intensamente contra o imposto sindical e a cooptação da classe trabalhadora pelo varguismo sequer se lembram de colocar dúvidas quanto à vida eleitoral e partidária sustentada pelo Estado? Será que eles simplesmente incorporaram sem crítica a idéia do Estado neutro?
Outro ponto teórico que me parece importante – e que já toquei – se refere ao papel do partido político na sociedade capitalista. Os partidos em geral (e, em particular, os partidos da classe trabalhadora) atuam em um ambiente extremamente hostil à política. O “ideal” seria que eles simplesmente servissem de correia de transmissão para a lógica de reprodução do capital. Para se contrapor à pressão estrutural nessa direção, a que estão submetidos os partidos, é preciso uma capacidade de organização interna e de articulação com sua base social verdadeiramente impressionantes. Essa força não pode e não deve vir da legislação. As leis brasileiras já reconhecem aos partidos aquilo de que eles fundamentalmente precisam, que é autonomia para se organizarem. O resto, cabe a seus militantes construir. Desconfio que, quanto mais a legislação facilita uma coesão e uma coerência de fachada, menos os partidos são capazes de construí-las efetivamente.
IHU On-Line - E o “outro lado” da reforma política, o lado das decisões populares diretas? Como fica a democracia participativa e democracia direta defendida pelos movimentos sociais?
Márcio Rabat - Certamente tem havido, ao longo de todo o período em que se discutiu a reforma política, algum esforço para colocar outros métodos de decisão coletiva na agenda. E, em mais de uma ocasião, esse esforço resultou em um grau razoável de implantação efetiva. Um exemplo claro é o da disseminação, a partir principalmente do caso emblemático de Porto Alegre, do orçamento participativo, em suas várias formas.
Não se pode esquecer, igualmente, que o Congresso Nacional aprovou, em 1998, a Lei nº 9.709, que regulamenta o recurso ao plebiscito e ao referendo, mecanismos de decisão popular direta. A interpretação da Constituição Federal dominante à época impediu a adoção de mecanismos pelos quais a própria população interessada convocasse as consultas populares. Essa interpretação, embora possa ser consistentemente defendida, tem sido contestada, também com argumentos interessantes. A própria Ordem dos Advogados do Brasil patrocinou, recentemente, o Projeto de Lei nº 4.718, de 2004, em tramitação na Câmara dos Deputados, que prevê a convocação de plebiscitos e referendos pela própria população.
Cabe acentuar, por fim, os grandes plebiscitos populares sobre a ALCA e sobre a dívida externa, organizados pelos movimentos sociais, que se constituíram em instrumentos importantes para conquistar amplas parcelas da população para o debate de questões decisivas para o futuro do país.
Aproveito essa última referência para retomar uma consideração que fiz no começo desta conversa. Não pode haver dúvida de que os grandes plebiscitos populares recentes foram acontecimentos da maior relevância na história brasileira – inclusive, com repercussões práticas, como o enfraquecimento da proposta da ALCA. Como se explica, então, que as revistas semanais simplesmente não tenham incluído esses acontecimentos enormes em suas retrospectivas de fim de ano? É que decisões muito importantes, sobre o que se diz ou não se diz na esfera pública, são tomadas na esfera privada, através da grande imprensa empresarial. E, quando se pensa a política no Brasil, esse fato não pode ficar de fora.
Uma última consideração a respeito da chamada democracia direta diz respeito a uma certa ingenuidade com que amplos setores da esquerda têm abordado o tema das decisões populares em plebiscitos e referendos. Por mais meritório que seja insistir nesse tema, não se pode esquecer que as decisões políticas, seja qual for o método que se use para tomá-las, não têm como não refletir, em alguma medida, a correlação de forças na sociedade. A idéia de que as escolhas populares diretas serão muito diferentes das escolhas dos representantes pode perfeitamente incorrer no mesmo erro em que incorreram os que pensaram que o sufrágio universal levaria inexoravelmente ao predomínio dos interesses e valores das maiorias nas decisões coletivas.
Na verdade, o embate fundamental se dá antes da decisão ser tomada, enquanto se disputa uma correlação de forças sociais favorável às maiorias. Quando não se ganha essa disputa, dificilmente as decisões políticas, sejam tomadas por via direta ou indireta, deixarão de refletir os interesses e valores das camadas, grupos e classes mais poderosos, ainda que minoritários. E se, por acaso, deixarem de refletir a correlação social de forças, dificilmente as decisões chegarão a ser implementadas.
Nesse sentido, o amplo mutirão que resultou nos plebiscitos populares sobre a ALCA e sobre a dívida externa, com a manifestação, pelo voto, de milhões de pessoas, e com a mobilização de milhares, não apenas para dar um voto sobre a questão, mas para organizar e trabalhar em todo o processo de realização da consulta, junto com todo o esforço para discutir os problemas mais profundos do país, geralmente escamoteados pela grande imprensa empresarial, tudo isso talvez seja a parte mais importante da democracia direta e participativa. E a que, no médio e longo prazos, fará maior diferença.
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Reforma política. Equívocos e oportunidades. Entrevista especial com Márcio Nuno Rabat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU